Jean-Jacques Tyszler
Lacan se espantava, ao ler o livro de Stoller, Sex and gender,1 com o fato de que a face psicótica desses casos fosse completamente eludida.
O manual de psiquiatria de Henry Ey, em sua quarta edição,2 evoca o transexualismo em dois trechos: primeiro, no capítulo sobre o homossexualismo, depois, em uma passagem sobre as síndromes particulares a certas culturas em que o transexualismo é associado a poderes xamânicos, ritualizados, quase religiosos.
Perversão, psicose ou fato cultural, o enquadramento, ao deixar de ser clínico, derrapa logicamente na direção do bom direito e da medicina reparadora.
Lacan nos legou uma poderosa ferramenta de análise relativa às psicoses: o conceito de foraclusão. Que um sujeito recuse radicalmente seu lugar na divisão produzida pela anatomia sexuada – aí está algo que não parece mais delirante o bastante para ser chamado de psicótico.
Será que estamos tão bem informados quanto às conseqüências do principal aporte do seminário sobre as psicoses?
Lembremos de início que o conceito de foraclusão do Nome-do-Pai não é apenas aquele que nos permite sair das dificuldades freudianas relativas à distinção entre neurose e psicose, o que vem sendo pouco a pouco reconhecido por todos, mas também nos afasta de uma clínica reduzida aos fenômenos ou aos temas, ao aspecto imaginário da produção, como a narração, ao romance familiar ou social, como a empatia eventual que o acompanha, para nos concentrar primordialmente nos elementos estruturais: a foraclusão é reconhecida por seus efeitos clínicos, sintomáticos, em sua ligação ao discurso do sujeito, pelo remanejamento do próprio tecido da linguagem.
Isso nos obriga, assim, a admitir que um significante aparentemente comum e evidente (homem, mulher…) pode ser reduzido a um uso quase neológico, isto é, sem nenhum relançamento subjetivo, apenas sob o ângulo da aparência e do como se.
O cirurgião e o jurista estão menos habituados do que o psiquiatra ao manejo das entrevistas, mas não deixarão de se ser sensíveis a este fato, legível em cada relatório mais ou menos completo: nada indica que saibamos espontaneamente o que um paciente evoca quando se nomeia homem ou mulher, não mais do quando um melancólico se declara danado, ou um perseguido, possuído.
Ignoramos a priori, para um paciente assim, o que quer dizer a identidade ou o desejo, ignoramos também seu tipo de relação com o prazer, com o gozo e com a própria natureza deste, que está longe de ser sempre sexual, no sentido que costumamos entender.
O fio que escolhemos não é o estabelecimento do quadro completo do transexualismo, nem o estudo das variações desse tema na maior parte das psicoses produtivas.
Centramo-nos no estudo de um gozo próprio ao transexual, da pele e da vestimenta, gozo que faz redobrar o significante invólucro.
Tentaremos mostrar que esse gozo é realmente Outro, desespecificando o prazer de órgão; tentaremos também compreender o que é que, para esses pacientes, faz superfície.
O termo gozo Outro não deve ser aceito sem prudência, mas ele nos oferece, ao mesmo tempo, a solidez de uma referência já clássica, pois é o termo que Lacan nos propõe para descrever modos de gozo liberados do imperativo fálico que vertebra a neurose, e nos autoriza uma certa invenção; é por isso que propomos, de saída, essa relação entre modo de gozo, definição estrutural do gozo e interrogação sobre o lugar da pele e da vestimenta como superfície.
Essa conjunção está presente em todas as observações disponíveis sobre a questão, basta simplesmente segui-la ao pé da letra.
Precisemos, para terminar, que o essencial do material que reunimos concerne ao transexualismo masculino, mas que nossas observações não o separam a priori, em nada, do transexualismo feminino, embora outros comentários e precisões sejam necessários.
A vestimenta, a luva e o corpo estranho
No artigo “Contribuições à psicanálise do transexualismo”,3 Mustapha Safouan extrai essa observação de três casos clínicos descritos por Stoller:
esses três meninos eram impermeáveis ao medo, physically fearless diz Stoller, acrescentando que certamente isso acontecia porque cada uma dessas crianças sentia que podia fazer tudo o que sua mãe podia, sendo apenas uma extensão dela; essas crianças viviam, em suma, envolvidas pela Providência…
Mais adiante, Safouan observa o interesse particular de uma das mães pela vestimenta e pelo tecido, “interesse que seria errôneo assimilar ao fetichismo”, diz Stoller, e a lembrança das excelentes anotações clínicas de Clérambault vem a propósito; voltaremos a elas.
Poderíamos, antes de mais nada, dizer sobre o transexual (masculino): a vestimenta feminina lhe cai como uma luva, acrescentando que, diante da profunda aversão, da repugnância que comumente lhe inspiram seus atributos masculinos, ele tem essa faculdade de escotomizar, de colocar entre parênteses, certas partes eletivas do corpo, o pênis em primeiro lugar, como se se tratasse de um corpo estranho.
Notemos também que as intervenções cirúrgicas e seus resultados incertos são encarados com uma indiferença manifesta no que concerne à relação com o incômodo, a dor, a disfunção, as cicatrizes e seqüelas.
Uma parte do corpo é assim tratada com um singular desprendimento, enquanto o conjunto do corpo, por sua pele, se enluva na vestimenta.
Essas indicações não deixam de lembrar as observações de Lacan a respeito de Joyce em sua relação com Nora (seminário sobre O sinthoma): “a luva virada pelo avesso, é Nora, é sua maneira de considerar que ela lhe cai como uma luva…”.
“Ela está sempre no mesmo modelo e ele só se enluva nela com a mais viva repugnância.”
E ainda esta observação relativa ao corpo: “há algo que só pede para ir embora, para soltar-se, como uma casca… O desprendimento de algo como se fosse uma casca… Como possibilidade de relação com seu próprio corpo enquanto estranho”.4
Essa aproximação com o Seminário O sinthoma, em que Lacan estuda a possibilidade, para um sujeito (no caso, genial, mas suas conseqüências são gerais), de cicatrizar de algum modo sua psicose se fazendo um nome, criando uma obra, é fatalmente alusiva demais, mas a idéia diretriz me parece extraordinariamente fecunda: será que é possível para um paciente ter uma relação com o seu próprio corpo que seja uma relação marcada por uma negação especial e, ao mesmo tempo, conseguir enodar um tipo de troca forçosamente específica, eventualmente protética? Lacan descreve com Joyce esse tipo de possibilidade e nós nos perguntamos se, a seu modo e ao preço de um certo trabalho de elaboração, os transexuais também não o conseguem; caso em que a opção cirúrgica aparece como um “atalho” ainda mais discutível.
Um caso particular porém esclarecedor
Numa primeira observação de Krafft Ebing, a autobiografia do paciente começa assim:
Vou mencionar uma lembrança obscura e quase apagada, que data da época de minha mais tenra infância. Era uma sensação esquisita, uma espécie de obsessão, eu me imaginava completamente enrolado e enfaixado, em todo caso num estado de impossibilidade completa de me defender, e, no entanto, eu experimentava, na minha sensibilidade infantil, um tipo de inebriamento agradável.5
Vêm em seguida as observações usuais referentes ao gosto precoce pelas vestimentas de menina. No momento da puberdade, o paciente assinala um fenômeno bizarro, seus mamilos ficam grandes, duros e sensíveis, e o contato com as roupas ocasiona dores violentas; ele evoca, aliás, sua barba nascente como uma coisa estranha, que ele não desejava.
Trata-se da observação 129, considerada como única em seu gênero por Krafft Ebing, que nos dá, pela riqueza do documento, elementos de estrutura que podemos seriar assim:6
– Descrição da primeira infância insistindo na beleza e na docilidade: “parece que eu era bonito, tinha cachos louros e a pele transparente… Eu era muito obediente, silencioso, modesto”.
– Queda precoce pelas belas vestimentas e em particular pelas luvas de mulher.
– A pele é investida em sua dimensão de prova quanto à feminilidade, por causa de sua suavidade muito particular e de sua sensibilidade.
– Distúrbios hipocondríacos se resumem a uma identificação com as dores do parto.
– Um gozo plenificante é observado num momento em que usa haxixe: “eu experimentava em mim a sensação de ser uma mulher dos pés à cabeça. Minhas partes genitais se contraíram, minha bacia se alargou, meus seios ficaram salientes e uma volúpia indizível tomou conta de mim.”
– O remanejamento imaginário do corpo é importante; o paciente compara seu pênis ao clitóris, a uretra lhe parece ser a entrada da vagina e o escroto, os grandes lábios. A pele de todo o corpo é feminilizada, sentindo as impressões de uma mulher, seja pelo toque, seja pelo calor, seja pelo perigo.
– Essa transformação corporal não é sem incidência sobre sua posição de médico, na medida em que o saber também se feminiliza: “tive que reaprender tudo de novo, os bisturis, os aparelhos, tudo me dava ao toque uma impressão totalmente diferente… Em função da modificação de minha sensação muscular, tive que aprender tudo de novo”.
A questão do invólucro é trazida, nos dizeres do próprio paciente, como superfície de alguma forma suplementar e organizadora; sua própria pele lhe foi arrebatada para colocá-lo na pele de uma mulher, pele que se adapta perfeitamente, mas “que sente tudo como se envolvesse realmente uma mulher e como se todas essas sensações percorressem todo o corpo masculino que ela encerra e do qual ela tivesse expulsado as sensações masculinas”.
Esse trecho é essencial na demonstração dessa função da pele como invólucro autônomo, destacado, móvel. Essa dimensão é central em numerosas outras referências e situa a pele, o que não é comum, no lugar do objeto chamado por Lacan de a.
É preciso notar ainda a marca da negação, paralela à idéia da transformação em mulher e relativa aos sinais ou atributos sexuais masculinos: “os testículos, embora não estando atrofiados ou degenerados, não são mais testículos propriamente ditos”.
O coito é sentido como uma mulher, e o paciente resume, ao final de sua observação, os elementos de sua completa “efeminação”. Os termos empregados, sensação e aspecto, fazem refletir sobre uma necessária definição mais estrita do transexualismo, pois, evidentemente, não há crença fixa de pertencer ao outro sexo, como propõe Stoller.
Aparecem assim, perfeitamente observados, mas insuficientemente coordenados, os elementos estruturais fundamentais tais como explicitados por Marcel Czermak, em seu artigo nas Paixões do objeto, “Precisões sobre a clínica do transexualismo”:7
– Báscula indiscutível quando o paciente está vestido de mulher e assume, sob seu próprio olhar e sob o olhar de outrem, a aparência feminina.
– Primado do prazer cutâneo sobre o prazer de órgão, mesmo se, no caso de Krafft Ebing, a ereção e a ejaculação não causam horror.
– Neutralização pelo invólucro, pela vestimenta, do objeto masculino.
– Incômodo doloroso das partes masculinas.
– Colabamento do corpo e da vestimenta, homogêneo à preocupação de aderir às aparências.
Podemos admitir, com certa segurança, essa dominância do caráter erógeno do cutâneo e a presença secundária do prazer genital.
O termo prazer cutâneo é também empregado para o fato de usar vestido ou tecidos; um paciente falava da vestimenta feminina como de um “veículo”, indicando bem, por meio dessa fórmula, o quanto é a própria vestimenta que garante ao sujeito o seu equilíbrio e a sua direção.
É a pele em sua totalidade, em toda a sua superfície, que é investida: “toda a pele”, fórmula aliás bastante enigmática. O tema da beleza, ser uma bela mulher, está constantemente ligado, nas observações, à questão da vestimenta. Essa problemática da beleza e da harmonia como recobrimento imaginário da categoria da feminilidade era particularmente audível num paciente que tivemos a oportunidade de encontrar: o ideal da feminilidade e o enfoque de toda identificação se distribuíam em torno das seguintes variações: a fineza, o gosto, as artes, a vivacidade de espírito, a sonoridade musical, as roupas, as cores… espectro imaginário, assim, da realização feminina.
Esse tipo de recobrimento deve ser correlacionado com o invólucro constituído pela vestimenta e pela pele. Temos, assim, como que dois invólucros, um que se oferece ao real do fenômeno de volúpia, outro que pode ser considerado como seu arcabouço imaginário.
Precisamos voltar, através do caso de um paciente examinado em 1983, ao termo “hipocondria fálica”, que devemos ao Dr. Czermak, termo que funda a possibilidade de uma foraclusão de uma parte simbólica do corpo e o retorno, como puramente instrumental, do órgão considerado.
A questão pode ser formulada assim: se a pele é essa superfície totalizante e lisa, invólucro de volúpia colabada pelo tecido na vestimenta, o que é que acontece com os atributos sexuais usuais ao olhar do paciente e na representação do seu próprio corpo?
A uma observação relativa a seu pênis, o paciente responde: “é, uma pequena… uma bem pequenininha, ela está diminuindo, vai acontecer… O clitóris das mulheres também é um pau… Soube da anatomia desde que comecei o tratamento hormonal, o pênis fica pequeno, o pênis se torna um clitóris, a gente bota ele pra dentro…”.
Esse mecanismo particularmente poderoso, nós encontraremos seu vestígio já na Verleugnungfreudiana, mas apoiado na foraclusão e tangenciando a diferença dos sexos. É provável que uma tal recusa escópica tenha sua fonte já no estádio do espelho.
Em outros transexuais, a convicção de ser, no entanto, homem demais, morfologicamente, desvia das soluções cirúrgicas.
Não se trata, para esses pacientes, de se crer mulher, mas, muito mais, de colar-se à imagem de uma feminilidade abstrata e de ser dito mulher, mesmo que seja evidente, e para eles também, que a metamorfose é apenas aproximação.
Um gozo “Outro” em Clérambault
O artigo “Paixão erótica pelos tecidos na mulher”é uma contribuição de 1908, portanto bastante precoce, e no entanto Clérambault já demonstra a fulgurância clínica que faz sua modernidade.8
Não retomaremos em detalhe a observação das três pacientes, mas desejamos assinalar alguns pontos úteis ao nosso desenvolvimento sobre a problemática da pele e da vestimenta.
Na primeira observação, Clérambault acentua um traço especial, a algofilia: “o sujeito inflige a si próprio uma picada… A algofilia é esquemática na origem, bem diferente, por conseguinte, das algofilias masoquistas, complexas desde o início”. A volúpia responde a roçamentos com ajuda do veludo ou da seda e se opõe à intromissão peniana, que não é mais desejada.
Na segunda e na terceira observações, é particularmente bem descrito esse gozo singular do toque, a volúpia do amarfanhar, a embriaguez do ciciar do tecido.
Em seu resumo final, Clérambault insiste em certos pontos: em duas das pacientes, a volúpia descrita data da infância ou da juventude; sensações epidérmicas são “necessárias e decisivas”; nos três casos, ele nos esclarece que “o tecido não intervém como substituto do corpo masculino”, não possui nenhuma de suas qualidades, não serve para evocá-lo e há ausência de contribuição imaginativa: “o tecido parece agir por suas qualidades intrínsecas (consistência, brilho, odor, ruído), em sua maioria secundárias diante das qualidades táteis”.
Clérambault distingue, assim – e insistimos nesse esforço –, o que é do campo do fetichismo, da perversão, e o que é da ordem de um gozo Outro, difícil de repertoriar, para ele, senão por analogias e diferenças:
Parece-nos que ele deve figurar um pouco à parte e ser gratificado com um nome. Para designar essa busca especial de um contato dotado de uma virtude afrodisíaca, duas palavras nos parecem necessárias; o termo hifofilia designaria a busca do tecido, a locução hifofilia erótica daria conta do processo sinestésico.
Clérambault conclui seu artigo com a lembrança de certos casos masculinos de Krafft Ebing (observações 113, 114, 116, 118, 119, 120); apenas o último caso é, para Clérambault, homogêneo aos que ele trabalhou, isto é, com indiferença pela forma e pelo valor evocativo do tecido, papel muito apagado da imaginação, ausência de apego ao objeto após o uso e ausência comum de evocação do sexo adverso.
Nem fingimento nem montagem, deparamo-nos aí com uma dimensão essencial do enquadramento do transexualismo: a vestimenta, aqui o tecido, é dotada de qualidades próprias, específicas, e é ela que organiza, não somente a volúpia do sujeito, mas garante também um semblant de vetorização, fora de uma ancoragem fantasmática usual ou perversa.
A modernidade do artigo de Clérambault, completado pelo de 19109, é nos colocar na via dessa relação singular de uma superfície com uma outra superfície.
Remetemos a todo o seu trabalho de pesquisa sobre o drapeado.
Qualificação do gozo por um lado, abordagem quase topológica do corpo por outro, Clérambault nos obriga a uma leitura estrutural mais estrita e convoca ferramentas que a psicanálise utiliza há pouco tempo.
Sobre a alteridade: a figura do duplo
Se a vestimenta lhes cola à pele, como observa Marcel Czermak, indicando assim uma dimensão auto-erótica manifesta e esse caráter de recentramento do Sujeito nesse próprio invólucro, o que dizer dos laços afetivos e amorosos estabelecidos pelo transexual?
Já sabemos que, no mais das vezes, as relações sexuais desempenham um papel nulo ou secundário.
Em outros casos, é relatado um tipo de relação sexual marcada pela textura do duplo.
Assim, um só gozava com dor, em relações sexuais com uma mulher, vestido de mulher, após masturbação pela mulher: dois seres adornados como mulheres, face a face, ligados por um pênis “umbilical” que não saberão mais a qual dos dois pertence.10
Essa cópula com o duplo é bem próxima da questão da luva e de seu reviramento, evocada por Lacan.
Um outro paciente pôde dizer: “Não preciso da penetração, preciso ser amado como uma mulher… Eu gostaria de bancar amulher de um homem e de me dedicar à casa…”.
O caso relatado por Stoller, de uma mulher que pensava que um pênis tinha crescido em seu abdômen, é da mesma ordem; essa mulher se serve desse pênis esfregando uma parte do seu ventre no sexo de sua parceira, provocando o orgasmo nas duas mulheres. Que a presença desse “pênis” seja depois explicitada como a descoberta de um fibroma não infirma em nada esse dispositivo do pênis umbilical, segundo o próprio termo do paciente de Marcel Czermak.
Essa observação tem também o mérito de não excluir sistematicamente os casos femininos do quadro geral do transexualismo.
A psicose feminina parece sempre mais difícil de estabelecer e numerosas observações de transexuais femininas são orientadas rapidamente demais na direção do fetichismo e da perversão.
Esse tipo de esteio no duplo parece igualmente sensível em certos casos femininos, e a grade da homossexualidade não basta de modo algum para dar todo seu alcance a esse fenômeno.
Lacan nos dá, com Joyce, a possibilidade de refletir sobre esse tipo de esteio com, numa borda, a eleição especular em sua estrutura de modelo; em outra borda e redobrando a primeira, o enluvamento, o envolvimento como uma luva.
Esse enquadramento preciso da captura amorosa e do gozo fora do sexo que a alimenta deve ser reconhecido em sua elaboração tipológica.
Uma clínica das superfícies
Optamos por insistir no primado do invólucro, indicando-o como mecanismo central em qualquer exame do transexualismo.
Notemos também o quanto esse tipo de abordagem não é estranho ao campo geral da psicose, desde que estejamos atentos a seu relevo no próprio discurso dos pacientes.
Um paciente, que apresentava uma psicose passional sob a forma de uma erotomania atípica, já que submetida à presença de dois objetos simultâneos, relatava um momento para ele crucial em seu itinerário: “Uma relação sexual degradante… de manhã, eu tive a impressão de ter perdido todos os meus músculos, como um coelho de quem se tira a pele…”.
Esse fenômeno o instalou num apragmatismo quase completo, inabitual num quadro clínico em que o ativismo é a regra.
Um outro paciente se queixava de uma dismorfofobia particular que colocava em relação a sua pele, a vestimenta e o solo; seu rosto lhe parecia permanentemente sujo, algo grudava em sua pele apesar das lavagens repetidas e das verificações no espelho; seu rosto continuava desesperadamente emporcalhado, encardido.
Este último se encontrava numa relação original com o espaço por intermédio do invólucro constituído pela vestimenta e pelas solas dos seus sapatos: quando esse paciente usava um conjunto – isto é, como ele indicava, algo que forma um todo –, a parte de baixo combinando com a de cima, a parte de baixo continuando com a de cima, e as solas não estavam gastas demais, então ele observava uma nítida sedação dos fenômenos parasitários sobre seu rosto.
Essa representação estranha do corpo, da superfície e do espaço valoriza também para nós um tipo de coordenação entre o contínuo e o invólucro, aqui numa cristalização psicótica diferente.
O Cotard também nos habituou a uma topologia da psicose em que, estando tampadas todas as aberturas, o corpo fica sem furo, podendo se revirar no invólucro do próprio mundo.
Todos esses sujeitos estão concernidos por superfícies que não podemos abordar facilmente em nossa geometria usual.
Que o imaginário possa remanejar o corpo numa dimensão delirante é uma obviedade, pois o imaginário é justamente o que faz corpo.
Que o estágio do espelho esteja aqui implicado também não surpreende em nada, uma vez que é a imagem que garante ao pequeno homem a unidade do seu corpo.
Mais problemático, em contrapartida, é o estatuto do objeto dito pequeno a.
Do objeto: proposições hipotéticas
Consideramos geralmente, com Lacan, que tudo que faz borda sobre o corpo pode estar na origem da “irrupção” pulsional e os objetos a identificados são, como sabemos, o seio, as fezes, o olhar e a voz.
A pele não é a priori destacável sem dificuldade maior, mas podemos nos perguntar se essa superfície com dois folhetos que a pele e a vestimenta representam não teria esta propriedade específica de origem da pulsão nesses casos de transexualismo.
Nos seminários mais topológicos, a partir de RSI,11 Lacan nos diz que o objeto a, preso no centro da cadeia borromeana, não tem outra forma particular senão sua dimensão esferoidal.
Admitamos, por ora, a possibilidade de um tipo de objeto, de um invólucro, com as seguintes propriedades:
– Desdobrado ou folheado.
– Destacável graças a esse desdobramento.
– Organizando o circuito da pulsão de um modo auto-
erótico.
– Marcado com um vazio particular, um furo reabsorvível pela via da denegação delirante ou da mutilação.
Essa geometria, certamente louca do ponto de vista de nosso espaço habitual, o da neurose, não é em nada inomogênea àquela que já encontramos na clínica do Cotard. O apagamento do corte se faz aqui no campo da diferença dos sexos e não é da ordem de uma superfície lisa e fechada, mas percebemos o quanto essas duas arquiteturas podem ser aproximadas, mesmo se aparentemente, clinicamente e nosograficamente distanciadas.
Nos artigos dedicados ao transexualismo, há a dificuldade, freqüentemente reencontrada, da distinção entre perversão e psicose.
Já estabelecemos suficientemente, creio, que o invólucro não é o véu.
Não estamos aqui na ordem da montagem e do falso semblant.
É curioso notar que, no comentário de Joyce, permanecemos no mesmo questionamento incansável: Joyce era um perverso, um masoquista, Joyce era louco?
O tema do masoquismo, presente na escrita, nas obras e na correspondência, e esclarecedor da relação com a sua mulher Nora, não pode ser elucidado sem que se acentuem duas dimensões estruturais, a de um corpo tratado como um corpo estranho e a de uma mulher divinizada, espécie de mandorla na qual ele se envolve com repugnância.
Certos transexuais se apresentam com uma elaboração francamente delirante, outros conservam umadiscursividade aparentemente usual, e foram esses casos que fundamentaram o uso do termo “transexualismo verdadeiro” ou “primário”.
Essa distinção, por si só, justificou a validade da demanda cirúrgica e os procedimentos jurídicos relacionados à mudança de registro civil.
Estamos, entretanto, habituados a mais circunspecção na análise do discurso, e a psicose não está em contradição com a razão, com a lógica, com uma certa força de persuasão e até mesmo com a genialidade.
Para mantermos nosso propósito e continuarmos a interrogar a singular capacidade de colocar um corpo ou uma parte do corpo entre parênteses, lembremos simplesmente o espantoso percurso de um Jean-Jacques Rousseau.
Seu acesso à sexualidade é inegavelmente marcado por essa colocação entre parênteses do órgão sexual, e pelo retorno do mesmo órgão de um modo instrumental, com as conseqüências médicas e psicossomáticas que conhecemos.
O valor simbólico e o uso do órgão sexual são ambos colocados num desconhecimento que explica os imprevistos de seu posicionamento diante das mulheres e o aparecimento de elementos nitidamente interpretativos quando se faz uma forçagem na direção dessa forma de renúncia.
A dimensão dita de foraclusão do Nome-do-Pai é aqui bem nítida por termos outras coordenadas dela operando em suas teorias sobre a educação e a pedagogia.
Lembremos, enfim, que nessa psicose também está presente esse caráter de vontade, de engajamento, de obstinação que encontramos na vertente passional do transexualismo.
Rousseau compartilha esse traço clínico estrutural com o transexual: o gozo de órgão, o gozo fálico, é rejeitado, e é um tipo de gozo Outro que passa ao primeiro plano; mais no campo escópico para o primeiro, no campo cutâneo e tátil para o segundo, mas a dimensão do olhar, pela beleza, está associada aí.
O transexual visa menos, contudo, ao gozo do Outro do que a esse gozo Outro, do invólucro, com forte polaridade auto-erótica.
CONCLUSÃO E QUESTÕES
Dedicamo-nos à análise do gozo dito por nós do invólucro, tentando demonstrar sua presença específica no campo do transexualismo, tanto masculino quanto feminino, mesmo se nesse caso os documentos clínicos pareçam menos explorados.
Esse gozo, singularmente Outro, parece-nos desconstruir e refutar as distinções entre transexualismo primário e secundário, ou ainda transexualismo verdadeiro e transexualismo delirante.
A questão da nomeação permanece central num quadro em que o paciente deseja, antes de mais nada, ser dito, ser chamado, do sexo oposto ao seu sexo anatômico, tornando por isso mesmo a saída cirúrgica uma solução não somente custosa por sua desmesura, mas também eticamente duvidosa em seu lado demiúrgico.
Resta compreender melhor o lugar e o estatuto do objeto nesses quadros clínicos e explicar a divisão identificada entre o olhar e a pele.
Será que poderemos dizer que o objeto aqui não está diferenciado a esse ponto e que, por conseguinte, se trata do mesmo objeto?
O olhar veria o que não pode ser visto ordinariamente: o um é o outro; o outro sexo é O sexo… Toda a montagem do esquema ótico está aqui remanejada num transitivismo que tangencia radicalmente a diferença dos sexos.
Diremos que o objeto e a imagem, estruturalmente disjuntos, se conjugam no lugar da vestimenta que enfim dá fé do sujeito?
Podemos notar quanto a isso que, nas raras observações de crianças que pudemos ouvir, está bem indicado que a angústia ligada à questão da identidade sexuada se reabsorve, quase automaticamente, assim que o sujeito se adorna com a vestimenta de eleição.
Muitas interrogações ficam assim para prosseguir, porém o mais surpreendente ao final do percurso é mesmo este fato novo: graças à medicina, um novo “Sujeito” vem à luz, aquele com a pele virada pelo avesso.*
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* La peau retournée – Remarques sur la jouissance d’enveloppe. Em Sur l’identité sexuelle: à propos du transsexualisme. Ouvrage collectif. Collection Le Discours Psychanalytique. Éditions de l’Association freudienne internationale, Paris, 1996.
1 STOLLER, R. The transsexual experiment. Vol. II: Sex and gender. Aronson, New York, 1975.
2 EY, H., BERNARD, P. e BRISSET, C. Manuel de Psychiatrie. 4a edição. Masson Éditeur, 1974.
3 SAPHOUAN, M. “Contribution à la psychanalyse du transsexualisme”. Em Études sur l’Oedipe – Introduction à une théorie du sujet. Éditions du Seuil, Paris, 1974.
4 LACAN J. Le Séminaire, livre XXIII: Le sinthome (1975-1976). Seuil, Paris, 2005.
5 KRAFFT-EBING. Psychopahtia sexualis. Étude médico-légale a l´usage des medecins et des juristes (1896). Payot, Paris, 1963.
6 KRAFFT-EBING. Psychopahtia sexualis. Observation 129. Op.cit. Também em Sur l’identité sexuelle: à propos du transsexualisme. Ouvrage collectif. Éditions de l’Association freudienne internationale, Paris, 1996. As citações que se seguem, nesta página e na seguinte, são da mesma observação de caso.
7 CZERMAK, M. “Precisões sobre a clínica do transexualismo”. Em Paixões do objeto: Estudo psicanalítico das psicoses. Artmed Editora, Porto Alegre, 1991.
8 Archives d’Anthropologie Criminelle nº 174, junho de 1908. Também publicado em CLÉRAMBAULT, G. G. Oeuvre psychiatrique. Presses Universitaires de France, Paris, 1942.
9 N.E. – O artigo de 1910 está publicado adiante, neste volume: “Paixão erótica pelos tecidos na mulher”, pp. 211-217. Contém uma quarta observação de caso, que reforça as conclusões do primeiro trabalho.
10 CZERMAK, M. “Precisões sobre a clínica do transexualismo”. Op. Cit.
11 LACAN J. Le Séminaire, livre XXII: R.S.I. (1974-1975) (inédito).
* Tradução: Paula Glenadel. Revisão da tradução: Patricia Reuillard.