Charles Melman
Aqueles que nos precederam, isto é, os gregos, distinguiam muito bem duas práticas diferentes. Uma, da qual eles diziam que se dava segundo a (2) , segundo as regras da natureza; e outra, que, ao contrário, se dava segundo a
(3) , ou seja, segundo as convenções que se podia estabelecer. A distinção é importante e é interessante para nós porque é fácil de apreender. Percebe-se logo a diferença: o crescimento de um carvalho, por exemplo, então, é evidentemente uma prática que se dá segundo a
, segundo as regras da natureza: planta-se uma semente e em seguida surge um carvalho. Por outro lado, se se trata de construir um navio, isso só se pode fazer segundo a
, segundo as convenções. É preciso, para isso, chamar um arquiteto: para que ele faça as plantas e os cálculos. Esta oposição encontra-se inclusive em Aristóteles, que se interroga, por exemplo, sobre a reprodução das camas – e, sem dúvida, não é por acaso que ele observa que, se quanto à madeira, para obter a madeira, basta justamente que isso se faça de acordo com as regras da
, para fazer uma cama é preciso um operário, e essa cama não poderia se reproduzir por si mesma. Esse tipo de distinção pôde, digamos, mexer com a cabeça de alguns gregos. Como, por exemplo, Pitágoras, que chegou ao ponto de dizer que, no final das contas, as leis da
, as leis da natureza, talvez fossem perfeitamente análogas às leis da
, da convenção. E, ainda, que o mundo talvez fosse inteiramente regido pelo número e que, ali mesmo onde se acreditava estar falando da natureza, se tratava apenas de número. Vocês sabem o golpe que foi, para os pitagóricos e para sua escola, a descoberta das grandezas incomensuráveis, a descoberta dos irracionais, o fato de que havia medidas, existiam distâncias que não se mostravam submetidas ao número inteiro.
Por que é que isso também nos interessa? Isso também nos interessa porque, afinal, a grande descoberta da psicanálise foi a de demonstrar outra vez – trata-se aí de um ressurgimento – que, para o falasser, para nós que conversamos, o que comanda a , isto é, a função da natureza para nós – o sexo, a reprodução –, pois bem, é perfeitamente idêntico ao que sustenta a
. Ou seja, que aquilo que para nós é o suporte de um funcionamento natural é regulado por um sistema que, não é que seja numérico, mas que é, em todo caso, análogo a todos os sistemas formais, isto é, os sistemas constituídos de elementos em si mesmos insignificantes, de pequenas letras. E as leis de composição dessas pequenas letras não são reguladas por nada além da propriedade, da própria natureza desses elementos.
Trata-se, como vocês sabem, isso que eu evoco aqui de maneira resumida, é preciso tentar sublinhá-lo bem, trata-se evidentemente daquilo que Freud anuncia com seu livro A interpretação dos sonhos: a estrutura do inconsciente é a da linguagem. E trata-se também, como vocês sabem, do texto de Lacan, que abre os Escritos com esse fragmento de seminário que trata d’A carta (4) roubada.
Evidentemente, é significativo que Lacan tenha escolhido esse texto para abrir essa coletânea que esse volume constitui. Com o intuito de dizer que essa oposição – que eu me permitiria chamar de trivial – que continua existindo para nós entre prática e teoria merece ser não apenas discutida, mas abolida, já que o que justamente nos mostra a experiência analítica é que isso que nós chamamos de prática, o exercício, por exemplo, o exercício sexual, é regido por um sistema constituído pelos mesmos elementos, os mesmos elementos formais, submetidos às mesmas leis formais que aquilo que chamamos de teoria. Lacan, por sua vez, não gostará muito de que se fale de teoria psicanalítica, menos ainda de teoria lacaniana, na medida em que a teoria, como vocês sabem, etimologicamente, está do lado da representação, do espetáculo, da imagem, ou seja, do modelo.
Ora, justamente, aquilo com que lidamos com os elementos de que nos servimos não constitui um modelo do inconsciente, já que aquilo com que lidamos são os elementos que constituem sua própria textura. Essa oposição, eu diria talvez – se concordam eu diria ainda uma palavra a respeito – entre prática e teoria, é uma oposição cuja origem o analista percebe bem. A origem está no fato de que há, em cada um de nós, efetivamente, um saber inconsciente.
E o essencial de nossa prática cotidiana, nossa prática de fala, nossa prática poética, amorosa, acha-se efetivamente regido, não tanto por isso que, por isso que vem se inserir no registro do aprendizado, mas é efetivamente regido por esse saber inconsciente.
E como sabemos, existe, aliás, uma certa resistência a qualquer aprendizado, seja ele qual for, é algo perfeitamente observável, não somente nas crianças, mas em nós também, na medida em que podemos experimentar esse aprendizado como um tipo de violência que quereria se exercer contra, finalmente, esse saber que está em nós, que nos rege e que nos conduz nos caminhos do gozo.
Concebe-se portanto que, num tipo de apercepção um pouco imediata, se possa ter tendência a querer opor o que seria da ordem do prático – o que funciona, o que temos certeza que funciona – à teoria que, por sua vez, de algum modo, se situaria do lado do discurso do mestre. Na realidade, o que a experiência analítica nos mostra é que esse saber inconsciente é que é o nosso mestre, que nos conduz de maneira completamente cega. Daí o interesse por um certo contorno, mesmo que seja através disso que se chama teoria, a fim de poder questionar aquilo que age nesse saber inconsciente, e a fim de nos interrogarmos também sobre o seguinte: como é possível que uma prática, da qual Lacandisse bem que se tratava de uma prática de falação – não sei por que seria uma vergonha, de alguma forma um descrédito, considerar a análise como um certo número de outras práticas também perfeitamente honoráveis que são, em última instância, práticas de falação –, como se dá, então, que uma prática de falação como a prática analítica seja suscetível de curar um sintoma, até mesmo de deslocar a subjetividade de um falasser? É essa a verdadeira questão, mas é isso, digamos, que deve nos espantar e que deve alimentar nossa reflexão. Como é que isso é possível?
E isso deve também nos levar a nos perguntarmos: será que a prática analítica é efetivamente bem-sucedida nisso? Será que ela efetivamente consegue o que ela aparenta, em todo caso, em seus textos, seus livros, e isso que ela aparenta permitir desse modo, será que ela o faz mesmo?
De um modo muito geral eu me permitiria dizer-lhes o seguinte, mesmo me arriscando, de saída, a chocar um pouquinho: é que a prática analítica é uma experiência da crueldade. E isso não por causa da boa ou má vontade do analista, por causa de suas boas ou más intenções, mas crueldade porque não há outra lição a tirar daí além da crueldade que está em nossa dependência em relação à estrutura. Mesmo se tudo que é da nossa estrutura, do nosso ensino, da nossa religião, visa a mascarar essa crueldade; recalque, portanto, em nossa cultura, da crueldade. E poderíamos dizer que a neurose, por exemplo, é da mesma forma, essencialmente, um recalque da crueldade.
É bem por isso que ela o mantém, pois, evidentemente, não há nada assim como o recalque para manter o que se acha jogado nos subterrâneos. Evidentemente, eu poderia logo imajar (5) aquilo de que se trata nessa crueldade servindo-me banalmente da etimologia, dizendo que o que nós desejamos, por exemplo, em nosso próximo, está além de sua pele, o que quer dizer sua carne, mesmo sangrenta. Trata-se de sua “cruor”.
Eu poderia também, se quiserem, referir-me a esse artigo de Freud Bate-se numa criança, fantasia extremamente difundida. Em Bate-se numa criança, quem é se? É despersonalizado. De início é o pai e, em seguida, não se sabe mais quem é esse se.
Poderia ser dito que a relação do falasser se trata efetivamente de estar, quanto à estrutura, numa relação em que não somente ele se acha batido, mas em que, além disso, se trata de dizer que ele procura, que ele deseja ser batido.
Essa crueldade, que a psicanálise vem, assim, nos revelar naquilo que é a verdade de nossa relação com a estrutura, em nossa relação com o Outro, será que ela seria, essa crueldade, para nós, um tipo de nova sabedoria que teríamos que respeitar? Sem o que, evidentemente, a recalcando, nos tornaríamos, ficaríamos neuróticos. Coloco simplesmente a questão. É evidente que eu não trago resposta aqui. Chamo simplesmente a atenção para o fato de que, se é exato que a verdade de nossa relação com a estrutura é fundada na crueldade, tanto aquela que experimentamos em relação ao Outro quanto aquela que ansiamos experimentar para nós mesmos e fazer experimentar pelo nosso próximo, só teríamos aí, de alguma forma, uma espécie de escolha entre, finalmente, esse tipo de moderação introduzida pelo recalque e pela neurose, ou então a verdade. Ou seja, a revelação dessa crueldade. O que escolher?
Pouco importa aí o que foi a posição pessoal adotada por Lacan, mesmo se sua posição pessoal pôde ser interpretada por alguns como sadismo. Guardaremos sobretudo, se vocês estiverem de acordo, que a verdade dessa relação com a estrutura é a de nosso masoquismo fundamental, de nosso masoquismo essencial.
Isso que eu estou dizendo é facilmente observável no próprio meio analítico – não terei necessidade para isso de ir procurar acontecimentos próximos de nós –, me contentarei em dizer, evocar para os que conhecem um pouco o que se passou em torno de Freud, que a história do movimento analítico é, precisamente, a dessa crueldade. Essa crueldade, tradicionalmente reservada aos reis, na medida em que ela parece inerente a seu estatuto, já que, se o dever é o de ir até o fim, deve-se entendê-lo em primeiro lugar como um dever real: como recusar a um rei ter que ir até o fim, exceto como Hamlet, se ele se recusa, certamente, a mostrar sua neurose?
Seja como for, já é curioso observar como uma prática que não é nada mais que falação é suscetível de interrogar o mais essencial de nossa relação a nosso semelhante e ao mundo. Por exemplo, questão que emerge inelutavelmente em nossa prática, o outro, o pequeno outro, nosso semelhante, ele é um sujeito? Os filósofos não esperaram por Freud – penso em Hegel – para sublinhar a impossibilidade da coexistência das consciências e a luta que se engaja com meu semelhante para me fazer reconhecer por ele.
Desde então meu desejo se descobre querer reduzir esse semelhante ao estado de objeto. Redução que se acompanha, no mesmo instante, de minha decepção por tê-lo matado, já que, afinal, é por ele, esse semelhante, que eu queria me fazer reconhecer.
Em Rousseau – falo de Rousseau já que eu me interessei por ele para vir aqui (6) — pode-se seguir muito bem sua tentativa de escapar a esse dilema, ou seja, ou tornar-se servidor, escravo e ser reduzido ao estado de objeto, ou então se fazer reconhecer como mestre, mas reduzindo, ao mesmo tempo, seu semelhante ao estado de objeto, matando-o e tornando-se um mestre sozinho. E percebe-se muito bem essa tentativa nesse genial Rousseau, essa tentativa de resolver essa contradição estabelecendo um tipo de igualdade, de reciprocidade absoluta. Como se sabe, esse transitivismo assim disposto por Rousseau é, seguramente, um dos meios, um dos caminhos que puderam conduzi-lo à loucura.
Para dizer, portanto, que há uma prática do tratamento analítico que é suscetível, aí, nessa questão essencial, de fazer experimentar pelo sujeito, o que é, nesse ponto, a verdade de seu desejo. Quem dirige o tratamento analítico? Quem é o mestre? Ou então, ainda, quem deseja ser o mestre desse tratamento? E se um dos parceiros torna-se o mestre, de onde ele exerce essa mestria, já que há lugares completamente diferentes de onde ele pode exercê-la?
Isso, então, para sublinhar que existe um modo de prática analítica que permite – e era, naturalmente, já que eu falo aqui a respeito da prática de Lacan,era, naturalmente, isso fazia parte de sua prática –, que permite imediatamente tornar sensível, pela relação analítica, tornar vivo, experimentado, falado, verbalizar o vivo e o essencial dessa questão. E é por isso que se pode compreender que a prática deLacan tenha, de algum modo, se mantido à distância de uma prática, eu diria, clássica, que é aquela de nosso conforto – Lacan praticava no desconforto – e que consiste, justamente, por exemplo, em prever os encontros com seu semelhante, prever esses encontros regidos por uma exatidão no horário e igualmente na duração, que, então, não põe em primeiro plano essas questões que acabo de evocar. E sabe-se, por exemplo, o quanto o neurótico obsessivo, justamente, se agarra ao que é uma exatidão, ao que é esse rigor no tempo e isso, justamente, como bem adequado para recalcar o que tem a ver com a assimetria e o conflito próprios a todo encontro. Também é verdade que a civilidade recomenda, em qualquer encontro, esse tipo de polidez no que concerne aos horários e no que concerne, igualmente, a isso que seria dessa ordem de reciprocidade com o semelhante. Essa prática, esse modo de prática analítica está, assim, em condição de dar relevo, e não é sem interesse que em nossa época, que eu me permitiria chamar de democracia mole, o desejo mais disseminado é o de encontrar um mestre, um bom mestre.
Não se trata de um mestre gentil, o bom mestre. O bom mestre é aquele que vai até as conseqüências da mestria: ou seja, que trata vocês como um dejeto. Trata-se de algo que não é exatamente supérfluo saber, diante, é claro, de tudo que, por outro lado, se pode imaginar quanto ao que constitui nossas qualidades, nosso gosto pela liberdade.
É na medida em que Lacan pôde ter a medida desse desejo que, para ele, se tornou mais incômodo que analistas pudessem se tornar servidores de uma causa. Ou seja, digamos as coisas claramente, deixarem completamente de ser analistas. Por quê? Porque a causa analítica, não se trata, justamente, de servi-la. Não se trata de servi-la porque a causa analítica mostra justamente o de que se trata em todas as causas, a verdade do que funda a causa. Não há que servi-la já que ela não é nada.
Ao contrário, a causa analítica, há seguramente que vivê-la. O que é coisa completamente diferente, como estou tentando mostrar a respeito de uma prática, a de Lacan, que tentava vivê-la, essa causa analítica, a despeito dos sarcasmos, da incompreensão que geralmente o acompanhavam.
Outra questão fundamental, a primeira: o outro, meu semelhante, ele é um sujeito? A outra questão fundamental é que uma prática analítica é suscetível de, rapidamente, pôr em evidência um Outro, o Outro, o grande Outro.
Todos nós, aqui, mesmo se não sabemos disso, estamos persuadidos de que ele existe. Ou seja, estamos persuadidos de que há, em algum lugar, alguém que nos guia ou que cuida de nós, e que, no final, tudo isso que nos acontece acabará se ajeitando. Isso que chamamos de humanismo, por exemplo, não é nada mais do que a suposição de que esse Outro, esse grande Outro, é constituído por um olhar. E que esse olhar, trata-se de satisfazê-lo. Em outras palavras, que nossa qualidade moral é de nos embelezarmos para esse Outro, a fim de que ele possa gozar de nós e, desse modo, permanecer ligado a nós. Somos todos um pouquinho schreberianos quanto a isso. Temos todos a tendência a querer captar para nós o olhar desse Outro, mesmo que seja, como sabemos, nos disfarçando.
O que é, talvez, mais vivo, é que é muito raro que sejamos capazes de suportar um desejo em nós sem imaginar, sem pensar, que esse desejo é sustentado pelo Outro. É dele que recebemos os imperativos e os comandos de nosso desejo. É muito raro que sejamos suficientemente audaciosos, suficientemente impremeditados para arriscar, assim, sustentar nosso desejo sem esse apoio, sem essa autorização recolhida no Outro. Eu me sirvo desse termo “autorização” intencionalmente, voltarei a ele, talvez, daqui a pouco. Descartes, por exemplo. Ele empreende algo perfeitamente sistemático, trata-se de um empreendimento verdadeiramente subversivo, completamente essencial e radical. Mas ele só pode sustentar seu empreendimento, seu objetivo sistemático, com a condição de supor que existe esse Outro não enganador.
Essa questão da existência do grande Outro é central na prática e fica claro que é perfeitamente possível evitar que seja questionada essa existência do Outro; por exemplo, quando a intervenção do analista se resume ao grunhido, quer dizer que existiria uma voz no Outro – falei do olhar, mas também uma voz. Não há religião que se sustente a partir de uma experiência que não tenha sido auditiva. Isso não pode funcionar somente por um escrito, é preciso que tenha havido uma intervenção da voz no Outro. Ou então, ainda, quando o analista prefere manter um sábio silêncio, que também faz valer a possibilidade do vazio, o lugar da voz que sempre poderá vir.
Lacan, por sua vez, não hesitava em interpretar, ou seja, falar – falar, e não somente para interpretar – e mesmo, eventualmente, aquilo que ele dizia testemunhar dessa maneira seus próprios limites, mesmo seus erros. Um analista que se engana, isso não é forçosamente um mal. Se vocês retomarem a observação do homem dos ratos, e as notas que foram recentemente publicadas, verão o que foi a alegria do paciente ao constatar o quanto Freud, em suas interpretações, estava completamente por fora. E o problema não é só o do paciente – o que, afinal, não é o essencial do tratamento –, mas é o dos efeitos liberatórios que isso possa ter tido para ele, paciente. Não se trata, evidentemente, de recomendar o erro sistemático. Trata-se, simplesmente, de sublinhar que um analista que fosse impecável – a fantasia do analista perfeito – concebe-se como ele não poderia senão perenizar essa fantasia de que existe um sujeito no saber, que o saber é suportado por um sujeito e que esse sujeito pode, eventualmente, ser o analista.
Em outras palavras, pode-se ver como o analista que fosse impecável arriscaria, se não se precavesse, se ele mesmo não tomasse cuidado com isso, pois bem, ele arriscaria perenizar a transferência. Já que, como sabemos, o amor é a mola da análise, mas é também seu principal obstáculo, já que constitui uma defesa, tanto em nossa vida cotidiana quanto na experiência analítica. Uma defesa contra essa verdade de nossa relação com a estrutura que eu evoquei há pouco. Se há um meio de se defender contra um mestre cruel é, seguramente, responder a ele pelo amor.
Toda a nossa prática, eu diria banal, que uns e outros podemos ter, nos ensina seguramente o seguinte: não se cura alguém do amor lhe dando pontapés, nem dizendo a ele que seu amor é um engano, que não é um amor verdadeiro. Sabemos muito bem que esses diversos procedimentos só fazem, em relação a esse amor, exacerbá-lo, e são interpretados pelo apaixonado e pela apaixonada como meios de reativação. Há, de fato, uma única maneira de tentar levar esse sintoma ao que poderia ser seu termo, que é forçar esse sintoma até seus extremos. Em outras palavras, não recusar-se a ele, mas, ao contrário, fazê-lo vir até seus extremos, até seu termo. E sabemos que o termo do amor forçado, desse modo, até seu extremo, se chama tormento, impotência e ódio.
O que eu digo aí, mesmo se isso tem um ar paradoxal, persiste em velhas suspeitas muito comuns. É dessa forma que uma acusação feita durante muito tempo à prática lacaniana foi a de manter a transferência. Penso que essa acusação se alimentava do que era a ignorância da dialética: o amor não tem saída, não tem saída circunstancial, não tem saída justa a propósito dessa ou daquela pessoa; o amor só tem saída verdadeira com a condição de ser forçado até seu termo, e isso, mesmo que seja às expensas daquele que provoca assim esse termo, ou seja, que consente em se expor ao ódio. E sabe-se que este não deixou de vir em retorno a Lacan…
(…) Como é que um analista pode entender uma tal disposição senão como vindo sustentar essa fantasia, de que nossa relação ao objeto – esse objeto que nos escapa, que nos falta –, de que nossa relação ao objeto se acharia desde então regulada pela distância, pela temporalidade. Com essa idéia de que bastaria prosseguir suficientemente nosso caminho, ou então de que bastaria esperar o tempo suficiente, de dar tempo para, esse objeto, atingi-lo.
Trata-se aí de nossa relação efetivamente subjetiva mais comum em relação ao tempo e ao espaço. É verdade que, de certa maneira, se trata de transcendentais sintomáticos que fazem parte de nossa neurose. Mas é verdade que continuamos pensando que, se fôssemos capazes de ir até onde é preciso, de ir suficientemente longe ou, ainda, se fôssemos capazes de dar o tempo necessário, chegaríamos lá.
Há um uso do tempo que permite uma escansão totalmente diferente, mostrando que esse tempo que vivemos não é um tempo homogêneo e que dessa forma é possível distinguir aí o tempo para ver, o momento de compreender, o instante de concluir. Remeto-lhes, aqui, ao texto de Lacan sobre O tempo lógico e a asserção da certeza antecipada (7) . Uma distinção tal que leva a essa heterogeneidade do tempo, não mais neurótica, mas que eu diria constitutiva de nossa subjetividade, uma tal distinção não tem somente valor estético. Tem, igualmente, um grande valor indicativo, mesmo que entre nós – é verdade que em nossa relação com o tempo passamos o essencial de nosso tempo esperando –, que nos acontece bem raramente em nossa existência fazer operar esse instante de concluir, ou seja, fazer um ato. Estou seguro de que há poucos entre nós que puderam ter essa disponibilidade para não mais se contentar em esperar, mas estar em condição, em sua própria vida, de fazer um ato. Isto é, concluir de tal maneira que o que se abre para o sujeito seja diferente do que ele tinha vivido até então. E por que isso? Por que é que continuamos assim na espera? Estamos assim na espera porque continuamos esperando que esse ato decida por nós a partir do Outro, que seja o Outro que decida por nós.
Quanto ao uso do espaço na prática analítica e à possibilidade, aí também, de fazer valer que o espaço não é homogêneo e que o espaço pode ser, entre outros, marcado por fronteiras, por cortes, por limites, pois bem, existe, aí também, uma prática analítica, era a prática de Lacan, suscetível de mostrar que o espaço do consultório é um campo ideal para testemunhar que a distância que o analista ocupa em relação ao divã não é regulada pela medida. Que o analista pode estar muito próximo, próximo demais; e que também, às vezes, ele pode se aproximar do divã, ficar bem perto do analisante mas, no entanto, lhe fazer perceber que essa pequena distância métrica é regida, mesmo assim, por um limite intransponível, por uma fronteira.
Portanto, como eu tento, a propósito desses poucos elementos, fazer valer para vocês aquilo que poderia, de alguma maneira, dar sentido às singularidades da prática lacaniana, da prática de Lacan, somos obrigados a concordar que essa prática analítica é efetivamente escandalosa. Tive ocasião de ler um dossiê de imprensa que amigos belgas tiveram a boa vontade de preparar para mim sobre o que se escreveu aqui, recentemente, sobre a análise, e se apresentou ao grande público, como se diz, de maneira bastante ofensiva para ele, tratando-o como muito pouco evoluído, mas sublinhando esse fato, para o grande público, de que a prática analítica é escandalosa. Eu creio que é verdade. Ela o é, se ela desfaz as nossas convenções, se ela as desfaz para deixar emergir o que essas convenções tentam remediar. Mas essa prática escandalosa só pode se validar por uma questão essencial, que é a de sua finalidade. A esse respeito, essa prática de falação, o tratamento, será que ela é apenas aquilo que terá sido em nossa vida uma provação, a ocasião mesmo de desabafar, de experimentar e exercitar uma relação outra para, uma vez terminado, retornar aos nossos hábitos? Ou então essa prática analítica poderia se concluir por esse ato que faria para o sujeito, que permitiria ao sujeito essa rotação que lhe permitiria se desprender das alienações da neurose? Isso não quer dizer, desde logo, que o sujeito não está mais alienado. Nós o somos, todos, alienados. Alienado, no fundo, é a palavra para designar o Outro. E somos todos dependentes desse Outro. Não se trata, então, para o falasser, de visar ao que seria, assim, um tipo de liberdade, de devaneio ou de sonho. Mas trata-se, para o falasser, de saber se, pelo tratamento analítico, por essa prática de falação, ele está em condição de acertar suas contas em relação a essa estrutura; ou seja, não mais se defender dela pelos sintomas da neurose, mas reconhecer sua dependência à estrutura como o que ela é, com todas as conseqüências que pode ter esse reconhecimento. Sem que se possa concluir que esse reconhecimento possa permitir acabar com essa crueldade de que eu falava antes. O único ponto de que poderíamos estar certos é que a neurose, em todo caso, ela fomenta essa crueldade.
Lacan falou, então, disso que seria um des-ser terminal no tratamento. Mas é verdade que esse des-ser, ele o colocava do lado do analista. É que o analista, no fim do tratamento, se achava assim como o objeto que ele tinha vindo de alguma forma encarnar, o objeto causa do desejo, que podia, no fim do tratamento, revelar sua verdadeira natureza, e revelar que seu suporte não é nada mais que o furo. Então, esse des-ser terminal, que é aquele experimentado pelo analista, podemos dizer por isso que temos um testemunho dele do lado dos analisantes? Ou então podemos falar tão facilmente de fim de tratamento para os analisantes? Nem que fosse por aqueles, afinal, que de vez em quando testemunham o anseio de se tornarem analistas, e se põem a exercer como tal?
Tudo o que posso dizer, seguramente, é que as turbulências que agitam uma vez mais o meio analítico parecem bem testemunhar que ainda somos obrigados a nos interrogar sobre esse fim do tratamento. Aliás, Lacan tinha feito, indiscutivelmente, há vários anos, seu julgamento, já que, como vocês talvez saibam, durante seus últimos anos sua prática se tinha modificado até tornar-se o escândalo sublime, pois tinha se reduzido a uma troca com o analisante reduzida ao mais estrito simbolismo. Nessa troca, o amor, o desejo, o tempo, o esforço, a boa vontade, tudo isso só obtinha em retorno, em troca, nada. E, sem dúvida, Lacan pôde, ele mesmo, constatar que essa prática desses últimos anos não parecia, entretanto – e o paradoxo está aí – ter resultados tão mais satisfatórios que os precedentes, já que esse próprio nada parecia ainda demais e bastava uma palavra inevitável, uma palavra banal, um gesto, um erro, até mesmo uma violência, para que essas manifestações banais se vissem carregadas das mais altas significações. Podemos pensar que não fosse o anseio de Lacan que essas expressões reduzidas assim a sua mais extrema consistência permanecessem, entretanto – e talvez mais, na medida em que eram assim reduzidas –, permanecessem assim carregadas de significações que o sujeito ansiava encontrar de tal forma eloqüentes ou ricas. Pois o que é verdadeiro é que para ele,Lacan, a prática da interpretação visava primordialmente à restituição desse não-sentido que é a verdade última da estrutura.
Esse mundo constituído de pequenas letras e que nos organiza na medida em que, enquanto sujeitos submetidos ao inconsciente, dependemos delas, esse mundo constituído de pequenas letras não tem o menor sentido. E isso é, seguramente, o que constitui nossa verdade. A partir daí, podemos concluir que nós todos, no conjunto, a partir dessa prática que acabo de evocar – era essencialmente a deLacan –, pois bem, nós, seus alunos, nós que queremos nos inspirar nele, nós somos antes pessoas gentis pois, para dizer a verdade, somos facilmente tomados por essa aspiração, por exemplo, a defender nosso semelhante contra esse conflito inelutável do encontro. E é verdade que teríamos facilmente tendência a fazer como o neurótico, isto é, devotar nossa vida a camuflar a castração. É verdade que temos vontade de ser terapeutas. Terapeuta, isso quer dizer algo muito preciso: dar a alguém o meio de se arranjar, de se virar. Se arranjar, se virar com quê? Por exemplo, com essa outra verdade última de que não há relação sexual. Que é uma formulação da qual não medimos todas as conseqüências e todo o alcance. Ou ainda essa outra formulação que é muito próxima: “A mulher não existe”. E não medimos o quanto essas formulações vão contra uma forma de ajustar nossa existência. Então, se somos assim antes gentis, embora se possa dizer sobre alguns entre nós coisas não muito essenciais, somos ainda assim gentis. E Lacan tinha tendência a nos classificar: mas como eles são gentis!
Então a questão com a qual eu concluirei, se vocês concordam, é a seguinte: nisso tudo, qual é nossa herança? Eu diria que nossa herança está, sem dúvida, de certa maneira, queiramos ou não, nesse avanço operado por Lacan, a quem devemos esse trabalho. A herança que temos de Lacan é que, no que diz respeito à análise, na medida em que queremos fazer análise, só podemos nos fiar em nosso desejo. E a questão se coloca hoje para nós como se colocou para ele durante muito tempo: a análise deve contribuir para a mistificação de nossas existências ou, como ela revela ter os meios, deve trabalhar para desfazer essas mistificações?
Para isso é necessário o desejo de ao-menos-um-analista, como foi Lacan – havia ao-menos-um – e que esse analista corra riscos como ele correu. Em resumo, que se exponha como fez Lacan, fazendo o clown. É divertido que o tenham tachado disso. Penso que as pessoas que puderam tachá-lo assim são um pouco incomodadas por sua própria seriedade. A dificuldade é que esse analista ao-menos-um, se ele se põe a fazer valer esse desejo para que isso continue, já que isso pode cair – já caiu em um grande número de países em que se continuava a invocar Freud, por uma razão muito simples, porque não havia ninguém para sustentar esse desejo. Ora, trata-se de um desejo, o desejo do analista, extremamente paradoxal. Trata-se, com efeito, de um desejo que em nenhum caso pode se sustentar no Outro, ou seja, o analista só pode se autorizar por si mesmo. Isso não quer dizer que qualquer um possa se instalar como analista. Isso quer dizer que não há, em parte alguma na estrutura, o que quer que seja que, de alguma forma, constitua a autorização para o analista. Existe na estrutura isso que constitui a autorização do desejo sexual. O Nome-do-Pai é algo que, evidentemente, prescreve o desejo sexual. O desejo de maternidade está perfeitamente inscrito na estrutura, também por causa do Nome-do-Pai no Outro. Mas o desejo do analista não está inscrito em parte alguma. Em outras palavras, o analista não pode contar senão consigo mesmo se ele quer continuar. E o paradoxo é que a dificuldade que ele vai encontrar, ela vai se situar, em primeiro lugar, em seus próprios colegas analistas. Está aí o paradoxo da situação. É, como vocês sabem, o que aconteceu a Freud, a Lacan, e compreende-se porquê. Porque pode haver, há no próprio analista um tipo de desejo de que isso se acalme, que todas essas turbulências que tentei agitar diante de vocês entrem em calma. Um tipo de preocupação, finalmente, de tomar alguma distância de tudo isso, quando emerge entre eles, analistas, o mal-educado, o grosseiro, cujo desejo louco, imotivado, que não encontra nenhuma justificativa no Outro, que não pode se sustentar por uma fantasia, pois a fantasia é o que o analista questiona; quando surge um assim entre eles, os analistas começam facilmente a reagir diante dele de um modo que eu me permitiria chamar de paranóico, no sentido de que eles vêem nessa tentativa de retomada uma tentativa de manipulação. E quando aquele que tiver a audácia, o jovem analista corajoso, a audácia de querer fazer com que prossiga essa exploração dos infernos, e que não somente ela prossiga mas que ela possa encontrar um termo, que eu não diria que nos libere desses infernos, mas que, em todo caso, não faça de nós as vítimas passivas desse lugar; eu diria que aquele que tiver esse desejo, a coragem e a inteligência de retomar e prosseguir, se exporá, sem dúvida nenhuma, e da parte mesmo de seus próximos, a um certo número de dificuldades.
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1. Bruxelas, Palais des Beaux-Arts, 5 de março de 1982. Publicado em Clinique psychanalytique et lien social. Bibliothèque du Bulletin Freudien e Association freudienne internationale. Tradução de Sérgio Rezende.
2. Fisis (N.T.).
3.Tesis (N.T.).
4.Lettre – letra, carta.
5. Dar uma imagem. (N.T.)
6. Alusão feita à conferência que C. Melman fez no dia seguinte, Jean-Jacques Rousseau e o delírio de interpretação.
7. J. Lacan, Écrits, Paris, Seuil, 1966, pp. 197-213.