Charles Melman
Em Estrasburgo, maio 2004
Meus colegas de Estrasburgo, ao me convidarem, sem dúvida, em grande parte, em nome da amizade, não sabiam que, ao fazê-lo, estavam convidando um especialista em incesto! (risos) Especialista involuntário, na medida em que tive, durante vários anos, uma atividade de supervisor junto a assistentes sociais da cidade de Paris. Elas me expunham, durante nossos encontros, os problemas difíceis que encontravam em sua prática e, para minha grande surpresa, constatei, em primeiro lugar, o número importante de problemas dessa ordem e, em segundo lugar, o tipo de engajamento pessoal muito intenso, muito violento, muito passional, no sentido de que fossem punidos os culpados, que eram, evidentemente, determinados de acordo com a lei, e as denúncias estavam relacionadas à posição assumida por elas, mas, também, seu engajamento muito pessoal naquilo que era a preocupação de que o culpado fosse punido. Com isso, de modo muito tímido, fui levado a interrogá-las sobre o que acontecia com a criança nessa situação e sobre qual era a maneira pela qual podíamos testemunhar nosso interesse por ela e por seu futuro, particularmente seu futuro de adulto e sua participação na vida sexual; portanto, interrogá-las para saber se o fato de punir o culpado constituiria o termo ou a modalidade justa de resposta, sublinhando o que deveria ser nossa preocupação primordial, isto é, o futuro da criança. Pois, afinal, temos um papel, uma preocupação que parece bem terapêutica, antes de ser a do justiceiro.
Foi, então, com elas que, em grande parte, conheci o clima disso que atualmente se desenvolve em nosso país, não somente em nosso país, e que, certamente, pede nossa reflexão, a reflexão de vocês e todas as contribuições, forçosamente divergentes – não há por que elas serem comuns quanto a esse problema –, são preciosas. Então, eu me permito, nesse registro e nessa diversidade, trazer-lhes as minhas.
Perdoem-me se evoco problemas gerais, que vocês, talvez, já debateram, mas lembrarei a vocês que, no que concerne aos psicanalistas, eles foram bem cedo concernidos pela questão do incesto sob a forma do caráter muito geral de sua interdição. Foi uma grande surpresa, sentimento que os psicanalistas tiveram ao fazer a grande descoberta de que havia uma lei geral própria à humanidade, uma interdição comum a todos os seres humanos. As conseqüências vão bem longe, pois, se há uma interdição geral — não ouso dizer universal —, é porque há também um pai universal. Ali onde podemos constatar que há um fracasso das religiões no que diz respeito à universalidade do pai, podíamos constatar que havia um interdito partilhado por todos, que estipulava uma lei, tanto mais notável quanto ela não era escrita, quanto ela não era revelada, que se mostrava ativa, ad hoc; portanto, uma lei inconsciente, desconhecida daqueles mesmos que a fizeram, lei que fazia desse interdito um elemento maior da organização familiar e social.
Esse interdito, vou muito depressa, não vou retomar o que vocês já abordaram, Freud o reservou como concernindo eletivamente à mãe para o filho, esse interdito sendo a condição de acesso do filho à genitalidade. Para que o filho tenha uma vida sexual possível, uma identidade masculina possível, é preciso que se opere, para ele, a renúncia ao que é, no entanto, o objeto mais querido e que lhe corresponde bem, em certo número de casos; é preciso que ele renuncie, não há escolha, porque é assim. É estranho — eu, freqüentemente, chamo a atenção para isso – que nunca se veja isso no reino animal. No reino animal, o parceiro sexual é reconhecido por um certo número de traços físicos, mas nunca pelo fato de ter que renunciar ao objeto mais querido. Ora, para o ser humano, não somente ele teria tido que renunciar ao objeto mais querido, mas, ao fazê-lo, isso significa que toda a vida é um malogro, já que vocês renunciam, para poder viver a sexualidade, ao malogro fundamental. Portanto, vocês entram em um mundo estruturado pelo malogro e, como sabemos, nossas vidas sexuais são inscritas sob o signo daquilo que não vai bem.
Para Freud, portanto, limitação do interdito do incesto àquele com a mãe e constatação clínica de que, nos casos – vou dispensá-los do que pôde se passar em Roma, do que se passou no Egito, do que se passa entre os esquimós, onde o papai dá a filha antes que ela se case, bem, deixamos todas essas exceções de lado –, para chegar a essa conclusão surpreendente de que os casos conhecidos de incesto do filho com a mãe terminam mais freqüentemente em transformações psíquicas de tipo psicótico. Isso enlouquece. Portanto, um tipo de validação pela higiene, pela boa saúde, desse interdito do incesto do filho com a mãe, implicando, imediatamente, essa conseqüência bizarra de que, se o incesto está limitado a esta relação, isso quer dizer que as outras, que podem se produzir no seio do círculo familiar, mesmo, eventualmente, alargado, não pertenceriam a esse registro. Na realidade, os incestos filho/mãe não são muito freqüentes por razões que seria interessante estudar. Devo dizer que esse tipo de caso, em minha clientela privada, eu nunca encontrei. Não sei se os analistas, de sua parte, os encontraram, eu encontrei um caso em minha prática psiquiátrica, não me parece muito freqüente.
Em contrapartida, as relações sexuais entre os outros membros da família não são excepcionais. Observem, de imediato, de que maneira a relação — se eu sigo a linha freudiana eu não a chamo de incesto, eu a chamo pai/filha —, o quanto ela também aparece muito cedo na história da psicanálise sob a forma da neurose traumática, da histeria traumática, com um debate que alguns mantiveram até há pouco tempo: se a jovem alega ter sido assim submetida a relações, será que é em sua fantasia ou é verdade? Também não vou me estender quanto a isso, não é o centro de nosso interesse. É uma questão difícil, embora encontremos na clínica muitos casos em que a jovem tem o sentimento de que foi introduzida à sexualidade por uma ação violenta perpetrada, a sua revelia, pelo pai, quando ela dormia. Trata-se de uma situação ou de uma fantasia, que não tem nada de excepcional, que tem, evidentemente, conseqüências importantes sobre o desenrolar da existência, mesmo que, claramente ou de acordo com as lembranças e as informações fornecidas, nada se tenha passado. Ou seja, a fantasia por si só, inclusive com a incerteza que pode persistir na jovem, a fantasia por si só tem efeitos; em todo caso, não leva à psicose. Leva ao sentimento de ter sido vítima de uma arbitrariedade, vítima da autoridade, e de ter sido submetida ao que não queria, ou seja, à introdução na vida sexual, ser habitada pelo sexo – o que se supõe acontecer, no melhor dos casos, a cada um de nossos filhos –, de ter sido habitada pelo sexo de um modo interpretado como violento, o próprio pai sendo, forçosamente, o acusado. Isso não impede que haja um grande número de casos efetivamente autênticos, mas dá vontade de dizer quanto a isso que – acho que isso mereceria uma interrogação de todos nós – tenha sido real ou fantasiado, o efeito, talvez, seja o mesmo.
Tenho atualmente, na minha clínica, uma jovem cuja história é essa mesma, ou seja, essa idéia de que, quando ela era pequena, na cama dos pais, algo se passou, ela não sabe o quê, não tem nenhuma lembrança, mas algo deve ter se passado. Com efeito, é mesmo preciso explicar de que maneira ela pôde descobrir, um dia, que era habitada pela sexualidade. De onde isso pôde lhe vir? Como isso pôde entrar? É mesmo preciso responder a esse tipo de pergunta.
Chamo sua atenção, também, para o fato de que “o incesto” (entre aspas) irmão/irmã é freqüente. Não se pode dizer que ele seja forçosamente mal tolerado. Conheço ainda hoje o caso de um homem, que não é mais tão jovem, cuja vida foi toda marcada, de um modo que não é o da descompensação, mas de uma organização neurótica, pelo fato de ter tido relações sexuais com sua irmã, na juventude. Isso resultou num rapaz eminentemente inteligente, simpático, mas que passa o tempo a surfar pela existência. Não consegue se engajar em nada. Não consegue penetrar em nenhum domínio. Viaja muito freqüentemente, as viagens ocupam uma grande parte de sua atividade. Ele não ocupa lugar, inclusive em seu trabalho, que é um trabalho intelectual. Tem sempre o sentimento de que fica na superfície, e podemos ver esse sintoma como a conseqüência inesperada da culpa ligada a suas relações com a irmã.
Isso nos chama a atenção para a maneira original pela qual Lacan aborda a questão. Com efeito, ele não evoca aí o que seria um interdito recaindo sobre a mãe, mas uma oposição, exercida pelo pai, a que a mãe reintegre seu produto. Não é, de modo algum, a mesma coisa. Não funciona no mesmo registro, na mesma fantasia. Pois é mesmo certo que permanecemos todos na nostalgia desse período de nossa infância em que podíamos ter o sentimento de um acordo perfeito com uma criatura que nos amava, que nós amávamos, que, portanto, teria havido uma idade de ouro possível, aquela de uma congruência, de uma conivência realizada, até mesmo de uma língua secreta partilhada. O pai interviria, então, como aquele que vem quebrar, definitivamente, essa harmonia. Por outro lado, a concepção de Lacan quanto ao incesto é estranhamente generalizada, já que não se limita mais aos membros da constelação familiar, mas consiste em dizer, por razões de estrutura que não vou desenvolver, que o incesto é aquilo que se produz quando as relações sexuais sobrevêm entre pessoas que pertencem a gerações diferentes. Em outras palavras, quando alguém vai procurar na geração seguinte, ou na precedente, o parceiro que não deveria ser o seu, tendo em vista essa sucessão ordenada de gerações. É a posição dele, em todo caso, e eu a deixo para sua reflexão, se vocês quiserem, sem desenvolvê-la.
Seja o que for, se tivéssemos, nós, que definir hoje em dia, no contexto que estou expondo a vocês, o que é um incesto, sabendo que a lei, quanto a isso, nem mesmo inclui o termo, o que quer dizer que para a lei isso, por si só, não seria um delito, ela não define de forma alguma qual é a extensão do campo – onde começa e onde acaba? –, teríamos que tentar dizer, para nós, psicanalistas, um incesto é o quê? Há a resposta de Lacan, que lhes dei, havia a resposta de Freud, que, também, tem efeitos bem particulares. Poderíamos, também observar que, hoje, me parece, de maneira bem livre, que não há vida humana que não seja organizada por um interdito. O que especifica a vida humana é que ela é organizada por um objeto interditado. Um objeto que é recusado, e se verifica que esse interdito é congruente com o que diz respeito ao desejo, à organização do desejo e à manutenção da genitalidade e da sexualidade. Há, obrigatoriamente, um objeto, ao-menos-um objeto, que me é impedido. É a fórmula, dada por Lacan, da fantasia, na qual ele tenta mostrar que o sujeito do inconsciente é organizado pela perda de um objeto essencial, que ele chama de objeto a, pouco importa, mas há, sempre, um objeto interditado. Se não houvesse esse interdito, se, por exemplo, nós não o partilhássemos, não poderíamos nos entender. Se podemos nos entender, mais ou menos, é porque partilhamos esse traço: mesmo se, para cada um de nós, o objeto não é o mesmo, há, entretanto, um interdito.
Uma observação feita de passagem mostra por que as mulheres são menos sensíveis, menos vulneráveis a esse problema do incesto. É que uma mulher funciona num campo que lhe é próprio, no qual, justamente, a questão do interdito pode ser problemática; eu diria muito menos definida, estabelecida, do que no caso do parceiro masculino. Ou seja, uma mulher tem, a esse respeito, um pensamento muito mais livre, e talvez seja por isso que, diante do incesto, ela é menos vulnerável psiquicamente. Enfim, para aqueles entre vocês que teriam encontrado casos de incesto filho/mãe, a regra exige que seja, no entanto, a mãe quem esteja na posição de parceiro ativo. Creio que é totalmente excepcional ver o filho na posição de agente e, se vocês retomarem o caso-limite fundador, vocês verão claramente que Jocasta, por exemplo, tem uma posição muito fina, muito sutil, muito terna, muito inteligente; em todo caso, ela parece não ter estado, em nenhum momento, na ignorância do que se passava.
Portanto, essa questão para nós — enquanto participantes da comunidade humana, disso que nos é fundamentalmente interditado e que faz com que, ao mesmo tempo, o desejo seja o que transgride a lei —, tudo isso, seria preciso que fôssemos um pouco menos bárbaros, um pouco menos selvagens, para reconhecermos, enfim, que o desejo, trata-se do que é interditado e sua realização implica a ultrapassagem desse limite. Há um momento em que, opa!, não se pode mais ficar na borda. É cansativo. É realmente preciso que se transgrida. É por isso que me permitirei dizer que, a meus olhos, há duas formas de desumanidade: aqueles que, às vezes, com uma certa coragem e um certo topete, querem ir até o limite de sua fantasia, ir até a própria apreensão do objeto interditado; eles existem entre nós; e, depois, aqueles que desconhecem de tal modo nossa humanidade que exigem que nosso desejo tenha que franquear esse limite, mesmo se for para perder o objeto, e que, então, fazem imediatamente questão de polícia, ou de justiça, disso que é um dos traços da humanidade.
Como foi observado, os “culpados” negam sempre e, quando reconhecem, não se pode dizer que isso seja um progresso. Por que eles negam sempre? Porque o que é produzido não pode ser simbolizado. O que é produzido não pode vir à luz do mundo das representações. O que é produzido se passou num espaço diferente daquele das representações ou daquele do diálogo e da interlocução, o culpado só vindo ocupar esse outro espaço de maneira completamente intermitente, no momento desse ataque de loucura que a captura pelo desejo constitui, ele pode muito bem alegar: “Verdadeiramente não, por quem me tomam?”. Não se trata do eu deles. Não se trata deles tal como são conhecidos, com sua dignidade, sua seriedade, sua probidade, sua etc. Se alguém fez isso, foi outro alguém. E vocês reconhecem nesse dispositivo algo muito menos a classificar na rubrica da denegação, mas a reconhecer aí a clivagem própria à subjetividade humana. Cada um de nós é fundamentalmente clivado entre uma parte de nós que funciona no campo das representações e outra parte que funciona em um outro espaço, parte essencial, já que é aquela onde o desejo se exprime. É por isso que Lacan dizia que nunca se anda senão mancando, porque os dois pés não estão no mesmo espaço nem no mesmo ritmo e eles não se comandam, forçosamente, um ao outro, eles podem ser perfeitamente independentes um do outro.
Uma observação surge imediatamente a esse propósito: um dos fatores facilitadores nessa questão, que funciona no interior da célula familiar, está, como sabemos, em grande parte, ligado ao alcoolismo. De qualquer modo, não é raro o alcoolismo como uma tentativa feita pelo bebedor de franquear os interditos que limitam o gozo, de ir até o fim, até o termo, até esse limite que implica o eclipse da consciência, e o fato de que, incontestavelmente, um certo número de atos e de delitos são cometidos nesse estado em que o culpado pode dizer que, no limite, ele não estava lá. Penalmente ele está lá, mas subjetivamente ele não estava.
Tudo isso nos conduz à questão de saber por que, hoje em dia, o que era um problema de caso individual se tornou um problema de sociedade; isso é que é surpreendente, esse é o fato novo. Será que os casos são individuais? Em primeiro lugar, eles sempre existiram. Não se trata, no entanto, de legitimá-los, evidentemente. Mas é preciso notar que isso sempre ocorreu. O problema é saber por que essa questão, até então reservada aos meios especializados, bruscamente se tornou um problema social. Se fazemos hipóteses para saber por que se tornou, bruscamente, um elemento de nossa modernidade – de qualquer modo é estranho –, podemos dar respostas, entre as quais algumas se arriscam a parecer provocantes, provocadoras. Pode-se observar que entramos em uma economia social, que é a da permissividade, já que todas as perversões são permitidas e mesmo legalizadas e defendidas pela lei; que, evidentemente, essa permissividade infiltra o meio familiar, e que, se até aqui a vida familiar era o campo de provas onde a criança era introduzida à lei, à regra e, em particular a esse interdito de que eu falava, hoje em dia o que a criança – mas também seus pais – traz para o meio familiar são, forçosamente, as incidências dessa permissividade social. Seria fácil mostrar que, finalmente, o abuso do gozo, o excesso, a ubris, estão por toda parte. Nós os encontramos a cada esquina, os encontramos quando vamos ao cinema, os encontramos ligando a televisão, ligando o rádio. Assim, se esses casos são hoje mais numerosos, não podemos nos surpreender com o fato de eles terem uma incidência familiar, enquanto outrora a célula familiar preparava a criança para uma introdução na vida social que era, ela mesma, organizada pelo compartilhamento desse interdito. O que parece organizar, hoje em dia, nossa comunidade é o compartilhamento desse excesso, dessa ubris. Eis aí o que agora nos junta, nos reúne: é o a mais de gozo. Não se trata do gozo banal, ele é sem graça, é preciso um suplemento. Portanto, se é verdade que, hoje em dia, os casos seriam mais numerosos, não é preciso tomá-los como a propagação de um vírus ou de uma modificação genética! Nós vivemos diferentemente.
Nesse contexto, é preciso também notar que isso gira regularmente em torno da figura paterna, quero dizer sua denúncia, enquanto tornada suspeita. Aí também somos obrigados a fazer intervir essa mutação cultural que conhecemos e que faz, efetivamente, do pai a figura cada vez mais depreciada da organização familiar, mas nesse caso ela é, muito precisamente, suspeita. Suspeita a ponto de, como todos aqueles que trabalham com esses casos sabem, gestos de uma ternura banal feitos pelo pai a seu filho poderem ser etiquetados, catalogados como suspeitos, o que introduz um clima que, a esse respeito, é bastante especial. Penso que vocês tiveram oportunidade de ver esse “passaporte de segurança” – chamava-se assim – desenvolvido pela educação nacional e que era dado às crianças. Era para explicar a elas como deviam constantemente desconfiar e que, se houvesse um problema na rua, nos transportes ou em casa, o número do telefone etc. Não sei como é que uma criança em cujas mãos se põe isso não se torna paranóica! Perseguida pelo sexo! Está sujeita a vê-lo por toda parte. Está dito, literalmente, nesse papelucho, que, se um dia um adulto lhe der um bombom, de jeito nenhum, não aceitar de jeito nenhum. Não discuto as razões que fazem com que tenha se tornado um problema de sociedade, em que me parece que as preocupações políticas são prevalentes sobre as preocupações morais: trata-se de mostrar à população que se está vigilante, enquanto vivemos nas perversões públicas, as mais exibidas, absolutamente notáveis; o que era escondido, na margem, é… é assim mesmo, não se trata nem de encorajar, nem de se queixar. Trata-se de mostrar que o governo está atento, enquanto se sabe que a garotada entra na vida sexual em idades muito mais precoces do que o que era habitual. Evidentemente, já que isso também faz parte do nosso ambiente.
A questão que, acredito, é a dos terapeutas, dos educadores, ou dos professores, ou dos assistentes sociais, ou dos psicólogos etc., é saber se nosso problema se trata de punir ou de saber o que, caso a caso, deve ser imaginado para que se possa decidir pelo que for melhor para os interesses da criança. Não há dúvida de que existem crianças que, pelo fato de terem ido denunciar seu pai e de terem contado a história aos juizes, vão ter uma vida impossível. Não é sem conseqüências! Será que isso quer dizer que, então, se deve deixar tudo isso tranqüilo, deixar continuar? Claro que não! É preciso, mesmo assim, ter a dimensão humana do que nós fazemos. Somos máquinas ou bem somos sensíveis ao problema do que vai acontecer com essa criança? Vamos nos comportar diante dela de maneira tão embrutecida quanto o pai que foi capaz de violentá-la? Vamos agir da mesma maneira?
Recordei-me, também, de um certo número de casos que, na minha clínica, são afetados por esse tipo de questão, seja no presente, seja, é claro, no passado. O que é que se vê?
Por exemplo, outro dia, vejo chegar uma senhora, 45 anos, completamente perdida, apavorada, aniquilada. O que é que houve? Ela percebeu que sua filha de doze anos fumava. Ela a repreendeu, que isso não era para sua idade, e sua filha de doze anos lhe disse: quando eu vou à casa do vovô, ele me toca e me pede para tocá-lo; ou seja, para o vovô eu sou grande. Ela chega então, essa mãe, num estado… era do pai dela que se tratava. Eu ia dizer evidentemente antigo militar, mas é absurdo. (risos) Acontece que ele é antigo militar. Então, o que é que eu devo fazer? Antes de vir me ver, ela o tinha denunciado à polícia… seu pai… O problema é que uma decisão foi tomada sem, de modo algum, se preocupar com sua filha, que foi então levada a contar a história e a dar seu testemunho ao policial, ao juiz, ela vai ter uma assistência psicológica. Fica bem claro que aí se trata de uma vingança dessa mulher, que prevalece sobre o resto. Portanto, maneira de abordar o problema de um modo que, eu diria, equivale àquele do vovô, ou seja, não se leva em conta a criança. Cuida-se sempre dos próprios problemas.
Penso em uma outra jovem que vem a mim para fazer uma análise. O que marcou sua juventude foram as relações sexuais com seu padrasto. Houve até uma gravidez e um aborto. A mãe supostamente não sabe de nada. Essa jovem reconhece claramente… enfim, ela diz claramente de que maneira ela atiçou seu padrasto e como ela não só consentia plenamente, mas participava dessa situação. Que conseqüências psíquicas isso tem? Para ela, já que nunca se pode generalizar, para ela está claro que não houve. Ela tem um companheiro, um namorado com quem ela tem uma vida sexual perfeitamente normal, ela leva adiante estudos difíceis de forma absolutamente normal, e é isso.
Uma outra, muito mais velha, cuja infância, aí também, foi marcada por relações com o padrasto. O caráter traumático da história com o padrasto – ela era muito mais jovem, tinha doze, treze anos – prende-se ao fato de que, desde o início, a mãe sabia e deixava correr, para conservar esse homem em casa; trata-se de um caso que, como vocês sabem, não é extraordinário, não é excepcional; o mais traumático da situação era isso, era que a mãe a sacrificava para conservar o cara em casa. O lado traumático estava aí, para ela. Não se trata de inculpar a mãe, eu creio. No entanto, é assim e ninguém se espanta quando se conta uma história assim… história humana!
Para concluir, vou lhes contar um último caso, que foi seguramente o que mais me afetou e que correspondia ao que era para mim uma atividade profissional iniciante, ou seja, há um certo número de anos. Recebi a visita de uma mãe de uns trinta anos acompanhada de seus dois filhos, um menino de 10 anos e uma mocinha de 11 anos, dizendo que, de uma maneira absolutamente inesperada, o pai havia violado as duas crianças. Que fazer? Então, eu atendo as duas crianças, eu os recebi durante mais ou menos três meses cada um, separadamente; eu os fiz desenhar, falamos e, ao cabo de algumas semanas, considerando o que se passava em seus desenhos e em suas falas, fui levado a dizer-lhes o seguinte – o pai tinha sido afastado da casa: acontece aos adultos ter um ataque de loucura, mas isso não impedia, de modo algum, que aquele que tinha tido esse ataque de loucura continuasse sendo o pai deles. Eis aí o que eu achei que devia dizer a eles. Ele tinha, talvez, perdido a cabeça, ou sabe Deus o quê, mas que era, assim mesmo, o pai deles. Nessa altura nos separamos em bons termos, todos os três, todos os quatro, e depois, evidentemente, eu me perguntava o que teria acontecido, e não sabia de nada. Como eu tenho, seguramente, um bom anjo, aconteceu que, há cerca de dois anos, eu recebo um telefonema de uma senhora que me pergunta: era o senhor que atendia no ano tal, no endereço tal? Sim. Evidentemente, o senhor não se lembra de mim, mas eu lhe trouxe meus dois filhos. Comecei a maquinar. Aconteceu isso ou aquilo com o pai deles etc. Eu queria que o senhor soubesse o que eles se tornaram. Eu estava bem inquieto. Eles tinham, todos os dois, uma vida perfeitamente normal, estavam todos os dois casados, tinham filhos; tinham uma atividade profissional e uma vida sentimental comuns, ordinárias, banais; não havia nada de extraordinário. Eles tinham seguido o percurso mais clássico possível e ela queria que eu soubesse. E eu também queria que vocês soubessem. Aí está.
Moderador: Terminamos com uma lembrança sua e um sorriso, o que é sempre bom, porque, não somente você distensionou – você falava desse engajamento passional que se vê regularmente aqui e ali –, não somente você distensionou o problema, mas reumanizou as coisas, centrando o problema em uma possível evolução, ou seja, no próprio futuro da criança. Por isso, obrigado.
Na seqüência, eu gostaria apenas de realçar o que você disse sobre o malogro. Sem dúvida, o mundo humano é o lugar por excelência do malogro. Se retomamos as categorias levi-straussianas, o humano é o único malogro verdadeiro na ordem da natureza. A hipótese não é impossível. Encontrei, uma vez, um incesto mãe/filho e não pude fazer absolutamente nada, porque o filho era louco varrido, confirmando de minha parte o que você dizia. Ainda assim, ao escutá-lo, há uma discordância que talvez seja interessante, em relação ao mito de Édipo, de que você também falou. Édipo, é bastante curioso, ele não se torna louco, e minha questão é, precisamente, que ele talvez fique louco de dor, ele se des-é, ele vai embora, ele termina sendo reabilitado, mas no fundo, no momento em que ele fura os próprios olhos para ter um pouco mais de clarividência, ele se desola. Você poderia nos dizer por que ele não é louco?
Ch. Melman: O problema de Édipo é que ele quer saber, como nós, que queremos saber. Pois bem, é aí que ele erra. É aí que ele peca, ou seja, ali, onde teria sido conveniente jogar um véu em cima, Édipo quer saber. Ele também quer ver e saber. Tirésias bem que lhe diz: “Fica tranqüilo”, mas ele quer ir até o fim. Isto é, ele é exatamente como nós. Ou melhor, nós somos como ele. Queremos ver tudo, queremos ver todos os subterrâneos, tudo o que há de escondido. Tudo aquilo que nos dissimulam, tudo o que se passa atrás das cortinas, nos corredores, inclusive os da Casa Branca. Isso nos interessa, não vejo em quê! Isso interessa a vocês, os corredores da Casa Branca? Quanto a mim, eu achava que o que interessava na Casa Branca eram as decisões políticas tomadas pelo Presidente. Mas, nada disso. O importante na Casa Branca é o que se passa nos corredores. Pois bem, isso interessa a todo mundo e tem conseqüências que não são negligenciáveis. Portanto, é assim que eu vou lhe responder: Édipo antecipa o que será nossa própria ubris, menos por seu gesto, em que ele é inocente. Jocasta era a mulher do outro e ele não tinha, a priori, nenhuma razão para pensar que ela podia ser sua mãe. Para ele, em todo caso, e aquele que ele matou, ele também não sabia que era seu pai. Aí está, foi aí que, pelo prazer de escrever uma tragédia, ele foi longe demais.
Debate depois da conferência
Pergunta: (alguns fragmentos audíveis) Uma reflexão que eu fazia esta manhã sobre o bombom e o manual da criança viajando na cidade [greve dos confeiteiros] indica-se à pessoa o sentido de qualquer ato e de qualquer palavra? Não há mais senão a lei escrita […] e eu me colocava a questão de saber qual é a influência sobre o simbólico?
Charles Melman: Obrigado. Você tem toda razão. Esse se tornou mesmo um elemento essencial de um discurso que nos concerne a todos, que é o discurso político, mas no qual a denúncia do que tem a ver com o sentido, a ilustração do sentido, a decodificação, tornou-se a regra. Não nos convidam mais a ler um programa, nos convidam a ler uma decodificação. Em outras palavras, aquilo que seria seu sentido oculto e que nos é proposto. Trata-se de uma mutação que tem efeitos, conseqüências, nem que fosse porque vai, também, no sentido desse excesso de que falávamos há pouco: é normal que o sentido de uma palavra, de uma fala, de um escrito, possa permanecer equívoco, desde que não seja científico. O equívoco é componente normal, envolvido em nossas trocas, enquanto essa exigência de uma entrega do que seria o sentido e o verdadeiro sentido, ou seja, daquilo que se lhes quer fazer entender, é, paradoxalmente, um empreendimento de obscurecimento. O excesso de luz é uma forma de ofuscar e, portanto, de obscurecer, paradoxalmente. Não se vê mais nada. E não se pode pensar mais nada, não sobra mais espaço para o pensamento. Pensa-se por vocês e diz-se a vocês como é preciso que vocês pensem. É, seguramente, um grande traço contemporâneo. Eu lia, outro dia, num grande jornal cotidiano nacional: “o governo Raffarin decifrado”, decifrado, não é? Introduzem-nos nos pequenos segredos, nos pequenos esconderijos, naquilo que é dissimulado. O mais interessante talvez fosse aquilo em que se está engajado? Não, não, é aquilo que precisa ser decifrado.
Agora, o que você diz a respeito da lei é, evidentemente, muito importante. O problema da lei escrita é que ela se enuncia de lugar nenhum – quem é o enunciador? –, ela se estende a todos, sem exceção, ou seja, forçosamente, a lei escrita vai levar a uma casuística, felizmente aliás, vocês verão. É como o que eu evocava para essas crianças, isso deveria suscitar uma casuística, em vez de nos impor regras e condutas gerais. Pois bem, essa lei que se impõe a todos, vinda de lugar nenhum e que não suporta exceção, já que toda exceção é repreensível, é uma lei totalitária, enquanto a lei revelada introduz a dimensão real, ou seja, a palavra enquanto real e aquele que veio ali enunciá-la. Se fosse preciso desenvolver nossa reflexão sobre essas questões, poderíamos observar que, a partir do momento em que existe a palavra, não é mais necessário que ela enuncie a interdição do incesto. Pelo simples fato da palavra, há esse interdito que evocamos e que nos interessa. É algo que faz borda, faz limite, e seria pleonasmo, tautologia ou autofagia se a palavra viesse denunciar, basta que a palavra se coloque como tal.
Pierre Y: (inaudível)
Ch. Melman: Sim, obrigado, eu subscrevo completamente o que você diz. Essa fantasia inicial que você assinalava é uma fantasia tipicamente obsessiva: estar ao abrigo, num recinto fechado, quase fechado, com uma abertura para proteger contra os abalos do exterior, e uma relação, perfeitamente harmoniosa e despojada de qualquer mistério, com o entorno, ou seja, o que seria – você o dizia muito bem – a realização do incesto, ser, ao mesmo tempo, o filho de sua mãe e fazer esse filho nela. Pode-se observar também, a esse propósito, que, trocando em miúdos — e isso retoma a questão de Liliane de há pouco –, a ambição de nossa escrita é, ela também, de entregar todo o sentido, isto é, esgotar aquilo que seria o mistério introduzido consigo pelo significante, inclusive o mistério de nossa existência. Essa aspiração incestuosa que é, então, a nossa, pode-se dizer que ela opera, igualmente, naquilo que, há pouco, de maneira paródica, eu coloquei sob a rubrica do deciframento e que faz parte de nosso pensamento, coletivamente assumido, o de um relatório que esgotaria, como se diz, a questão, ou seja, o real que a suscita. É por isso que o estilo de Lacan, que, evidentemente, não é esse, parece, a todos aqueles que têm um espírito legitimamente “rigoroso”, insuportável, intolerável, isto é, poético. Como se não fosse com esse gênero de poesia que mais nos aproximássemos do real.
Lembro-me, nesta ocasião, de uma discussão; era, justamente, a propósito do Centenário da psicanálise, com um eminente biólogo, que explicava de que modo, cem anos após, a biologia estava em condição de resolver os impasses sobre os quais a psicanálise se debruçara. Pude dizer-lhe apenas que sua poesia era verdadeiramente muito interessante, mas que uma poesia não equivalia forçosamente a uma outra, que havia melhores e piores, mas que, em todo caso, por mais biólogo que ele fosse, ele não podia desconhecer que os termos dos quais se servia nada mais eram senão metáforas e metonímias e que ele era tomado por uma retórica e por fenômenos de estilo etc. Ele não nos tinha escrito no quadro fórmulas a partir das quais não tivesse que dizer mais nada; portanto, sua pretensão de nos dar conta dos fenômenos psíquicos pela biologia era uma forma, entre outras, de poesia. De poesia, por que não dizê-lo assim, com visada incestuosa. A partir do momento em que se pretende captar o próprio real e, como dizia Marc Morali ontem, querer copular com ele, copular com o real é o empreendimento incestuoso por excelência. É mesmo por isso que pode ter conseqüências, e que, em certos cientistas, as têm. Quando eles chegam aí, como sabemos, há percursos subjetivos que se vêem completamente perturbados pelo sucesso de sua operação. Por isso a extensão que teríamos, finalmente, que dar a esse termo, atividade incestuosa, mostrando como – já que justamente você partiu de uma fantasia obsessiva – é claro que ele está particularmente ligado à tentativa de realizar essa perfeição de um acordo com o Outro, o grande Outro. Como ficar colabado com ele, a ponto de provocar essa dificuldade quanto ao contato. Então, eu acredito, como você, que a questão do incesto mereceria ser abordada em seu domínio, que ultrapassa os acidentes da vida familiar, escolar, educativa e religiosa, como podemos observar.
Descobrimos que padres – trata-se do escândalo, hoje, da Igreja americana – têm atividades pedófilas… sempre se soube disso. A partir do momento em que alguém se ocupa com as crianças, isso significa que ele as ama. No melhor dos casos, trata-se de um amor sublimado, mas, como todos os amores sublimados, acontece de isso escorregar. Então, quando isso escorrega, não se trata de encorajar, mas como tratar isso imediatamente como se se tratasse de criaturas monstruosas e a serem excluídas da humanidade? É aí que complica, é aí que há uma regressão, ou seja, de não ousar reconhecer, nessas figuras, figuras eminentes da humanidade, porque elas são vítimas de um processo que é o nosso. Não é porque nós mesmos, no conjunto, somos tímidos, reservados, que não vamos aos extremos, que não há aqueles que são tomados por loucuras que os empurram a ir aos extremos. Existe – terminarei minha resposta por essa observação que eu espero que não vá chocá-los –, vocês sabem que existe no Japão um comércio de calcinhas de mocinhas, de meninas; calcinhas que só têm valor se não tiverem sido lavadas – vocês sabem disso, não é uma informação que eu lhes dou, não quero ser acusado de incitação ao despudor e não sei mais o quê –, pois bem, existe esse comércio que mostra que os japoneses fazem comércio com qualquer coisa, eles não as exportam, observem, mas talvez acabem por fazê-lo. Então, o que eu gostaria de dizer, e eu digo quando encontro as autoridades competentes, é que nossa maneira de exibir esses problemas familiares etc., é nossa maneira de colocar na primeira página dos jornais, ou dos espaços televisivos, as calcinhas das meninas. Nossos problemas são nossa maneira tão impudica quanto a dos japoneses, e isso não é menos perverso. É preciso deixar esses problemas para os meios destinados a tratá-los e não fascinar um grande público com questões que só podem – não são, no entanto, aqueles que estão no domínio psi que podem constatá-lo – constituir outras tantas incitações, pois é assim que funciona. É pela oferta que se provoca a demanda, e essa oferta é ainda mais preciosa quando é interditada, quando há proibição. Portanto, é por isso que se tem, verdadeiramente, o sentimento de que o que acontece a esse respeito no tecido social é uma regressão do pensamento e da moral. Não é menos impudico vir expor seus problemas em público do que vir, como esses japoneses perversos, atraí-lo. São os mesmos tipos. Então dizê-lo também! É evidente que, sob a forma da denegação e da denúncia, posso vir contar-lhes as piores torpezas – mas, enfim, a psicanálise conhece isso há cem anos – e, enquanto isso, eu estou perfeitamente inocente, eu venho denunciá-las! Enquanto isso, eu conto pra vocês, eu lhes explico.
Eu li ontem no nosso jornal favorito uma matéria, um escândalo imaginário, que não tinha interesse senão publicitário: um desconhecido tinha escrito, no seu jornal, textos anti-semitas. Fez-se uma confusão que, como é fácil compreender, favorece as vendas de um autor que até então talvez não tivesse sido lido, mas, a partir do momento em que vira escândalo, interessa. Li no Canard de quinta-feira, ontem, que esse tipo retoma isso porque suas vendas tinham caído e o jornal repete suas acusações, suas alegações anti-semitas, e expõe tudo isso, dizendo: Vejam só o que ele disse! Nossa história, e a seu modo essa história de publicidade dada a esse indivíduo, é da mesma ordem, evidentemente – eu digo banalidades – permite a um certo número de pessoas gozar disso a partir do momento em que foi denunciado. Sem risco.
Marc Morali: (inaudível)
Ch. Melman: Eu acho, Marc, que, a meu ver, você dá a mais justa definição do problema com o qual temos a ver, e haveria que meditar sobre a maneira pela qual, efetivamente, os desenvolvimentos da técnica que você evoca tão bem, e na medida em que eles asseguram para nós aquilo que é igualmente a mestria do real, a mestria perfeita já que chegamos mesmo a controlar o sexo, chegamos a controlar a reprodução, chegaremos a dessexualizá-la, chegaremos, nesse domínio, a ser nossos próprios patrões. Pois bem, na medida em que a técnica assegura essa captura sensacional e sem precedente do real, parece quase normal, como conseqüências, que vejamos se difundirem condutas de tipo incestuoso, formas de rapto, parties tournantes, (1) etc. Acho que seria muito interessante e justo, como você acabou de fazer ao desenvolver isso, mostrar que se trata de uma conseqüência direta do poder fascinante da técnica e de que modo só poderíamos nos sentir em falta diante dela, diante de suas exigências, se nós mesmos ficássemos com nossa timidez, nossas reservas, nosso pudor etc.
É evidente que o despudor está, hoje em dia, por toda parte — não vou cair na banalidade, mas o que é o Big Brother senão o despudor exposto? É nesse aspecto que é interessante, pois, afinal, a vida das pessoas não é atraente, mas, se é a parte impudica que é exposta, no limite isso pode dar ibope. E a congruência dos meios técnicos utilizados nessa ocasião, o investimento nesses refletores, nessas câmeras, nesses microfones e nesse desenvolvimento técnico, torna possível a realização de um vivido que é, ele próprio, inteiramente dependente e organizado por essa possibilidade técnica. Portanto, o que você diz mereceria que você se permitisse desenvolvê-lo, Marc.
tradução de Sérgio Rezende
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1. Parties tounantes: espécie de estupro coletivo. (N. T.)