Antonio Carlos Rocha
ABERTURA DO COLÓQUIO “OS HERDEIROS DA CIÊNCIA – A CLÍNICA PSICANALÍTICA E AS NOVAS FORMAS DO GOZO”
09 DE ABRIL DE 2003
Resolvidos os problemas práticos, vamos agora, então, efetivamente abrir nosso trabalho, e eu convido para isso, para vir para a mesa, a Dra. Christiane Lacôte, presidente da Association lacanienne internationale. Para que nós possamos, ambos, dar as boas-vindas a todos os que estão aqui, pelo fato de ser um colóquio, Dra. Christiane Lacôte, que é presidente da Association lacanienne internationale, fará isso pela Association e eu, de minha parte, pelo Tempo Freudiano. A razão pela qual eu estou tomando a palavra primeiro é pelo fato de que essa nossa reunião se faz no Rio, então nós, estando em casa, temos que, antes de mais nada, dar as boas-vindas até mesmo a Christiane Lacôte. Eu aproveito então para, em primeiro lugar, agradecer a Christiane Lacôte e, na pessoa de Christiane Lacôte, àAssociation lacanienne internationale, pela iniciativa de fazer colóquio conosco. Eu digo iniciativa porque isso inicialmente seria um evento do Tempo Freudiano, com vários colegas franceses que viriam trabalhar conosco, mas como esses colegas ficaram numerosos, Christiane propôs que fosse um colóquio. O que é para nós uma honra, a nós do Tempo Freudiano, e eu agradeço que a gente tenha sido homenageado dessa forma. Vocês vêem, no folder que vocês receberam, que tem lá os convidados, porque inicialmente ia ser assim. Ficou um pouco sem sentido na medida em que era um colóquio, mas nós mantivemos assim, para fazer homenagem a esses colegas e amigos que já têm vindo trabalhar conosco e que estão de novo aqui. Então, em primeiro lugar, as boas-vindas a esses colegas e a todos os outros colegas da Association lacanienne internationale que se decidiram a atravessar o Atlântico e que estão aqui, embora esteja escrito lá que eles são convidados, mas na realidade estão aqui por sua própria conta … e risco, porque viajar hoje está um pouco arriscado.
Queria então dar as boas-vindas e meus agradecimentos também a todos os colegas do Brasil, que vieram de todo o Brasil, porque tem muita gente de fora, isso me deixou muito satisfeito, vindo – vocês sabem que o Brasil é grande –, vindo do norte para o sul, nós temos colegas de São Luís, Recife, Olinda, Brasília, Minas, os colegas todos de Juiz de Fora, São Paulo, Porto Alegre…
Ângela Valore: Curitiba.
Antonio Carlos: Curitiba, faltou mais algum? E de várias cidades, de Campinas, em São Paulo, de Campos, no Rio, enfim, é uma boa amostragem do Brasil, então sejam todos muito bem-vindos e nós somos muito gratos, do Tempo Freudiano e da minha parte, de que vocês estejam aqui. E finalmente a minha última palavra é para os jovens, porque há aqui um número grande de universitários, de colegas em formação, que vieram conhecer o nosso trabalho, em relação a quem eu tenho um especial carinho e os acolho com muita satisfação, sejam muito bem-vindos e eu espero que vocês possam aproveitar. Dito isso, eu passo então a palavra a Christiane Lacôte para que ela possa, de sua parte, falar pelaAssociation lacanienne.
Christiane Lacôte: Então, em nome da Association lacanienne internationale, estou muito alegre com esse colóquio, que respeita, como o Antonio Carlos dizia, a etimologia latina, quer dizer, de falar juntos. O que nós apreciamos, no nosso trabalho em comum, é toda dialética que existe, já que é um trabalho de muito fôlego que nós fazemos juntos, nós nos reunimos no final de outubro, começo de novembro do ano passado, e juntos nós escolhemos como tema A terceira, o texto francês de Lacan e o texto traduzido pelo cartel franco-brasileiro, e a partir dessa base de leitura nós preparamos os dias de trabalho que vão se realizar agora. Eu agradeço especialmente a Antonio Carlos e Ângela Jesuíno Ferretto em nome da Association lacanienne, agradeço a todos os cariocas por sua organização maravilhosa, com essa sala magnífica, eu diria à beira do oceano que nos…
X: Une.
Christiane Lacôte: E, se nós somos verdadeiramente lacanianos, há algo da ordem do litoral. Então um bom trabalho e eu desejo que nós continuemos juntos como nós começamos.
Antonio Carlos: A previsão para o nosso trabalho hoje é que eu faça uma intervenção dita de abertura, em seguida Dr. Roland Chemama, meu caro amigo Roland Chemama, vai intervir, então eu peço que ele venha para a mesa para que esteja desde agora conosco – você fica entre nós dois. Está ótimo assim. Bom, antes de começar eu queria fazer dois pequenos comentários de ordem prática, em primeiro lugar só uma palavrinha sobre a modalidade que nós adotamos quanto ao tempo das intervenções, que não é muito habitual, nós estamos com um tempo maior do que o habitual, um menor número de intervenções, foi uma aposta que nós fizemos, no sentido de que isso possa ser mais produtivo. Essa é a primeira coisa. A segunda coisa é um pequeno aviso, eu sei que há um certo número de pessoas que não têm o hábito de acompanhar palestras desse tipo com tradução consecutiva, e então eu me permiti querer chamar a atenção de vocês, porque há duas possibilidades: isso pode ser um fator cansativo e que distrai e que portanto torna difícil o trabalho, ou, ao contrário, pode ser uma maneira de poder refletir mais no tempo da fala de quem estiver intervindo. Para isso é preciso, por exemplo, que os que estão ouvindo em português, o importante é que ouçam o que é dito em português e em seguida, apesar da simpatia da tradutora, esqueçam a tradutora. Porque aí fica um tempo em que se pode refletir um pouco mais sobre o que foi dito. É só para… bom, uma abertura.
Em princípio uma abertura visa a fazer um certo panorama, mas como o argumento que a gente apresentou e ao qual todos tiveram acesso foi bastante amplo, eu acho que ele serve de ponto de partida a partir do qual cada um tomará o seu caminho.1 De todo modo, no que me concerne, eu tomei uma certa afirmação do argumento que eu tinha proposto como ponto de partida, quando é dito ali que nós só podemos nos autorizar da clínica, ou seja, o fato de que nossa palavra está estruturalmente definida e que são as conseqüências disso que marcam a nossa ação, nossa possibilidade de transmitir. Por isso eu vou falar da transmissão, da psicanálise evidentemente, coisa que já valeria por si só, sobretudo num auditório onde há, como eu disse no início, muitos jovens em formação. Mas, em todo caso, aqui a transmissão entra, enfim, a minha visada não é falar exatamente da transmissão, a minha visada é mostrar a relação estrutural da transmissão com a cultura. Assim, se eu tiver êxito nessa incidência, isso acabará por constituir uma certa abertura, naquele sentido mais abrangente do propósito, porque vai tocar no que foi proposto no argumento. Eu não tenho um título, porque eu escrevi, anotei e depois no final eu me perguntei, eu não cheguei a formular um título, já disse que é sobre a transmissão, mas vou fazer uma citação prévia de Lacan que dá uma direção, ele diz: “Ora, o discurso analítico promete introduzir o novo, e isso, que enormidade, no campo em que se produz o inconsciente, dado que seus impasses, entre outros, é verdade, mas antes de mais nada, se revelam no amor.”
A psicanálise é muito peculiar na relação que tem com seu próprio objeto. Como diz Lacan, aquilo de que falamos opera aí mesmo no ato de falar. Isso nos leva sempre, inevitavelmente, a uma posição meio oblíqua em relação à incidência de nossa… de nossa própria palavra. Nós estamos sempre nos interrogando sobre o sentido de nossa intervenção, numa reunião como esta, por exemplo, isso que chamamos um evento público. Bom, eu digo em português primeiro porque tem um jogo de palavras que faz sentido, então, numa reunião como esta, por exemplo, isso que chamamos um evento público, e onde, portanto, como está implícito nos próprios termos, somos um público eventual, portanto múltiplo e diversificado.
Eu disse que é bom que a gente tenha as mesmas raízes. Bom, então nessa situação dificilmente deixamos de nos perguntar sobre o que dizer, como dizer, sobre as possibilidades e os efeitos da circulação da palavra. Pois em encontros dessa natureza a gente sabe que há sempre uma possibilidade maior, há sempre essa tendência de todos nós, assim quando formamos um público eventual, de nos deixar capturar por uma posição mais passiva e de facilmente nos transformarmos nisso que se costuma chamar uma platéia. As conseqüências disso sobre aquele que toma a palavra não são negligenciáveis, porque o corolário meio inevitável de uma platéia, de uma assistance, é sempre o apelo à performance de uma fala, que se oferece como pronta para o consumo e para satisfazer uma demanda suposta. Ora, esse duplo movimento, e essa reciprocidade de posições, criam uma determinação própria, que só pode levar a uma circularidade, ao círculo vicioso do mesmo, à homogeneização especular com a supressão da opacidade e não à diferença, à palavra nova, que são sempre incongruentes e desconfortáveis. É o registro do olhar que se impõe, afinal estamos vivendo a sociedade do espetáculo, e é esse o movimento que nos comanda na cultura. Eu não vejo por que nós, psicanalistas, não estaríamos submetidos a essas mesmas influências, à força desse círculo vicioso que faz obstáculo a qualquer brecha para o outro, e impede uma outra dinâmica em que, da sustentação de uma escuta ativa de todos e de cada um, possa advir o estímulo a uma enunciação mais decidida de todos e de cada um.
Vocês vêem que diante de uma simples reflexão como esta sobre a forma, sobre a modalidade do trabalho, nós somos logo remetidos ao próprio cerne de certas questões que vão nos interessar nesse colóquio, já transparecem aí todos esses efeitos de nosso tempo, a relação ente o público e o privado, essa espécie de massificação e de diluição do singular no seio da cultura, o esvaziamento do discurso, a banalização da fala.
Porque um público, o que um público cria, na verdade, para todo aquele que toma a palavra, e que esse registro do olhar procura escamotear, é uma exterioridade ao sujeito. Mas uma exterioridade que de fato lhe é interna, o público apenas a atualiza. Trata-se desse fora que é de dentro, e que é produzido pela topologia da palavra e da linguagem. Estamos, então, aqui sim, diante do verdadeiro registro do público, o público como registro do Outro, onde o que está em jogo é a questão do endereçamento, nesse sentido em que estamos sempre dirigidos ao Outro, a esse lugar Outro de onde recebemos nossa própria mensagem.
O psicanalista então, nós começamos dizendo, não pode deixar de visar ao que está em jogo nas conseqüências da palavra, porque a palavra transmite. Nós lembrávamos no folder, que vocês receberam, que a clínica é o único lugar de onde nossa palavra pode se autorizar, porque isso nos obriga a uma certa disciplina, em que aquilo que dizemos não se separa, não pode se separar, da forma como dizemos, ou seja, da posição de onde dizemos. Daí, desse lugar, falamos de um lugar preciso e isso faz com que não possamos perder de vista que estamos sempre, de uma forma ou de outra, produzindo efeitos na transmissão. O que se abre aqui, neste encontro, e que não é portanto eventual, terá um perfil e ao longo de nosso percurso isso vai aparecer, isso, aliás, é o que retornará desse trabalho que é datado, tem marca e nome, e vai se inscrever, inscrever seus efeitos. E isso é assim não porque a gente decide ou pretende, mas porque isso se impõe a nós, desde que nós tomamos a palavra, nós a tomamos de algum lugar, e a partir daí é o significante que nos conduz em seus efeitos sobre a transmissão e portanto sobre a formação dos analistas. Por isso é preciso estar atento diante das conseqüências do que opera no que fazemos, dizemos e ouvimos. Porque o que se quer suprimir hoje é justamente isso, essa dimensão própria da transmissão, tal como a entendemos, ou seja, nesse sentido em que há sempre um sujeito implicado. Em outras palavras, trata-se de dispensar o sujeito. Na esteira da ciência que pode incorporar a seu enunciado a enunciação que o produziu, a ideologia com que a ciência se veicula sonha com uma metalinguagem que pudesse dizer tudo ou tudo comunicar, de um saber sem resto, gozo extremo do pedagogo. E aí justamente a psicanálise enquanto discurso, com a enunciação que o trabalho do sujeito exige, a psicanálise então está na contramão. Ela está em posição radicalmente contraditória, passando a constituir-se não por decisão tática, política, moral ou ideológica, mas por necessidade de estrutura, em alternativa disjuntiva a esses ideais mais recentes da modernidade.
É por isso que eu estou retomando com vocês o tema da transmissão da psicanálise, que nos parece talvez o contraponto mais puro para tocar em certas questões que estão abalando a nossa cultura. É certamente por aí que o psicanalista tem mais a testemunhar, pois se efetivamente o que está em jogo é a questão do sujeito, em nenhum outro campo tanto quanto no nosso essa questão pode se revelar mais claramente, mais cruamente, porque aqui o sujeito é o próprio campo.
Esse campo, como nos diz Lacan, é um campo que se perde, que só se constitui por se perder, o que faz com que o tema de sua transmissão só possa ser pensado no registro do paradoxal, porque seu objeto não pode se reduzir integralmente a nenhuma equação, a nenhum saber cumulativo, como é o caso da ciência. Por isso Lacan afirma que na transmissão dos conceitos analíticos se encontram os mesmos obstáculos da clínica, a angústia de castração – vocês ouviram? Na transmissão dos conceitos… E o que é que ele opõe a isso como operador contra essa angústia? Nada menos que o desejo daquele que ensina, fórmula que não pode deixar de evocar, para nós, o desejo do analista e que portanto implica diretamente o sujeito interessado na operação. Como se vê, estamos numa posição diametralmente oposta à do discurso universitário, aos ideais modernos de uma comunicação simples, ágil, objetiva, instrumentalizável. Como ensinar o saber do inconsciente, se ele é um saber que nos sabe?, pergunta Lacan. Por isso ele vai falar do estilo, só o estilo se transmite, e transmite a psicanálise. Ora, essa é uma afirmação cheia de conseqüências e pode até nos levar a afirmar, a dizer, que a psicanálise talvez não seja outra coisa senão sua própria transmissão, ou seja, forma e matéria de confundem, ou ela se transmite e está aí nessa transmissão, ou ela não é. A contradição é interna aos próprios termos.
A questão que fica para a gente, então, é como sustentar isso diante da voracidade crescente de uma demanda de saber que está submetida pelo próprio movimento da cultura ao mais desenfreado mercantilismo e que naturalmente não pode deixar de atingir também a comunidade analítica, onde, cada vez mais, a circulação e a distribuição de um saber prêt-à-porter acumulável e oferecido ao consumo parece prevalecer. A psicanálise enquanto discurso está situada entre os outros discursos e não há por que pensar que ela, seja nas suas instituições, na sua transmissão, no entendimento que seus agentes têm de sua ação, não estaria, também ela, atingida por todas essas incidências da vida social. O psicanalista, portanto, não pode ficar falando sobre os novos rumos da atualidade, da cultura, como se estivesse de fora e a salvo desses mesmos efeitos. Pois tudo o que está aí reverbera diretamente sobre minha palavra, sobre minha posição, no consultório ou fora dele. A questão é estrutural e virtualmente concerne ao sujeito, esteja ele onde estiver, onde quer que se exerça como práxis. A atualidade veio apenas acentuar uma tendência e oferecer amparo certamente maior, na cultura e no social, à possibilidade do desvio e da demissão subjetiva. É o que nos autoriza dizer que pensar a psicanálise e as vicissitudes de sua transmissão é pensar a contemporaneidade.
O trabalho de transmissão, como qualquer trabalho, qualquer práxis, é, como diz Lacan, o tratamento do real pelo simbólico, e nada se pode opor mais a isso do que os ideais da modernidade, porque, para que o simbólico funcione, é preciso uma certa posição do sujeito, é preciso que o sujeito se submeta ao trabalho do significante, se deixe representar por ele, é preciso que ele se decida a ocupar esse lugar, a inventar esse lugar, que no entanto é do Outro, constituí-lo no mesmo movimento em que se inventa como sujeito. O sujeito é isso. É aquele que, como efeito de seu ato, inventa esses lugares que lhe são logicamente anteriores, como convém à temporalidade paradoxal do inconsciente. É aí onde ele se inscreve e constitui uma sucessão nesses lugares virtuais de circulação dos significantes que apenas o representam e que o colocam assim nessa aporia de uma ex-istência pontual e evanescente.
Mas nada disso é simples, naturalmente, afinal cabe a pergunta, o que é que leva um sujeito a submeter-se a isso? A trabalhar assim em pura perda para garantir a palavra do Outro? Lacan nos dá uma indicação sobre isso, muitas, vou pegar uma: “O ensino da psicanálise”, diz, “só pode ser transmitido de um sujeito a outro através de uma transferência de trabalho”, ele diz em 64. É nesses termos que define a relação, ele não hesita em vincular o trabalho à transferência. À primeira vista isso pode provocar uma certa reação, pois a transferência está, em princípio, sempre associada ao domínio do amor e não há nada que se oponha mais ao trabalho que o amor, ao qual se liga sempre a idéia de dependência, de submissão. Mas essa relação entre amor e trabalho já tinha sido feita por Freud, evidentemente, que para fundar a psicanálise não rejeitou a transferência, ao contrário, procurou operacionalizá-la, colocou o amor a serviço do trabalho, ou seja, inventou o trabalho de transferência. Melman diz que a transferência de trabalho é suscetível de vir a substituir o amor de transferência, marcar o que seria o fim de uma cura. Em português, Ângela quer que seja tratamento e não cura, eu digo cura. ([Dirigindo-se à tradutora:] Não, você tem que dizer cure, eu é que teria que ter dito tratamento e não cura, o Luiz também está brigando comigo.) Bom, ela seria uma “reapropriação”, aspas, não mais alienação do trabalho para o outro, mas trabalho que o sujeito faz para ele mesmo. Que trabalho é esse? Como a gente sabe, só há um discurso onde é o sujeito que trabalha, é o discurso do analista, é aí onde efetivamente se produz, então, justamente o verdadeiro trabalho, verdadeiro porque aquele em que não apenas o sujeito trabalha, mas é ele próprio que é trabalhado, ou seja, aquele em que efetivamente o simbólico transforma o real. Esse trabalho que o sujeito faz para ele mesmo, palavras de Melman, só pode se situar, é claro, na extensão, na linha direta do trabalho da análise e é o que cria, dessa forma, essa ponte tão fundamental entre o analista que pensa e fala de sua prática, sua clínica, e o analisante que ele foi e que em certo sentido deve continuar a ser. Há aí uma continuidade, trata-se sempre para o sujeito de uma desconstrução daquilo onde ele se reconhecia para advir ali onde o significante o ressitua. E isso é válido tanto para os significantes que ele encontra na sua análise e que organizam a sua singularidade quanto para os significantes que estruturam o modo como ele, como analista, formula e operacionaliza a sua ação. No contexto da análise, no trabalho de transferência, trata-se de dar outra dimensão ao amor, transformar o amor de transferência, por assim dizer, em transferência de amor. Há aí uma passagem nesse movimento, nesse jogo entre imaginário e simbólico, passa-se de um amor que transfere o sujeito a um sujeito que transfere o amor, ou seja, passa-se de um amor defensivo, que está do lado da resistência, que põe o sujeito à deriva, no propósito insano de preencher a falha do Outro, a um sujeito…
Tradutora: de rampli la parole de l’Autre, non, pardon, la fail de l’Autre …
Antonio Carlos: É por isso que esse tipo de trabalho tem que ser feito com a tradução consecutiva, aproveito para dizer isso, isso enriquece. É impensável a idéia, por exemplo, da tradução simultânea, porque há muita coisa que passa e que ele jamais… Eu estou dizendo isso porque alguém me falou esses dias sobre isso, na tradução simultânea seria como se fosse um escrito.
Bom, então, é isso aí, passa-se de um amor defensivo a um sujeito que pode transferir na dimensão significante do amor. Ora, isso implica uma posição radicalmente diferente, porque do que se trata aqui é da entrada no registro do simbólico, no registro do significante, aquele que fundou o sujeito, essa é a dimensão de um amor originário que para Freud faz afirmação primordial. É com esse amor que o sujeito tem que se reencontrar na análise. Ele é passagem necessária e inevitável ao encaminhamento de uma saída para o seu final. O final da análise não pode ser ruptura rancorosa, decepção ou renúncia, falso conformismo, que nada mais são que a atualização de virtualidades e álibis da neurose obsessiva, onde, como sabemos, o ódio, o isolamento, a barreira contra a transmissão e contra a vida comandam o sujeito. Só o amor pode fazer o gozo condescender ao desejo, diz Lacan, e por uma razão simples, porque o desejo é o desejo do Outro e o amor é aí necessário, justamente por isso, por essa implicação do sujeito, pois submeter-se aos significantes de um Outro significa sempre perda de gozo.
Esse é o sentido, a marca do trabalho de que estávamos falando antes, o trabalho da transmissão do sujeito, tanto no sentido daquilo que ele transmite, mas sobretudo – no fundo uma coisa não se separa da outra – no sentido em que é ele mesmo que é transmitido, ou seja, onde se transmite o lugar, o sulco, para usar essa expressão de Lacan, que ele cavou no real. É assim, é nesse trabalho que se constitui esse lugar, o Outro como um lugar que sabemos desabitado. Mas o que não se pode esquecer nunca é que só sabemos disso, só chegamos a descobrir que esse lugar está desabitado, porque um outro sujeito antes terá podido se oferecer aí, nesse lugar do Outro, aí se submeter à barra do significante, aí se apagar, justamente para que a marca desse apagamento como vazio se constituísse como lugar, como lugar virtual para nós. Ora, é só no reconhecimento disso, dessa dívida simbólica, fundadora, que um sujeito pode ascender à ética que o constitui e a que Freud deu o nome de castração. Antes se dizia que a solução na análise era matar o pai. Mas com isso só se fazia dar forma ao voto do neurótico diante de um pai idealizado e à espera de sua morte. A verdade, nesses casos, é que esse pai já está morto desde sempre, razão pela qual, aliás, ele não pode ser enterrado quando efetivamente morre, é o preço dessa aparente astúcia em que o sujeito se nega a se servir do pai para eventualmente poder vir a prescindir dele; ao contrário, ele pretende, ele finge prescindir do pai, mantê-lo morto, mas apenas, na verdade, para dele melhor se servir. Essa posição fálica imaginária não se sustenta, é claro, e mantém o sujeito no impasse do qual ele só poderá sair, evidentemente, pelo efetivo reconhecimento da insígnia paterna e, portanto, pelo ato de sua inscrição na série que ele representa, mas que apenas representa, justamente para que possa transmitir.
É, portanto, somente a partir dessa dívida simbólica que se pode falar de transferência de trabalho, mas é claro, por outro lado, que o sujeito não se instala numa transferência de trabalho de uma vez por todas, da mesma forma que não se autoriza de uma vez por todas, por uma razão simples, porque não há sujeito de uma vez por todas. Há sujeito a cada vez, a cada vez que faz ato, que se dispõe a pagar o seu tributo. Se não se paga o tributo simbólico, seja no trabalho de transferência, seja na transferência de trabalho, para advir como sujeito ou como analista, portanto, numa posição desejante, cai-se inevitavelmente nas virtualidades do amor e do ódio transferenciais. O que retorna é a forma amorosa, é a idealização, sempre ambivalentes e de conseqüências graves para o sujeito e para a transmissão. A história do movimento psicanalítico, com os impasses e rupturas que os psicanalistas sofreram e sofrem na própria carne, fala dramaticamente dessas vicissitudes; é onde, por assim dizer, aparece o sintoma da psicanálise, a psicanálise como sintoma, o que é a mesma coisa, pois é aí onde ela fracassa. Mas justamente é porque ela fracassa que a cada vez se renova, se reconstitui seu objeto. Como diz Lacan, no texto de A terceira, “é preciso que a psicanálise fracasse para que ela possa durar”. E isso é assim, porque a psicanálise e a cultura se implicam mutuamente numa relação paradoxal. Se ela não fracassasse e atendesse à demanda da modernidade, se o sintoma pudesse ser suprimido, e ele não pode, porque é o que há de mais real, como nos diz Lacan, mas… se pudesse? Se fosse atendida a demanda da cultura de suprimir a opacidade, a opacidade que é do sujeito, que é do sintoma, se isso fosse possível, a psicanálise nada mais teria sido que um mero movimento autofágico que só poderia levar à sua supressão e à da própria cultura. Pois por que falaremos de uma cultura sem sujeito? Se definitivamente o objeto viesse a comandar, bastaria que falássemos de economia, de uma economia do gozo. Portanto, nesse sentido, o fracasso da psicanálise nada mais é que aquilo que a relança, ela também, a cada vez, na sua transmissão. É o que faz dela sintoma para a cultura.
Porque do que ela fala, dos pressupostos de sua prática e de sua ação, nada se quer saber. Para que falar de transferência? De algo que situa o sujeito numa história, inscreve seu trabalho numa sucessão, daquilo que revela a heteronomia que o constitui. O que se contrapõe a isso hoje, ao contrário, é a promessa libertária de uma autonomia subjetiva absoluta e da independência de um sujeito sem nome, sem lenço nem documento, no limite sem domicílio, um sujeito que pode estar em todas, como se diz, beber em todas as fontes. Beber todas, né?
São as peripécias do sujeito de nosso tempo. É bom que se diga logo, portanto, que todas essas vicissitudes de que estamos falando, diante de seus impasses na transferência, não são uma questão apenas interna às instituições concretas, como muitos podem ser tentados a supor. Do que se trata essencialmente é da posição do sujeito diante do discurso, do discurso do analista, esteja ele onde estiver, uma instituição é um fato de discurso, é apenas uma conseqüência do discurso, e que se sustenta com o ato de alguns sujeitos, que se decidem, que se decidam a garantir o lugar da transferência, pagando com essa decisão o preço necessário a que o discurso se transmita. Portanto, nesse sentido estou concernido no que estamos dizendo todos aqueles que se situam no campo da psicanálise. Vale dizer, no campo transferencial, quer dizer, estejam dentro ou fora das instituições concretas existentes, pois estar fora destas, dizer-se fora, é num certo sentido apenas uma outra forma de estar dentro. Já que de uma coisa ninguém pode prescindir, da referência ao discurso analítico e, portanto, se o que estamos dizendo aqui se sustenta, por definição, das instituições em que esse discurso se concretiza na cena pública.
Eis que retorna portanto aí a questão do público, a questão por onde começamos. E com ela, naturalmente, essa dialética do dentro e do fora, essa topologia que é inerente à condição do sujeito falante, ele não pode sustentar sua palavra sem a referência a outro lugar, ao lugar do Outro. A verdade enquanto tal não existe, ela só se diz pela metade, mas por isso mesmo nós não podemos prescindir do lugar de onde ela se profere. A cada vez que um sujeito se submete a um significante e sustenta seus efeitos no real, ele reatualiza, ele se reporta a esse lugar, institui a dimensão de um mais além, que terá sempre sido fundado por uma enunciação originária, mesmo que ela esteja perdida no tempo. O sujeito está aí, nesse lugar, apenas representado, e isso é o que garante a exterioridade necessária a sua existência e onde atualiza o efeito disso que se perdeu. É isso que o insere numa história, onde pode certamente constituir sua singularidade e marcar seu destino, mas somente a partir das determinações de uma herança que é imemorial.
A psicanálise não tem como prescindir de seus fundadores nem daqueles que a refundam, para que ela não se torne apenas letra, ou letra morta. É isso que a demarca da ciência – mesmo introduzindo o matema, Lacan nunca se fez ilusões e se dizia freudiano, inscreveu-se e inscreveu seu trabalho na instituição freudiana. O que deve ser entendido como o reconhecimento de que um trabalho é sempre transferência de trabalho e não tem outro suporte senão a submissão ao significante, ao lugar do Outro, e uma instituição é apenas um efeito disso, é o que se sustenta desses lugares, dessas marcas, dessas linhas de transmissão que se produzem pelo discurso a partir da decisão de alguns de se fazer representar e com isso garantir publicamente esse discurso. É dessa dimensão da representação e de nada mais que se constitui a ordem pública como tal. Porque aí opera um trabalho que não é coletivo, é transindividual, e a instituição é isso, é esse laço social que decorre necessariamente dos efeitos da transmissão, a atualiza, lhe dá corpo e lugar. A psicanálise se transfere, se transmite de um sujeito a outro, para retomar a expressão de Lacan; isso só poderia se fazer, é claro, a partir dos próprios pressupostos que ela produz. Por isso a especificidade da instituição analítica, que tem de ser sustentada num espaço precário e instável, sempre paradoxal, porque se trata de instituição, mas onde o que está em jogo é fundamentalmente o que é da ordem da destituição subjetiva. É por tudo isso, pelo que ela condensa de efeitos de transmissão e de transferência, que a instituição analítica com suas vicissitudes pode, afinal, ser tomada como uma experiência in vitro do que está no cerne das graves questões de nosso tempo. O que se visa na modernidade, como dissemos, é diluir os paradoxos do sujeito e de sua transmissão em favor do que pudesse vir a privilegiar a comunicação, a transparência, nessa tentativa delirante de suprimir o véu e ir ao encontro de uma realidade finalmente evidente por si mesma. Se a secularização e a laicização da vida social representaram o enorme progresso que sabemos, o que a tentativa atual de um desvelamento levado às últimas conseqüências parece pretender agora é a supressão de toda e qualquer ordem estabelecida. É o horror ao instituído, a tudo que seja limite, que apareça como coercitivo, em prol do contrato, do contato, do acordo particular, como se fosse possível eliminar a mediação da instância terceira. Tudo isso só pode ser o corolário necessário de um esvaziamento grave do pacto simbólico. São pontos sobre os quais, como a gente sabe, Charles Melman tem insistido todos esses anos e que acabaram por levá-lo a formular a tese de seu último livro O homem sem gravidade, da emergência do que seria a nova economia psíquica. Entre nós, do lado de cá do equador, e por razões que nos são particulares, e que estão na base de nossa formação, tudo isso aparece de forma absolutamente cristalina e suas manifestações são até anteriores ao abalo atual que o império da mercadoria vem impondo a vocês, as sociedades mais desenvolvidas. Sabemos de nosso gosto pelas parcerias privadas, pelo grupo, pelo laço amoroso, pelas relações aparentemente mais verdadeiras e transparentes simplesmente porque constituídas na informalidade. Buarque de Holanda, não o Chico, mas o Sérgio Buarque de Holanda, há muito tempo, há mais de 70 anos, chamou a atenção para o charme e as ilusões do homem cordial. Ora, o que está comprometido em tudo isso é a própria dimensão do público, do que ele tem de mais essencial, que se degrada, se reduz a uma mera noção de coletivo, daquilo que só pode se definir como o conjunto dos indivíduos e que só se sustenta, portanto, nesses termos, naquilo que Lacan chamou o mito individual do neurótico. Há, naturalmente, uma abissal diferença entre essas duas dimensões: o coletivo constitui um espaço linear, extensivo, metonimicamente modulável, e imanente à realidade daqueles que o compõem, sem nenhuma referência a outro lugar, ao lugar do Outro; o público ao contrário, a res publica, só pode se sustentar, desde sempre, por uma certa referência, uma certa reverência ao que é da ordem de um mais além. Daquilo que se define em outra topologia, que está aquém dos supostos indivíduos, e, ao contrário, é o que a eles garante representação enquanto um, enquanto sujeitos. Enfim, da ordem daquilo que sustenta a dimensão metafórica e que em última instância nunca deixa de ter relação com o que é da ordem do sagrado, daí a dimensão do trágico que entretanto para nós parece ter sido completamente perdida em favor de uma certa banalização do bem e do mal. Ora, o que é abolido aí, no mesmo movimento, é a referência ao lugar da verdade inerente ao estatuto do sujeito e do desejo, pois não há sujeito transparente, translúcido, assim mesmo.
Bom, esse vazio, esse esvaziamento da representação, é isso que a contemporaneidade pretendeu nos fazer preencher apontando para a miragem de um gozo ao alcance da mão do sujeito. Mas de que sujeito? Aos impasses que isso tem levado, há, por outro lado, a resposta religiosa que também foi prevista por Lacan quando disse que a religião triunfará para fazer proliferar de novo o sentido.
Sabemos, evidentemente, que a psicanálise não pode fazer nada de forma direta contra o que está aí. Melman sempre nos lembra de que não temos soluções a oferecer. Mas há algo que podemos fazer certamente: devemos pelo menos tentar impedir que esses efeitos venham comprometer a incidência de nossa ação. Para o que é preciso ter clareza sobre o que fazemos e poder, assim, garantir o rigor de nosso dispositivo e de tudo aquilo que ele sustenta e articula. Essa é na verdade a única forma pela qual podemos efetivamente nos opor ao que está aí, ao obscurantismo que se avizinha. Pois defendendo a disciplina do que fazemos, estamos necessariamente, no mesmo movimento, constituindo uma barreira que é modesta, mas cujos efeitos não devem ser subestimados, pois são de estrutura. É o que tentei mostrar aqui, caracterizando a antinomia irredutível que há entre a psicanálise em qualquer das três dimensões em que se desdobra a sua prática, a transferência, a transmissão e a instituição, então, a antinomia irredutível entre isso e o movimento atual da cultura.
DISCUSSÃO
Christiane Lacôte: Eu tenho muita vontade de dizer algo sobre o belo texto do Antonio Carlos, porque eu acho que o que você disse tem uma grande pertinência com o nome que vocês escolheram para a sua instituição. Eu tenho uma grande admiração pelo nome da instituição de vocês, porque justamente, para um lugar de trabalho, ele sublinha a importância do tempo, o tempo freudiano, o tempo psicanalítico, marca da articulação do simbólico ao real. E eu gostei muito da importância que você deu, e que vocês dão, todos juntos, dão importância ao eclipse do sujeito, o que se perde, o que se inventa. E o que você chamava da heteronomia do sujeito, e que é constitutiva da transmissão, ela mesma. Eu acho que colocar a questão do lugar em relação ao tempo – eu me lembro que, num texto antigo dos Escritos, Lacan situava o lugar do Outro, de preferência, como uma escansão temporal –, é talvez se dar as condições de um pouco menos de imaginário. A importância que você deu também ao fato de que a palavra se constitui em relação ao real; se é verdade que a gente deve seguir o texto da clínica, nossa clínica do Colóquio comporta, evidentemente, nossos lapsos, mas também como você dizia a escolha da tradução… simultânea. Simultânea ou consecutiva? Foi um lapso, é consecutiva: não, nós não podemos trabalhar na simultaneidade. Esse é o problema, quer dizer que a gente não pega o real, traçado pela palavra, senão no… só depois. Da mesma forma que eu não posso traduzir se não houver um fragmento de frase, de frase relativamente longa. Mas não muito, mas não demais. É isso que eu queria dizer a vocês. Talvez haja questões. O Colóquio não é um consenso.
Jean-Jacques Tyszler: Eu gostaria antes de tudo agradecer, porque há muitas coisas e toda a sua exposição trata da eventual transmissão. Eu quero salientar três pontos da sua exposição que me parecem ser questões clínicas de avaliação, da torção do sujeito na modernidade. A primeira questão vai incidir sobre a topologia da palavra. Porque é verdade que a frase que a gente diz sempre é aquela do Lacan, esse lugar Outro de onde nós recebemos nossa própria mensagem. Então habitualmente a gente considera que só os psicóticos recebem sua mensagem de uma forma um pouco direta, de forma injuntiva, e a gente considera que o sujeito neurótico, ou seja, nós todos, nós teríamos a sorte de recebê-la de outra forma. E essa vai ser a minha primeira pergunta. Você não acha que nós estamos num momento em que há uma verdadeira sedução pela mensagem, mensagem direta? Se nós fizermos um pouco a análise da forma como recebemos as informações sobre a guerra, a forma mesma da mensagem e nossa capacidade em recebê-la, a gente pode se perguntar se essas mensagens não nos chegam de forma injuntiva. Uma segunda questão, eu gostei muito da passagem quando você passa do amor da transferência ao que você chama de transferência do amor. E eu me pergunto se a gente não pode, nesse lugar, trazer a palavra paixão, no sentido em que nós lidamos, na modernidade, não com formas de amor, como você definiu, mas com formas passionais da demanda. Quer dizer que o sujeito endereça, à ciência em particular, demandas totalmente passionais, ou seja, demandas indialetizáveis, quer dizer que não são tomadas naquela passagem que você descreveu tão bem. E agora, a terceira pergunta e última, há talvez um ponto a distinguir, é quando você diz cultura. Será que cultura sem sujeito é quando o objeto vem comandar? Nesse caso, há um problema particular que é colocado, já que no fundo a psicanálise é lacaniana, faz prevalecer a tirania pelo objeto, mas que não é compreendido como objeto positivado pela mercadoria.
Antonio Carlos: Eu começo pelo último que, aliás, de certa forma, você já me ajudou a responder, porque o objeto que nos comanda, que nos comandaria na cultura, e a partir do que não haveria mais por que se falar de sujeito, é justamente um objeto positivado. É justamente o objeto que vem obstaculizar a possibilidade de que o objeto apareça como causa. Então, esse ponto eu acho que é por aí. Eu até poderia dizer, você vê que a minha formulação é mais vacilante do que a fórmula de Melman que fala da nova economia psíquica, eu disse se o objeto vier a comandar. Tento guardar um pouco de otimismo. Bom, o primeiro ponto, quanto ao primeiro ponto, eu estou inteiramente de acordo com o que você está apontando, que é esse efeito psicotizante da modernidade em cima do sujeito, sobre o sujeito. Estou inteiramente de acordo com isso, aliás você viu que eu, em algum momento, falei do propósito delirante de suprimir o véu. Então essa torção aí faz com que certas categorias com as quais a gente até aqui abordava o psicótico que nós não somos, hoje isso meio que se impõe a nós, isso entra na nossa casa pela televisão, por todas as formas de injunções que estão aí na cultura. Então nesse sentido eu estou inteiramente de acordo. O segundo ponto vai no mesmo sentido. Vai no mesmo sentido em que justamente se se ultrapassa esse limite, se se chega a configurar-se essa torção sobre o sujeito, ele efetivamente é tomado aí por uma… isso que a gente chamava uma paixão psicótica. Por exemplo, essa questão das informações, há um ponto que é extremamente interessante. Porque é verdade que a gente poderia, por exemplo, de um ponto de vista político, a gente sempre esteve sensível, pelo menos todos aqueles que tinham uma certa consciência política, ao efeito de manipulação dos meios de comunicação, enfim, daquilo que está nas mãos daqueles que detêm o poder, do ponto de vista da política, enfim, tudo que Marx nos disse, nós somos manipulados pelo que está determinado na infra-estrutura. Mas é verdade que há agora algo diferente, algo a mais. Algo a mais que parece que é anterior à própria…, digamos assim, é algo como se fosse anterior à própria possibilidade da decisão do sujeito de se alienar politicamente. É algo que tem uma anterioridade, é alguma coisa que se impõe a ele. Bom, enfim, grosso modo…
Christiane Lacôte: E é por isso que eu gostaria de perguntar ao Jean-Jacques Tyszler – eu não sei se estou totalmente de acordo com você na formulação, pelo menos, eu não sei se se trata de uma passionalização da demanda ou das demandas, eu diria que se trataria sobretudo do escamoteamento da demanda. Ou seja, tudo o que é proposto de forma publicitária antecipa qualquer demanda possível.
Antonio Carlos: Eu ia só dizer que eu acho que uma coisa não se opõe à outra. Acho que uma coisa não se opõe à outra, porque é verdade que há uma supressão da possibilidade do pedido, da manifestação do pedido. Mas isso implica, ao mesmo tempo, a passagem ao ato quando justamente aquilo a que o sujeito é de tal forma… ele é condicionado a supor que aquilo lhe é de direito, ele pode passar ao ato, e aí eu acho que ele pode, bom, enfim, nós aqui temos experiências que para vocês não são tão cotidianas, mas facilmente aqui se mata por um par de tênis.
Jean-Jacques Tyszler: Acho que as posições não são incompatíveis, eu estava me referindo especialmente às demandas, as demandas em relação a técnicas, à medicina e às ciências, que são demandas imperativas, passionais e reivindicativas. Reivindicativas… isso tem um aspecto de querela – né? De querulência?
Christiane Lacôte: Eu estava retomando o que dizia o Bernard, algo que é reivindicado, e eu disse, eu fui mesmo até à querulência – que eu não sei exatamente qual é a palavra – que tem a ver com um delírio.
Antonio Carlos: Eu fico um pouco preocupado. Bom, nós… o modo como nós dispusemos o tempo, vocês sabem, nós temos esse tempo assim, para discutir depois da intervenção, mas nós temos, na quinta e na sexta, um tempo grande no final do dia, em que todas as questões podem ser retomadas. Então, perguntas e debates a respeito das intervenções podem ser retomadas depois. Se vocês estiverem de acordo, eu acho que agora a gente podia interromper, porque eu estou ansioso para ouvir Roland Chemama, e fazemos um intervalo
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A clínica psicanalítica e as novas formas do gozo