Jornadas sobre “Anorexia-bulimia : Clínica, lógica, tratamento”
Nicolas Dissez – 12/06/2008
Eu lhes proponho partir dessa primeira constatação: estamos, com a anorexia mental da jovem, diante de um quadro estabelecido há muito tempo, cujos elementos clínicos foram repertoriados de modo bastante preciso, e que, sob essa forma clássica, parece relativamente fixo. Se essa descrição nos deixa insatisfeitos, se ouso dizer, é que ela se limita a um registro fenomenológico e não propõe uma articulação lógica convincente dos diferentes signos enumerados.
Podemos, com efeito, reconhecer alguns quadros clínicos sem poder isolar neles uma articulação estrutural enquanto tal. Sabemos que é um esforço de articulação desse tipo que conduz Freud quando ele especifica os grandes registros da paranóia em torno de fórmulas gramaticais derivadas dessa primeira fórmula: “eu (um homem), eu o amo (um homem)”. Stéphane Thibierge pôde propor, no que concerne à síndrome de Frégoli (“o outro é sempre o mesmo”) ou à síndrome de ilusão dos sósias
( “o mesmo é sempre outro”), escritas desse tipo.
Uma articulação assim, tanto estrutural quanto gramatical, não foi isolada no que concerne ao quadro da anorexia mental da jovem. A aproximação, freqüentemente proposta, da anorexia mental com a adição, não me parece valer aqui senão a título de uma analogia, sem oferecer essa especificidade estrutural. Encontramo-nos assim, diante dessas pacientes, numa situação particular: podemos ser sensíveis ao fato de que elas são guiadas por uma lógica específica, mas, esta lógica, nós não a identificamos enquanto tal.
A leitura desse quadro pelo viés de uma organização dos sintomas centrados pela pulsão oral concorre provavelmente para mascarar as questões essenciais, pois acontece que, ao receber certos pacientes, poderíamos dizer, de maneira a priori paradoxal: “trata-se de uma problemática de anorexia mental… exceto que ela não tem nenhuma dificuldade de ordem alimentar”. Acontece justamente que, nesse caso, somos sensíveis a um tipo de lógica própria à anorexia, mas cuja denominação sob a forma de “distúrbio das condutas alimentares” mostra seus limites. Em seu texto sobre a direção do tratamento, Jacques Lacan evoca assim, em relação ao “homem dos miolos frescos”, o paciente de Kris, um registro “de anorexia, nesse caso, quanto ao mental”[1] desconhecido, capaz de esclarecer de modo diferente o registro clínico.
Eu lhes proponho então partir dessa situação clínica habitual, cotidiana na instituição em que trabalho: um grupo de pacientes está reunido na sala comum, entre os quais figura uma paciente anorética num estado de desnutrição severa. Passando diante deste grupo, meu olhar é automaticamente capturado por esta paciente caquética. Essa captura do olhar tem algo de automático, ela não provém de nenhuma intenção. Diante dessas pacientes, das quais se diz comumente que “só lhes restam a pele e os ossos”, e cujo corpo evoca irresistivelmente o registro do cadáver, nosso olhar, mesmo quando se é um homem, é imediatamente o de uma mãe inquieta. Esse contexto exclui em particular qualquer possibilidade de erotização do olhar. Parece-me haver, nesse enfoque muito simples, elementos de estrutura capazes de esclarecer o registro em questão.
Um tal ponto de partida clínico poderia então nos levar a abordar esse quadro tanto pelo viés da pulsão escópica quanto pelo da pulsão oral. Em outras palavras, trata-se, para nós, de isolar as modalidades específicas segundo as quais essa posição subjetiva, ao fazer abstração da função fálica, desemboca na vinda ao primeiro plano da função do objeto a e num remanejamento do lugar das diferentes pulsões parciais.
As dificuldades em articular a lógica de um tal quadro clínico devem-se provavelmente ao lugar predominante que a função do objeto a ocupa. Esse objeto, com efeito faz habitualmente obstáculo a qualquer reconhecimento imediato, e a primeira apreensão que podemos ter dele dá-se regularmente sob o modo da irrupção da angústia. Gostaria de indicar que a clínica da anorexia nos confronta com os efeitos diretos, sobre o funcionamento do organismo, da vinda ao primeiro plano da função desse objeto. É nisso que a aproximação com a clínica das psicoses parece, em certa medida, justificada, embora as pacientes em questão não sejam, na maioria dos casos, de estrutura psicótica.
Gostaria de evocar nesse contexto a fala de um professor de Reanimação do hospital da Pitié-Salpêtrière que, na ocasião de uma perícia, evocava sua experiência com pacientes psiquiátricos confrontados aos efeitos somáticos, às implicações orgânicas e às conseqüências vitais de sua patologia mental. Ele indicava: “Há três tipos de pacientes que, num serviço de reanimação, podem apresentar uma parada cardíaca brutal inexplicável que nós não conseguimos reverter, embora estejamos a priori nas condições mais favoráveis de vigilância e de rapidez de intervenção. Trata-se dos casos de catatonia, de melancolia e de anorexia mental”. Não poderíamos, nesses diferentes contextos clínicos, isolar as situações que correspondem à tomada de comando direta por esse registro do objeto a?
Parto então dessa vinda ao primeiro plano do objeto a na clínica da anorexia, na medida em que ela comporta esse ponto de uma captura do olhar materno. Essa dimensão é perceptível em seus desdobramentos transferenciais que se manifestam regularmente pela exigência de ocupar, junto ao clínico, uma posição de exceção. A questão parece aí ser justamente a de capturar a atenção do Outro. Lasègue ressaltou isso num artigo datado de 1884, ainda célebre: “A anorexia torna-se pouco a pouco o único objetivo das preocupações e das conversas. Cria-se assim um tipo de atmosfera em torno da paciente que a envolve e à qual ela não escapa em nenhum momento do dia. Os amigos se juntam aos parentes, cada um contribui para a obra comum de acordo com a tendência de seu caráter ou o grau de sua afecção”[2]. Como indicar melhor que essa posição de inércia, essa posição em oco, negativada, é a que coloca a paciente em posição de comando em relação ao conjunto de seu entorno?
Parece-me essencial sublinhar, nesse contexto, que, se a clínica da anorexia vem colocar sob o olhar um corpo descarnado, os vômitos são, por sua vez, em sua forma habitual, dissimulados, ou seja, retirados do campo do olhar.
O desconhecimento de seu emagrecimento por essas pacientes deve ser situado nesse registro de uma modificação radical do campo do reconhecimento, pelo fato da vinda ao primeiro plano da função do objeto a. Seria o caso, provavelmente, nesse quadro, de tentar esclarecer as modalidades dessas modificações do reconhecimento da imagem do corpo com a ajuda do esquema óptico proposto por Lacan.
Essas pacientes anoréticas, na grande maioria dos casos, no entanto não são psicóticas. As entrevistas permitem verificar regularmente uma posição de hostilidade marcada em relação a um registro fálico perfeitamente identificado. Trata-se então de isolar a lógica específica que traz ao primeiro plano a função do objeto a e suas conseqüências sobre o remanejamento das pulsões parciais. É essencial realçar nesse quadro que essa vinda ao primeiro plano da função do objeto a é concomitante a uma recusa de qualquer apoio na função fálica.
A recusa dessa função se traduz assim, regularmente, por situações em que a estrutura familiar junta sob o mesmo teto a paciente, sua mãe e a avó materna, cada uma dessas mulheres tendo excluído qualquer possibilidade de acolher um homem na casa. Nesse contexto, indica Lasègue, “O médico, se ele tinha prometido uma melhora rápida, ou se ele desconfiou da má vontade da doente, perdeu há muito tempo sua autoridade moral”[3].
A formulação, particularmente esclarecedora, proposta por Thierry Jean quando ele sublinha que “a anorética é aquela que diz não à representação”, parece-me situar-se nesse quadro num cruzamento dos caminhos: ela indica uma modalidade de recusa das representações femininas do corpo, na medida em que essas representações se sustentam na função fálica, mas essa formulação permite também sublinhar que, no lugar e posição dessa representação, a anorética traz automaticamente a função desse objeto que escapa a toda representação, ao preço de tomar a aparência de um cadáver animado.
Gostaria de lembrar aqui as formulações de Lacan durante o seminário “A relação de objeto”, que vêm indicar a articulação do reconhecimento da imagem do corpo com o momento do estádio do espelho e do desejo materno no quadro dessa conjuntura anorética. Cito uma passagem da lição de 27 de fevereiro de 1957: “Ensinei que, no momento em que o sujeito apreende a totalidade de seu corpo próprio em sua reflexão especular, (…) é antes um sentimento de triunfo que ele experimenta. Trata-se aí de uma reconstrução que pode ser confirmada pela experiência e o caráter jubilatório desse encontro não deixa dúvidas. Mas convém aqui não confundir duas coisas. Há, de um lado, a experiência da mestria que vai dar à relação do filho com seu próprio eu um elemento de splitting essencial, de disjunção consigo mesmo que permanecerá até o fim. Há, de outro lado, o encontro com a realidade do mestre. (…) Assim, o momento de seu triunfo é também o portador de sua derrota. Quando se encontra na presença dessa totalidade sob a forma do corpo materno, ele deve constatar que ela não lhe obedece (…). É aí que pode se inserir isso a que fiz alusão agora mesmo quando lhes falei da anorexia mental. Poderíamos ir um pouco rapidamente, e dizer que o único poder que o sujeito detém contra a onipotência é dizer não no nível da ação, e introduzir aqui a dimensão do negativismo que não é sem relação com o momento que eu viso. Chamo a atenção no entanto para o fato de que a experiência nos mostra, e não sem razão, que não é no nível da ação e sob a forma do negativismo que se elabora a resistência à onipotência na relação de dependência, é no nível do objeto, que nos apareceu sob o signo do nada. É no nível do objeto anulado enquanto simbólico que o filho põe em cheque sua dependência, e precisamente nutrindo-se de nada. É aí que ele reverte sua relação de dependência, fazendo-se, por esse meio, mestre da onipotência ávida de fazê-lo viver, ele que depende dela. Desde então, é ela que depende por seu desejo, é ela que está a sua mercê, à mercê das manifestações de seu capricho, à mercê da própria onipotência dele”[4].
Se eu devesse nesse momento me sustentar num dos apólogos de Jacques Lacan para esclarecer essa clínica da anorexia, eu poderia ser tentado a lembrar aquele do “osso na goela do crocodilo”. É justamente, com efeito, a questão da confrontação com o desejo da mãe que esse apólogo põe em jogo. Esse desejo se encarna na goela de um crocodilo, que ameaça, conforme seu capricho, fechar-se a qualquer momento sobre o sujeito. Só um pedaço de pedra, um osso, no nível dessa goela, pode retê-la, imobilizá-la no caso em que ela viesse a se fechar. Esse osso, Lacan precisa, “é o que chamamos de falo”[5].
As formulações extraídas do seminário sobre “A relação de objeto” permitem no entanto ressaltar que é de um modo diferente do apoio nesse osso fálico que a anorética opera em sua confrontação com a onipotência materna. É isso que eu gostaria agora de tentar esclarecer sustentando-me num outro apólogo de Jacques Lacan, o do louva-a-deus.
O apólogo do louva-a-deus é utilizado por Lacan para indicar a relação da angústia com o desejo do Outro. Ele situa um sujeito com uma máscara e confrontado com a figura ameaçadora de um louva-a-deus gigantesco, representante, aí também, do desejo do Outro. A angústia do sujeito incide nesse ponto em que é a forma, a representação figurada por essa máscara, que determina ou não a voracidade do louva-a-deus em relação a ele. O que produz a angústia do sujeito na situação, precisa Lacan, é que, no espelho enigmático do globo ocular do inseto, o sujeito não vê sua própria imagem, ou seja, a máscara com a qual ele está revestido. “Eu indiquei”, precisa Lacan, “que a função angustiante do desejo do Outro estava ligada a isto, que eu não sei que objeto a eu sou para esse desejo”[6].
Parece-me que aqui é sensível que, recusando-se a ostentar qualquer imagem, a anorética escapa a essa questão e à angústia associada a ela. O dispositivo anoréxico reverte essa posição: confrontada com o desejo da mãe, a anorética não está mais sujeita à angústia. Recusando-se a ostentar qualquer imagem, apresentando-se sem máscara ao olhar do desejo materno, a anorética anula a questão do desencadeamento da voracidade do Outro. É sua sobrevida que se torna a questão do olhar angustiado que recai sobre ela. O poder mudou de mãos, enquanto a angústia passou para o Outro materno.
Ali onde usualmente é o osso fálico que vem fazer obstáculo à onipotência materna, a anorética opõe então um outro dispositivo, que traz ao primeiro plano a função do objeto a. Esse dispositivo modifica radicalmente as coordenadas das relações com o Outro, bem como as questões transferenciais. Parece-me então essencial, para concluir, sublinhar os riscos, para o clínico, de qualquer abordagem desse contexto num registro fálico, pois o que então não deixa de responder é um registro em que, de um modo automático, é o objeto que ordena a lógica. Proponho-lhes ler um certo número de situações clínicas à luz desse deslocamento do registro fálico ao do objeto.
Podemos assim lembrar esse ponto de partida habitual dos distúrbios anoréxicos, que consiste numa interpelação, da parte de um próximo, a se por em conformidade com um aspecto fálico do corpo: “Você devia prestar atenção a sua aparência!”. Apelo perfeitamente escutado e identificado em seu registro fálico, ao qual a paciente responde por um regime que parece, num primeiro tempo, responder a essa demanda, mas logo se revela ter um efeito de apagamento das formas femininas, substituindo essa falicização da imagem pelo registro de um corpo cadaverizado. Substituição então de uma demanda situada num quadro fálico por uma resposta no registro do objeto a.
As questões transferenciais também me parecem poder por em evidência os riscos de uma confusão desses dois registros. O endereçamento ao Outro materno, esse apelo a ocupar um lugar de exceção, poderia com efeito ser lido como demanda a ocupar uma posição de exceção fálica. Essa leitura no entanto me parece arriscada, pois, se o que eu tento trazer é correto, essa posição da anorética consiste muito mais numa aspiração a capturar o olhar do Outro, posição cujos determinantes, inclusive em suas conseqüências transferenciais, são essencialmente diferentes.
Enfim, talvez eu possa retomar, neste quadro, os dados clínicos trazidos por Thierry Jean quando ele evoca essa paciente anorética cuja alimentação se via submetida a uma redução progressiva mas implacável, por um puro jogo de fração. Uma folha de salada se via progressivamente reduzida ao longo das refeições a uma meia folha de salada, depois a um quarto de folha… Uma porção de arroz tornava-se uma meia porção de arroz, depois um quarto de porção, depois um oitavo… etc. Uma situação assim me parece exemplificar essa extenuação do Um ao a, à qual o automatismo da estrutura submete a anorética.
Tradução : Sergio Rezende
Para ler o texto original : http://www.freud-lacan.com/fr/44-categories-fr/site/1312-Anorexie_mentale_changement_de_logique
[1] Jacques Lacan, La direction de la cure et les principes de son pouvoir, in Ecrits, Edition du Seuil, p 601
[2] Ch. Lasègue, De l’anorexie hystérique, in Etudes médicales, Tome premier, p 53-54.
[3] Ch. Lasègue, De l’anorexie hystérique, in Etudes médicales, Tome premier, p 52.
[4] Jacques Lacan, Le séminaire livre 4, La relation d’objet, Edition du Seuil, p 186-187
[5] Jacques Lacan, Le séminaire livre XVII, L’envers de la psychanalyse, Edition du Seuil, p 129
[6] Jacques Lacan, Le séminaire livre X, L’angoisse, Edition du Seuil, p 376