Sexta-feira de Sainte-Anne
Marcel Czermak – 15/02/2007
Seminário de Marcel Czermak
Sexta-feira de Sainte-Anne, janeiro de 2006[1]
Stéphane Thibierge : Eu lhes proponho partir do seguinte ponto, aferente a nosso trabalho, que dá conta de uma preocupação que Marcel Czermak queria abordar. Trata-se da maneira pela qual apreendemos, apanhamos os fatos da clínica. Poderíamos começar a falar disso a partir de duas conjunturas da situação atual.
Na primeira dessas conjunturas eu estive diretamente implicado, já que por sua iniciativa, junto com Marcel Czermak, Alain Cardon e Alain Harly, em Poitiers, reunimos algumas pessoas que fazem apresentações de doentes, ou seja, pessoas diretamente ligadas a essa questão do fato clínico, como é que se apanha um fato clínico, pois se trata disso, o que chamamos de uma apresentação de doente. Numa apresentação de doente, trata-se da maneira pela qual cada um dá conta da maneira pela qual ele apanha ou não, aliás, como ele procede para estabelecer os fatos. Quais são os fatos? O que é que há? Do que é que falamos?
Uma segunda conjuntura concerne a Christian Hoffmann, mas Marcel está ligado a ela, trata-se de um colóquio, do qual participamos e organizamos em parte, em Poitiers, dentro de dez dias, sobre a passagem ao ato. Hoje em dia trata-se de uma questão atual, seria o caso de dizer. Trata-se de uma questão que é particularmente, eu não diria mal abordada, mas abordada de uma maneira que não é muito feliz e por razões que eu lhes proponho evocar um pouco com vocês hoje.
Então, com relação a esses dois pontos: como é que se apanha um fato clínico – sempre essas questões de método que nos animam – e o outro ponto: o que é que se faz com a passagem ao ato, já que se trata de um fato, a passagem ao ato. O que é que é preciso para que seja um fato? Quando vocês dizem “passagem ao ato”, não é suficiente para caracterizar um ato, naturalmente. Trata-se de um dado muito pobre no plano comportamental, a passagem ao ato. É portanto necessário ir um pouco mais longe.
Para encaminhar nosso trabalho de hoje, eu lhes proponho partir daí, depois Christian nos dirá o que ele pensa disso. Essas questões de método, tal como as trabalhamos enquanto analistas ou enquanto concernidos pela análise, enquanto sujeitos, mas esse termo sujeito, não é um termo evidente. Talvez eu volte a isso porque quando emprego esse termo sujeito, não é evidente que sejamos sujeitos. Quero dizer com isso que, na nossa vida comum, temos uma propensão, que não é verdadeiramente necessário realçar, a nos colocar de bom grado de uma maneira que nos põe na função de objeto muito mais do que na de sujeito. É por isso que não é evidente falar de sujeito a propósito de cada um de nós. É como a divisão do sujeito. Essa famosa divisão do sujeito de que falamos como se fosse uma evidência, enquanto ela não o é de modo algum.
A divisão do sujeito supõe que um sujeito fale do que lhe concerne, do que o toca, do que o faz falar, justamente. Não é uma condição atendida de maneira geral. De maneira geral, a divisão do sujeito não está presente, eu diria mesmo que, é uma observação, eu talvez desenvolva essa questão, porque se trata de um ponto que acho muito importante na clínica e na doutrina. A divisão do sujeito é justamente o que é recalcado na neurose. E vocês sabem que na análise, quando um sujeito neurótico vem à análise, não é sempre simples nem evidente, longe disso, levá-lo a consentir em se dividir, no sentido de falar. Há sujeitos que levam muito tempo para consentir em colocar em ato essa divisão. Não somos ordinariamente divididos e somos ordinariamente levados a nos colocar em posição de objeto e não de sujeito.
Não é desonroso se colocar em posição de objeto. Não, mas é simplesmente para lhes fazer entender que essa posição de sujeito, da qual Lacan dizia em “Ciência e Verdade”, de maneira viva, como sempre: “por nossa posição de sujeito, somos sempre responsáveis”. Se ele lembra isso, é que não é evidente que assumamos essa responsabilidade. Então, isso para dizer que quando se trata de estabelecer os fatos, quando se trata de saber do que é que falamos, com o que é que trabalhamos e o que é que levamos em conta, pois bem, o primeiro instrumento metodológico que temos, pode parecer um pouco trivial lembrá-lo, se bem que eu não acho que seja, o primeiro instrumento que temos é uma língua, uma linguagem bem feita. Não é inútil lembrar, hoje em dia, quando a ênfase dada à maneira de falar, à linguagem que cada um fala, essa ênfase, como vocês sabem, está em vias de se perder e então, esse primeiro instrumento de abordagem dos fatos clínicos que nos interessa é uma linguagem suficientemente bem feita para tomar parte, para fazer parte disso. Trata-se de uma questão maior hoje em dia, eu acho, na medida em que muitos sujeitos são excluídos da linguagem que falam. Isso esclarece muito a questão da passagem ao ato. Vou ficar por aqui.
Marcel Czermak : Com isso que vocês acabam de evocar, eu poderia achar que a telepatia existe. Pois, justamente, eu contava continuar coisas que começamos a levantar da última vez, na medida em que, tendo visitado recentemente meus colegas de Brest, soube que eles pretendem, como tema de sua reunião anual no mês de junho, abordar a seguinte questão: “Como é que se ensina a psicanálise hoje em dia?”.
É sempre difícil ter uma idéia do que estamos fazendo, pois só o medimos a posteriori. Eu poderia lhes dizer, justamente, como é que se ensinava quando eu era mais jovem, mas minha fala não vai ser exatamente essa. Seja o que for, havia sempre uma questão que perpassava, e Lacan dizia: “Façam como eu”. Isso, isso não leva a nada: “Façam como eu”, “é preciso que haja quem faça como eu”.
Enfim, se retomamos essa questão, que está aqui alinhavada: “o que é um fato clínico”, e como é que isso se dá, não é nada evidente. Sem dúvida, existe gente que imagina que os fatos clínicos saem completamente armados de nossa cabeça e que teríamos apenas que inscrevê-los, que eles viriam nos ditar o que convém.
Há uma coisa, em todo caso, que, no que me concerne, é bem sensível. Pediram-me para redigir, no último fim de semana, o prefácio de uma publicação que deve sair, que colegas brasileiros e franceses prepararam, de traduções de textos deles. Eu os relia, e o que me apareceu claramente, primeiro eu me senti obrigado a assinar, meu nome sendo ali secundário, do lugar onde isso foi construído, ou seja, tanto dessa associação em que nos encontramos quanto da escola de Sainte-Anne e, sobretudo, como é que eu via o conjunto dos textos? Aliás, os próprios autores já o tinham demarcado, e muito melhor do que eu teria sabido fazê-lo, como uma antologia didática e genealógica das questões partilhadas, com uma única condição, que é a mais difícil e raramente se realiza, que é a de estar submetido, a qualquer preço, a um discurso comum. Não o “discurso comum”, mas um discurso que nos seja comum. Essa é, evidentemente, a coisa mais difícil na atmosfera de pretensão à discussão e à troca em que estamos, em que cada um teria sua palavra a dizer sobre cada um e o que quer que seja, é perfeitamente claro que só se fala com gente a quem se tenha infundido, a quem se tenha transmitido, a mesma linguagem. Isso, isso já leva alguns anos.
Se vocês lerem a última edição da Magazine littéraire consagrada a Freud, que é apenas um número destinado a servir de badalação para a Sra. Elizabeth Roudinesco, essa questão está perfeitamente evacuada. Há ali um artigo de um senhor que é diretor dos Hautes Études, que ainda não aprendeu nada apesar de sua idade avançada, continuando a se insurgir contra o que ele chama de “idioleto”[2]. Como se toda disciplina não tivesse que forjar a língua que lhe é oportuna! Quem vai censurar um matemático por dizer “função de”? Quem vai impedir um matemático de escrever, para designar o infinito, um pequeno oito deitado? Que vai impedir Eintein de escrever E=MC2 ? É muito espantoso ler essa reivindicação, ligada ao fato de que cada um se estime parte integrante em qualquer discurso ambiente. Estamos envolvidos numa história na qual seria preciso que cada um abdicasse de sua própria forja em benefício do discurso comum e abandonasse sua própria linha.
Esse viés, para lhes dar, de algum modo, algumas observações preliminares que não nos deixem completamente desarmados diante da bobagem ambiente, ainda por cima agressiva, em que cada um está implicado, mesmo procurando se desimplicar, já que o grande elogio, nesse número da Magazine littéraire, em relação à Sra. Roudinesco, é que ela não tem nenhum dogmatismo, que ela não é sectária, que ela gosta de todo mundo, que ela dá atenção a todo mundo, enfim, isso aí… Não é assim que se faz a doutrina e, como vocês sabem, a doutrina, infelizmente, supõe sempre se apoiar em questões que sejam axiomáticas, ou seja, dogmáticas: não tem jeito! Como vocês vêem, trata-se de encaminhamentos que não apenas são antianalíticos, mas anticientíficos propriamente falando. Se estou a bordo de um navio e o capitão do navio diz: “Direção 180, deriva de –3”, isso quer dizer o quê? Trata-se de idioleto? Isso quer dizer um mapa, compassos, lápis, borrachas, binóculos e aí vemos qual a rota que seguimos.
Então, esse terceiro volume, traduzido por nossos amigos para os brasileiros, é extremamente interessante para mim quanto aos fatos, pois eu não mexi um dedo para sua publicação. De que maneira eles tentaram apanhar e retomar a genealogia do trabalho partindo daquilo que é preciso mesmo dizer e admitir: Lacan! Ali, evidentemente, há coisas que Lacan não trabalhou. Não é Lacan, é inédito. Enfim, tem o mérito de indicar de que maneira, no quadro de um mesmo discurso, há gente que pode chegar a abrir uma gaveta e, nessa gaveta, encontrar uma outra e depois fechá-la e fabricar uma nova. O que nos leva, ainda assim, à dificuldade, para nós mesmos, de resistir ao que seria a demolição daquilo que seriam nossas próprias condições de produção. Em que condições nós produzimos? Em um número da Lettre de la psychiatrie française, que é um jornal sindical que eu recebo, há uma carta de um colega corso que relata as falas da diretora do hospital de Bastia, que se queixa, enquanto diretora do hospital, de que “seus instrumentos de produção não acompanham”. Esses instrumentos de produção são os médicos! Como vocês vêem imediatamente, a questão de saber até que ponto, pois afinal somos sempre o instrumento de nossos pacientes, enfim, ser o instrumento de seus pacientes é uma coisa, instrumento de seu próprio diretor é outra.
Em todo caso, o que eu queria evocar, com relação a esses volumes brasileiros, é que eles têm o mérito de mostrar que a clínica, isso não se constrói sozinho. Pois, se no discurso que nos é comum, ao qual seria preciso se submeter, se está sozinho, pois bem, não se constrói nada. Há uma colega brasileira que veio me visitar esta semana e eu a interroguei um pouco, justamente, sobre as condições de produção da psicanálise lá onde ela se formou. Então, é formidável: uma pessoa = uma instituição. É isso mesmo! Isso quer dizer que é a própria recusa da transferência! Eu sou, por mim mesmo, uma instituição, isso é a própria recusa da transferência! Evidentemente, não há nada a esperar daí.
Da última vez, eu brinquei um pouco a propósito da questão do falo, dizendo que o falo é o que serve para enviesar. Isso fez vocês se divertirem um pouco. Mas é bem mais verdadeiro do que vocês podem imaginar, penso nos Bretões e nos Brasileiros. Da última vez que fui a Brest, me trouxeram uma moça para examinar. Eu queria ter a observação integral, infelizmente ela me foi enviada pelo correio essa manhã. Então, tomei conhecimento por alto, numa transcrição um pouco rápida demais. Uma vez mais, volto ao fato de que, quando lidamos com pacientes rigorosos, o mínimo é estar à altura dos pacientes, ou seja, ser tão rigoroso quanto eles. Assim, a transcrição não está totalmente à altura da paciente.
Seja como for, havia ali algo de extremamente interessante. Sem retomar toda a observação em detalhe, essa paciente psicótica distinguia muito bem o que ela chamava de voz alta, isso que estamos fazendo aqui, eu me dirijo a vocês, conversamos, isso se ouve, e depois a voz infraverbal ou a voz off.Era em suma um diálogo paralelo, isso se encontra em certos casos de automatismo mental, então era uma voz paralela. Então, como ela chamava isso de sua voz infraverbal, pusemo-nos a conversar e tentei estabelecer as características que distinguem a voz alta, essa que eu tenho agora, me dirigindo a vocês, dessa voz infraverbal que convoca e na qual se convocam diversos interlocutores. Então, o que é muito interessante, é que eu entrei nesse diálogo a fim de estabelecer as características estritamente formais tanto da voz alta quanto da voz infraverbal. Eu me abstive de procurar o menor sentido. Apenas tentei estabelecer as características formais dessas vozes de modo a poder apreciar não o sentido, mas a significação.
Vou lhes dizer uma palavra a respeito, mas o que era extremamente interessante, no plano didático, no plano do trabalho, da pesquisa, era que, excepcionalmente, estavam lá três enfermeiras que se ocupam da doente – elas sempre se perguntam se podem vir, se isso é endereçado a elas -, mais uma jovem estudante de medicina que estava chegando e que estabeleceu a observação. Era a primeira observação psiquiátrica que ela estabelecia em sua vida. O que é extremamente interessante, em primeiro lugar, é que agora se formam as enfermeiras dizendo-lhes que há entrevistas de enfermagem, que há diagnósticos de enfermagem.
Eles pensam que é parecido com os “especialistas” e então, estavam muito espantados com o fato de que a entrevista que eu acabara de ter com essa moça não tivesse nada a ver com a entrevista deles; de se dar conta de que, colocá-la no bom caminho, recolocar as coisas no lugar, não tinha sido minha preocupação e que tenha sido simplesmente: Com quem você fala? Quando isso começou? De onde vem? Quem toma a iniciativa? De quê isso fala? Portanto, um caráter puramente formal. O que era interessante ali, é que todos são gente triturada, trabalhada, entre parênteses, por estudos em que lhes ensinaram a psicologia. Então, vejo essa jovem estudante, de vinte e cinco ou vinte e seis anos, trata-se de sua primeira doente, ela não conhece nada. Dizem a ela: “você estabelece a observação”. Então, como ela não entende nada, é formidável, ela se agarra aos galhos. E os galhos não são assim tão ruins! Ensinaram a ela na medicina que, diante de uma dor, procura-se saber onde ela se situa, como e quando ela se desencadeia, quais são suas características, transfixante ou não? Pra onde irradia? Portanto, ensinaram-lhe a transcrever as coisas puramente formais. Então, ela faz como de Clérambault. Ela faz uma observação impecável, e eu me digo: “Diabo, mais três anos e ela está ferrada!” Se ela for estudar mais tempo ela está ferrada! Ela está muito bem assim!
Vou ler para vocês alguns pequenos fragmentos, de qualquer modo, se bem que isso se preste mal à sistematização. Não tive muito tempo pois só recebi agora. Enfim, a voz alta: “a gente pode mentir”. Quanto à voz infraverbal, a voz baixa: “não há mentira, ela comporta a verdade absoluta e é preciso encontrar a palavra certa”. Ela descobriu essa voz infraverbal e descobriu uma nova comunicação. Então, essa comunicação, muitos a utilizam, sua mãe e outras pessoas, então, cada um pode utilizá-la. Antes, eles vivem todos em suas mentiras com a voz alta. É muito interessante! Todo mundo mente. Em voz baixa, então, em voz infraverbal, pode-se trocar todo tipo de comunicação, porque aí as pessoas são muito mais sinceras, vai de pensamento a pensamento, e ela tem essa fórmula deliciosa: “Ninguém pode impedir que o outro esteja em seus pensamentos”. Não é que o outro esteja em meus pensamentos, são os pensamentos do outro que vêm parasitar os nossos. Eu lhe pergunto então se é ela que os convoca ou se eles é que se convidam. Então: os dois são possíveis. Tanto ela os convoca e há uma discussão, quanto eles se convidam sozinhos. Eu lhe faço observar que comigo, me acontece todos os dias de convocar um monte de colegas com os quais eu discuto um pouco e há mesmo aqueles que se metem e que eu não convidei. (Risos). Não é parecido porque, precisamente, a distinção concerne ao fato de que eu posso convidar quem eu quiser no meu pequeno debate interior, em todo caso, com ela, é franco e direto e dá sempre mais ou menos certo o tempo todo. E então, ela começa a ficar feliz.
Em voz “alta”, mente-se, em voz “baixa”, “infraverbal”, ela diz que também se pode mentir, mas de preferência é feito para esclarecer as coisas. Quando as pessoas se falam em voz alta, há sempre sentimentos misturados. É verdade! Se me endereço a vocês, posso ser ambivalente, descontente, estar embaraçado com o fato de ter chegado meia hora atrasado, achar a melhor ou a pior das desculpas, enfim! Mas ali, no nível infraverbal, não há engano. Em voz alta, podemos estar numa relação mais imperfeita, temos a pessoa na frente, diretamente, há menos demanda de sinceridade, em voz off há mais esforço. Vocês vêem como aparecem dois níveis, dos quais um estaria desembaraçado de nossa resistência comum, portanto um nível sem resistência, franco e sincero, onde poderíamos invocar, convocar ou se fazer convocar espontaneamente, mas sem que isso crie problemas do tipo daqueles que encontramos em nossas relações efetivas com o outro. Nesse momento, acabo por lhe perguntar se há um namorado do lado da voz infraverbal. De todo modo, como era uma dama que eu examinava, era preciso que eu lhe perguntasse se ela tinha um namorado. Havia um namorado, havia mesmo dois, com os quais a relação era espontânea, franca, direta, desprovida de qualquer escória, enfim, a verdadeira felicidade e as promessas. Ela simplesmente não quis me dizer seu nome. Enfim, a voz off tinha o direito de ter assim mesmo algumas pequenas resistências! Mas o namorado em questão, tinha assim mesmo marcado um encontro com ela. Então, aí também, não pude obter o local do encontro. Suspeitei, vocês que conhecem Brest, que ele deve ter marcado o encontro naRécouvrance. É, de todo modo, no plano da estrutura, o local ideal para conseguir um encontro com uma jovem. Então agora que há uma balaustrada para impedir os suicídios! Enfim, ela não quis me dizer onde era o encontro, ela foi até lá e, decepção, o namorado em questão não estava lá. Enfim, ela o trocou por um outro. Ele tinha prometido o quê, esse namorado? Ele tinha prometido, é delicioso: “que a gente ficaria junto”.
Só com isso, como a coisa está incompleta, recaímos nessa história do falo como instrumento do viés, pois ela indica muito claramente de que modo, em sua linguagem comum, corrente, diante do outro, evidentemente, há uma opacidade. Há uma incógnita: a alteridade do outro. Existe mentira inexorável e inevitável e, no fundo, todo mundo mente. Agora há seu Imaginário, que é seu Real, que ela convoca, onde ela é convocada, a relação é transparente, o objeto é o bom. Enfim, aproximativamente, não adianta marcar encontros, ele não está lá. Então, esse é talvez o único ponto bom do negócio: “O bandido, ele me enrolou, marca um encontro e na última hora foge!” Em todo caso, é num nível alucinatório em que isso não enviesa! Não é enviesado! Daí a questão, pois tínhamos falado disso da última vez, do operador em jogo, o falo. Chamo a atenção de vocês, é uma maneira de nomear esse operador que faz passar desse registro enviesado e astuto, eventualmente reservado e reticente, para esse registro no qual, entre o outro e eu, não há nenhum afastamento e estamos na cooptação mais sincera, mais franca, mais direta. Podemos pensar que a falta do namorado ao encontro era o último obstáculo sério e bem-vindo a um encontro, digamos, definitivo.
Na última quarta-feira, em Sainte-Anne, evocamos este encontro que deve acontecer nos dias 14 e 15 de janeiro próximo, sobre esse tema: “Questões clínicas usuais e inusitadas” e, paralelamente, há essa reunião, da qual vocês falavam quando eu cheguei, que aconteceu em Poitiers, em torno das atividades a que nos dedicamos e, especialmente, as entrevistas com doentes. O eco que me chegou, pois lamento não ter podido participar, é que, no fundo, a propósito de um tema mais ou menos semelhante, as práticas e os interesses eram bem diferentes. Ou seja, daquilo que eu ouvi, nada dizia que se possa obter os mesmos efeitos, pois – vocês confirmem ou não o que eu digo -, alguns pareciam defender o fato de não transcrever nada. O que me choca um pouco, pois sem essa transcrição, apesar de suas imperfeições, não nos seria possível fazer uma articulação correta do aspecto formal e distintivo entre a voz alta e a voz infraverbal. Então, havia ali, já presente nessa reunião, um problema em relação à porta a ser aberta para ter, de algum modo, documentos que nos permitam justamente nos desprender de nossa tendência espontânea a enfiar sentido onde não há, ao invés de privilegiar as questões formais, morfológicas e significativas.
Então, Thierry Jean me revelava que ele se pergunta o porquê, nos tempos que correm, de tanto interesse pela psicose. Eu relia o seminário sobre as psicoses, em que Lacan se coloca a questão fundamental: “o que é que falar quer dizer?”. É mesmo assim sensacional, pois nós podemos todos discutir nossa vida inteira sem nunca nos perguntarmos o que é que falar quer dizer! A paciente de que eu lhes falava talvez não se colocasse a questão, mas ela estava eliminada! Podemos falar numa língua que tenha toda a espessura da linguagem e numa outra em que não haja nenhuma. Uma língua em que o Outro me faz resistência e uma língua em que ele não me faz resistência, tanto quanto eu não resisto a ele. Uma língua em que estou colado a meu objeto e uma língua em que não estou. Uma língua em que eu giro em torno desse objeto, me queixando pro meu analista: “não, não, o cara, nunca é o bom, ou a menina, nunca é a boa!”, e uma outra em que basta que ele se apresente e é o bom! Vocês vêem, tocamos aí algo que concerne a nossos colegas de Brest no mês de junho, ou seja, que não tem nada a ver tentar explicar ou ensinar a psicanálise, quando se enfatiza o sentido e quando se enfatiza a significação. Lacan dizia que o sentido é a religião. Em todo caso, isso permite deixar de lado essa questão de saber o que é que falar quer dizer, mais ainda, como evocamos há um mês, o que nos mostram as psicoses, fenômenos de decomposição de todos os fios, dissociação de todos os fios normalmente implicados na fala e na transferência. Ou seja, esse lado, mal visto em nosso meio, eminentemente mecânico, é mesmo preciso nomear as coisas assim, disso que vem tecer nossa relação com o Outro. “Mecânico”, é muito desagradável, desaponta: “Como assim? Eu não sou uma mecânica! Eu não sou uma máquina!” Fizemos um progresso, assim mesmo, quando aceitamos estar sob comando! É o que ignoramos habitualmente. É preciso um pouco de divã para se dar conta de até que ponto somos comandados. Enquanto isso, continuamos a dizer: “Não, não, eu faço o que eu quero!” Façam o que vocês quiserem!
É mesmo mais interessante ainda, sempre chamo a atenção para esses fatos, tentamos chamar a atenção para isso, que quando vocês lêem, quando se trata de método, as publicações e os livros de psicanálise lacanianos que saem continuamente, é sempre: “Tudo o que vocês sempre quiseram saber de Lacan e não conseguiam”, “A verdade sobre…” Freud teve sua dose e, agora, é Lacan. Isso não ajuda nada, pois as verdadeiras questões que os documentos lacanianos levantam, enfim, os textos de Lacan, trata-se de até que ponto somos capazes de mobilizá-las para pô-las em ato.
Explicar às pessoas que vocês vão lhes dizer a verdade sobre o ensino de Freud ou de Lacan, talvez não seja inútil, mas enfim, não leva a nada, pois isso faz como a voz infraverbal! Isso permite que se imagine que compreendemos, enquanto se trata de utilizar a voz alta, ou seja, isso resiste. A única maneira de saber que se pode fazer algo com alguma coisa que resiste é servir-se dela, servir-se dessa própria resistência, o que é exatamente equivalente à transferência.
Quarta-feira pela manhã, para lhes dar um outro exemplo clínico, Nicolas Dissez me apresentou um doente muito interessante, pois sua psicose se resumia a algo que é da atualidade, visto que a imprensa está cheia de histórias de eutanásia e, ontem, ainda havia no Sudoeste um caso de eutanásia, e esse paciente dizia: “Me eutanasiem!”. Eu lhe perguntei porque ele queria que o eutanasiássemos e ele respondeu: “Porque é mais difícil do que se suicidar”. O que é interessante, formalmente, é que primeiramente, quando alguém faz um pedido assim, vocês se perguntam se se trata de uma fantasia, de algo delirante, seria uma idéia fixa pós-onírica? Sabe-se lá! O que é interessante, é que isso tinha começado em um sonho. Ele tinha sonhado que um cara lhe dizia: “Eutanasie-se”. Depois, quando acordou, como acontece na psicose, trata-se de um despertar que não é bem um, e o delírio que começou no sonho continua no estado de vigília, mas com uma pequena permutação: não é “eutanasie-se”, é “eutanasiem-me”. Subsiste uma demanda, feita ao Outro, de sua própria liquidação, com algo que, no intervalo, foi completamente varrido, vocês conhecem a síndrome de Cotard, ou seja, o tipo já estava morto. É por isso que ele demandava que o eutanasiassem. Naturalmente, como é sempre o caso nessas situações, isso não o impediu, em tal ou qual ocasião, de tentar se suprimir.
Bem, haveria ainda muitas coisas a dizer, mas como cheguei atrasado, vou talvez ficar por aqui. Lembro-me que da vez anterior vocês tinham sugerido dar uma olhada na questão da lingüisteria e da topologia e eu fiquei interessado, por quê? Porque se trata de uma questão estritamente formal. Era incompreensível, era para mim, como observação, nem mesmo… eu não diria memorizável, mas nem mesmo engramável sem passar pelo escrito. Ou seja, tratava-se de uma mulher que eu tive que interrogar lhe dando papel e lápis e, eu mesmo, com papel e lápis. Em outras palavras, era inacessível, e mais ainda no movimento linguageiro dela, que era o de um recorte retroativo permanente de qualquer fala que ela avançava à medida que a significação desaparecia. Então, a única coisa que era apreensível era, da maneira mais pura, a morfologia das coisas, levando em conta, evidentemente, algumas indicações muito bem-vindas de Jakobson, entre os códigos de mensagem e as mensagens de código, etc. Então, aí está. Aí estão algumas observações que eu lhes faria, que concernem, como vocês sentiram, o falo como fator de viés.
Em sua Segunda morte de Jacques Lacan, Claude Dorgeuille, que fez algumas amplificações e acrescentou um capítulo vinte anos depois, diz que é preciso não esquecer que, em alguns, nós tentamos atualizar o que o hospital psiquiátrico tinha de melhor. É verdade e não é falso, Não é falso, é verdade, no sentido em que se deu crédito ao fato de que um certo número de instrumentos foi recolhido, coisas bizarras, com a questão de saber se tinham sido recolhidos corretamente, e se não conseguíssemos fazer alguma coisa com eles, talvez fosse porque essa coleta não tivesse sido suficiente, ou seja, que eram necessárias certas modalidades e modificar a abordagem para, essa clínica, fazê-la pivotear, ou seja, não era mais a clínica do século XIX. Ou seja, ela não é apropriada, pode-se falar dela, mas atualizada, ela está ao mesmo tempo destacada de sua base de sustentação, mas religando-se a ela. Mas toda a história das ciências é assim. Creio que Newton é que dizia não ter inventado nada e ter-se apoiado nos ombros de gigantes. Ele prestava homenagem aos que o haviam precedido. Ele não dizia “Entre eu e os outros não há mais nada”.
Stéphane Thibierge : Desculpe, você tinha dito que Claude Dorgeuille utilizou a expressão…
Marcel Czermak : … atualizar. Não creio que o termo seja verdadeiramente bem-vindo, terei ocasião de voltar a falar com ele sobre isso, porque tem esse lado… Não é suficiente. Isso implicou em um certo tipo de corte com a base, mesmo se apoiando nela.
Stéphane Thibierge : O que você diz me faz pensar muito simplesmente em algo inteiramente notável, é que os psiquiatras do século XIX, em relação aos quais, no meio analítico, às vezes há uma devoção excessiva… Por que excessiva? Porque é como se houvesse ali uma espécie de alfa e ômega da clínica, que nós teríamos perdido, com essa nostalgia do tempo. Enfim, é preciso lembrar que esses psiquiatras, eles tinham nas mãos todos os casos que quisessem, numa época em que a clínica ainda não estava anestesiada pelos medicamentos e neurolépticos, então, eles tinham a sua disposição um material considerável. A mim, parece-me, pelos numerosos percursos que fiz, em Chaslin, Séglas ou outros, que era, antes de tudo, e eu retomo sua fala, Marcel, tratava-se de gente que registrava corretamente, formalmente, de maneira absolutamente correta, e tudo que diziam ao lado, perdoem-me a maneira crua de dizê-lo, eram bobagens.
Chaslin fez um livro de psiquiatria magnífico, um livro de clínica que, quando se está um pouco advertido, é uma pura maravilha. Quero dizer que desde que vocês estejam um pouquinho advertidos, meus alunos sabem disso, vocês aprendem ali a clínica a céu aberto. Com a condição, como lembra Marcel, com a condição de deslocar um pouquinho as coisas. Pois como é que ele, Chaslin, fez seu manual clínico? Um manual com oitocentas ou novecentas páginas! Ele pegou todas as categorias da psicologia tradicional, ou seja, a sensação, a percepção, o julgamento, a imaginação, a vontade, o raciocínio, etc. Ele pegou todas as categorias que vocês encontravam nos cursos de filosofia e de psicologia, ainda não faz muito tempo, e então ele inventou as modalidades psiquiátricas que juntas também têm pouco a ver, o que tem a ver a voz alta, de que Marcel falava, com a voz baixa? Mas eu diria que esse não era o problema de Chaslin.
Ele tinha necessidade de uma grade para organizar o material que ele reunia, e ele não sabia bem por que é que ele o reunia, eu acho. Mas ele era matemático e tinha, certamente, um interesse pela linguagem, e foi esse interesse pela linguagem que lhe permitiu nos ser útil. Mas, efetivamente, com a condição de atualizar um pouquinho as coisas, pois o que Chaslin pode contar sobre a imaginação, a vontade… Nesse plano, não podemos condenar esses psiquiatras. Eles estavam fazendo a demarcação quase científica do caráter imaginário do sujeito. Eles faziam a mesma coisa que Freud, só que Freud o fazia de uma maneira um pouco esclarecida, era seu gênio, enquanto eles o faziam de uma maneira mais automática, ficando bem atentos em recolher bem a linguagem de seus doentes.
Marcel Czermak : Quanto a mim, sou muito sensível, em Chaslin, a seu gosto pela matemática e, inclusive, a obra que ele escreveu sobre as operações psicológicas da matemática pura. Enfim, seus “elementos” são uma obra tardia, ele já tinha cinqüenta e três anos. Um dia, ele disse a si mesmo que via doentes o tempo todo e já era tempo de escrever alguma coisa: fazer um tratado. Ele já tinha escrito sobre a confusão mental. Então, ele fez esse tratado com um aspecto, aliás, que é preciso não subestimar, é que não temos muito mais aquelas condições: foi Georges Daumézon que me chamou a atenção, tendo-os tido como mestres, eles eram todos burgueses ricos que não tinham nenhuma necessidade de ganhar a vida, tinham bens e seu salário hospitalar era verdadeiramente derrisório. Não tinham que quebrar a cabeça, iam de manhã a seu serviço e recolhiam suas observações e, em seguida, voltavam para casa. Chaslin, com cinqüenta e três anos, ia todo dia pra casa da mamãe, que fazia para ele sua sopa de grão de bico que ele adorava! (Risos). É, em todo caso, uma atmosfera um pouco particular e eu conheci isso na minha geração, quando um de meus colegas, querendo ser psiquiatra e tendo sido reprovado no internato, inscreveu-se para o Certificado de Estudos Especiais, que era a via lateral para se tornar psiquiatra. Então, ele freqüentava o serviço de Delay, e como ele tinha uma família e filhos, era preciso ganhar o pão, ele ia dois dias por semana fazer substituições de médicos generalistas. Então, ele pediu a Delay para poder se ausentar um dia ou dois por semana. A resposta de Delay foi: “Meu caro, quando não se tem os meios a gente não se torna especialista”. (Risos).
Então, há também as condições materiais que mudaram e que se traduzem pelo fato de que, quando se quer uma secretária, lhe respondem que você se vire com seu computador. É mais barato. Sim, mas o computador, ele não sabe tomar notas sozinho! É feito para que a gente anote nele. Como é que podemos dialogar com alguém anotando ao mesmo tempo? É preciso um terceiro! Os melhores registros e as melhores transcrições que encontrei vinham de gente que não procurava compreender, a partir do momento em que a coisa lhes era explicada. Desembaracem-se da bobagem da compreensão! Quando eles pegavam isso, a coisa rolava sozinha. Penso na Sra. Bogatski, que era uma estenodatilógrafa da Assembléia Nacional e que foi contratada pela École Freudienne para anotar as entrevistas de Lacan. Ela era tão aguerrida que podia ler nos lábios. Quando ela não entendia, mesmo assim ela podia anotar seu negócio na sexta-feira e, no domingo, vinha me ver, a gente revia os erros juntos e acertávamos as coisas que ela tinha entendido meio tortas ou um pouco a menos e, então, eis aí, em quarenta e oito horas a coisa estava liquidada, acertada! Ela também, no início, tentava compreender, mas ela já estava treinada, porque, na Assembléia Nacional, se alguém tenta compreender o que o cara conta… (Risos). Não, mas trata-se de um problema de disciplina! Todo o pessoal é treinado para isso. São formados para isso, é por isso que se trata de um verdadeiro ofício. Então, eu lhe dizia que, os doentes, é como na Assembléia Nacional, não se deve procurar compreender e aí logo você faz bem o seu trabalho. Daí, rapidamente ela ficou à vontade e a gente se entendia admiravelmente, pois não se tentava compreender.
Christian Hoffmann : Eu queria voltar, muito rapidamente, à fala desse paciente: “Eutanasiem-me”… Isso me lembra, isolado do nosso contexto, isso me lembra certas falas de pacientes melancólicos que eu conheci.
Marcel Czermak : Sim, claro!
Christian Hoffmann : … que grudam em você nos corredores do hospital e lhe pedem para levá-los e jogá-los, por exemplo, na lixeira. Isso me faz pensar também no que você desenvolveu, efetivamente, sobre a retirada do objeto a do mundo. Então, queria lhe submeter uma coisa que trabalhamos e na qual eu me apoio, de uma certa maneira, trata-se de Kafka. Muito rapidamente, Kafka, essa fala me fez pensar no fim da vida de Kafka, e uma das falas de Kafka para seu médico, logo antes de morrer, quando ele estava cheio de dores assustadoras, na sua doença, sua tuberculose, ele se dirigiu ao médico dizendo: “Doutor, se você não me der a morte você é um assassino”. Então, conhecendo o percurso de Kafka, d’A metamorfose até seus outros escritos, há sempre, em Kafka, essa identificação a um objeto que se retira do mundo, que evoca de todo modo algo de melancólico. Mas nessa fala, tem-se a impressão de que temos a quintessência, assim, de uma relação do sujeito com a linguagem, ali onde há, no entanto, uma piada. Será que podemos aproximá-lo do lado da melancolia?
Marcel Czermak : Penso que há um aspecto assim, quer dizer: “Eu sou uma excrescência sobre a face do mundo”… Basta olhar sua vida cotidiana, a de cada um de nós, e nos perguntamos: o que é que estamos fazendo aqui? É a própria crueza do inconsciente: “liberem a área”…
Christian Hoffmann : A Metamorfose termina assim… Como você diz, sobre a melancolia, é preciso livrar o mundo dessa pequena merda que esse personagem se tornou, para que a jovem possa florescer.
Marcel Czermak : Há uma coisa que eu não evoquei, que é comum tanto na observação dessa jovem paciente de Brest quanto na do paciente que eu vi aqui quarta-feira de manhã: ambos tinham erradicado completamente sua própria filiação. A moça em questão tinha tomado um outro nome, tinha recusado, posto em dúvida, a paternidade de seus pais, para desviar sua filiação para o lado de uma filiação imaginária, o que era também o caso do paciente que eu vi quarta-feira. Ou seja, havia uma relação visivelmente íntima, pois eram as duas coisas que vinham no primeiro plano, entre, de um lado, tanto para um quanto para o outro, a ruptura e, podemos mesmo dizer, a volatilização de toda instalação genealógica, portanto recusa radical do nome, e o fato de escolher um nome para si. De outro lado, nela, sob a forma do encontro com o objeto, com sua voz baixa, ou seja, a esperança de que um dia o cara, o namorado, viria ao encontro, o que era o lado mais inquietante e, no paciente de quarta pela manhã, a exigência de ser eliminado do terreno. Esse seria um outro ponto, essas duas observações muito interessantes, para explorá-las corretamente seria preciso algumas semanas.
Christian Hoffmann : Eu me lembro de ter ouvido, assim, durante alguns anos, um jovem esquizofrênico, que dizia ter encontrado, como você disse, o objeto certo de sua relação sexual, se se pode dizer. Mas o “objeto certo”, é verdade que isso tem um caráter inquietante, pois a gente se diz que essa parceira, que ele acabou de encontrar, não tem interesse em se mexer, que ela é como uma borboleta pregada em seu delírio. É inquietante.
Marcel Czermak : Vocês notem que se trata de uma questão de atualidade, que vemos cada vez mais gente dizendo que não encontraram o bom cara ou a boa menina: “não é o bom” ou “não é a boa”. Ou seja, está formulado em termos contemporâneos, daquilo que seria a possibilidade de que o objeto seja enfim o bom. Não está formulado nos termos de uma insatisfação de que, com os rapazes, a coisa não ande: “não, não, não!” É: “Nunca encontrei, nisso aí, o bom”.
Stéphane Thibierge : Marcel, acho que aí há um prolongamento a fazer, para retornar à voz alta e à voz baixa, pois é verdadeiramente formidável o que diz essa paciente que você evocou. Hoje em dia, em nossa conjuntura, parece-me que, quanto mais a atenção que se dá à qualidade da linguagem falada, quanto mais essa atenção diminui, mais a linguagem é desvalorizada e mais aparece, eu diria, esse desencarceramento do objeto da fantasia. As pessoas, quanto menos elas são capazes de metaforizar alguma coisa a partir de uma posição dividida, mais aparece para elas que o objeto deveria se apresentar por si mesmo, sozinho. Ou seja, uma espécie de primado social da voz baixa, disso que ela chama de voz baixa. Isso é totalmente espantoso, é chocante na clínica de hoje em dia.
Marcel Czermak : Sim. Eu me permiti, na semana passada, ao redigir esse curto prefácio para esse tomo brasileiro, saudar a qualidade da tradução que os colegas fizeram, que é verdadeiramente uma tradução excelente. Eu mencionei, e o fiz com moderação, pois os brasileiros são sempre muito sensíveis quando acham que alguém toca no pavilhão nacional, não pude me impedir de me queixar um pouco da má qualidade das traduções que circulam na América do Sul. De um lado, querem difundir a psicanálise e querem difundí-la com traduções absurdas, nas quais não se consegue nem mesmo descobrir qual é o discurso que as suporta. Portanto, uma desenvoltura em relação a questões da língua que é de qualquer modo… Eu não sabia, eu descobri quando os argentinos traduziram meu trabalho, As paixões do objeto, para o espanhol. Primeiro eles nunca me pediram nada, traduziram e me enviaram, recebi um volume, não mais, e aí eu li o livro em espanhol e não achei de jeito nenhum o que eu tinha posto ali. Em especial, havia notas incríveis. Se vocês relatarem isso na América do Sul, eles vão dizer que eu não gosto deles. Estarão errados, é por isso que eu gosto deles! Eu tinha utilizado a expressão “moins tu mouftes et plus…”. Então, havia uma nota no pé da página, com várias linhas: “Nós procuramos em todos os dicionários existentes (risos), essa palavra não existe, nem no Littré, nem noRobert, etc. Tendo em vista o contexto, poderíamos supor que…”, e traduziram por uma coisa totalmente aproximativa. Poderiam ter me ligado, em vez de pegar todos os dicionários e ir às bibliotecas para ver os dicionários, inclusive dicionários clássicos e acadêmicos… Se tivessem me ligado para me perguntar o que quer dizer moufter, eu lhes teria dito que se trata de um termo de gíria: “quanto menos você abre o jogo, quanto menos você fala…”. Ou existe uma palavra equivalente no lunfardo argentino, ou então não existe e você mantém no original e dá uma pequena explicação. Então, aí está, o problema era que não dava para compreender mais nada, foi de todo modo uma grande desenvoltura em relação ao autor. O autor é secundário no caso, mas a própria língua! Porque não custa nada diante de um termo bizarro, afinal poderia se tratar de um neologismo, não custa nada pegar o telefone e é mais barato do que passar uma semana nas bibliotecas!
Portanto, eu saúdo a qualidade da tradução desses três volumes intitulados A Clínica da Psicose: Lacan e a Psiquiatria, volumes 1, 2 e 3, publicados em 2004 e 2006, pelas edições Tempo Freudiano Associação Psicanalítica, Rio de Janeiro. Essa tradução é muito notável e espero que sirva de exemplo, pois é vão esperar difundir o que quer que seja da análise se não for com a língua correta e o discurso que vai junto.
Stéphane Thibierge : Essa é, com efeito, uma questão de primeira ordem.
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Texto original: http://www.freud-lacan.com/fr/44-categories-fr/site/1145-Attraper_un_fait_clinique
Tradução: Sergio Rezende.
[1] Transcrição de Annie Deschênes
[2] N.T. Utilização pessoal de uma língua por um falante. No original, langue de bois.