Dionysia Rache de Andrade
Alguns traços da cultura brasileira: um olhar psicanalítico.
Como o trabalho no Tempo Freudiano privilegia o efeito do laço indissociável entre intensão e extensão, achamos oportuno trazer algumas considerações sobre aspectos da nossa cultura, que poderiam ser encaradas como traços nossos. Nesse sentido, tomamos o “homem cordial” de Sérgio Buarque de Holanda, filho do patriarcalismo, e Macunaíma, o herói sem caráter e sem pai de Mário de Andrade, e ensaiamos uma aproximação entre eles, com o intuito de uma aproximação entre eles e nós. Figuras tão antagônicas, um filho de família, o outro, filho da mãe, o que poderão ter em comum ? E o que dizem de nós, especificamente no que diz respeito à relação que estabelecemos entre o público e o privado, às práticas de convivência tão “familiares” e o desapreço às leis? Encontramos como resposta — na mesma tecla o pai.
O “homem cordial” expressão tomada por Sérgio Buarque de Ribeiro Couto, exigiu do autor de Raízes do Brasil um percurso para dar conta do seu surgimento. Assim, começa ele falando das diferenças entre família e Estado que não se situam na modernidade em linha de continuidade, como pensavam os românticos; elas implicam uma ruptura entre ambos. Diz ele que a transgressão faz parte dessa passagem, “é pela transgressão da ordem doméstica e familiar que nasce o Estado e que o simples indivíduo se faz cidadão, contribuinte, eleitor, elegível, recrutável e responsável, ante as leis da Cidade” (1993: 101). Não se trata, pois, da evolução dentro de uma mesma ordem — o que se registra é uma oposição entre duas ordens, entre a lei geral e a lei particular, entre o público e o privado. Os movimentos na história que relatam a passagem de um registro para outro reconhecem aí sempre momentos de crise que têm os seus efeitos sobre a sociedade. O sistema industrial, na modernidade, se encarregou de traçar limites cada vez mais rígidos entre empregados e empregadores, o que o diferencia do sistema das antigas corporações de artesãos. Na escala da grande produção, interfere entre eles uma larga série de intermediações, alongando a distância entre uns e outros. O antigo sistema de trabalho era condizente com uma participação entre mestres e aprendizes, que usavam um mesmo local e instrumentos comuns para realizar sua tarefa. Aqui lembramos que entre o final da Idade Média, que trazia essa indistinção, e a modernidade, que, através de revoluções liberais, consegue essa separação, há um período em que “as esferas do público e do privado já não estão indistintas, mas ainda não estão separadas. Trata-se de um período de transição, a passagem de uma ‘sociedade sagrada’, a da Idade Média, para a laicização do Estado no mundo contemporâneo” (Novais, 1998: 15). Frei Vicente Salvador (in Novais, p. 14) diz bem da situação brasileira que desaguou no funcionamento patriarcal:
Notava as coisas e via que mandava comprar um frangão, quatro ovos e um peixe para comer, e nada lhe traziam, porque não se achava na praça, nem no açougue, e, se mandava pedir as ditas coisas e outras mais às casas particulares, lhas mandavam. Então disse o bispo: verdadeiramente que nesta terra andam as coisas trocadas, porque toda ela não é república, sendo-a cada casa.
E, como já vimos antes, não seria demais pensar, “a cada casa a sua sentença”… o que deixa subentendido um outro enunciado: a cada casa sua lei. O que acontece aqui, como bem nota Frei Vicente, é alguma coisa trocada, substituindo-se nas instituições incipientes e relações sociais os princípios abstratos por laços de afeto e de sangue. Fernando Novais (1998: 17) vai mais longe e diz que, se na Europa as práticas de intimidade vão se produzindo em relação à formação dos Estados, na Colônia, nesse mesmo período, elas se associam mais ainda à passagem da colônia para a nação, “ou melhor, à própria gestação da nação no interior da colônia”.
E, continuando o enfoque de Sérgio Buarque sobre as relações público/privado, aí são abordadas as posições da moderna pedagogia e psicologia que estabelecem métodos que facilitam essa separação, impondo inclusive novas virtudes. No Brasil, em que a larga escala era a da família patriarcal, a urbanização também produziu efeitos consideráveis de desequilíbrio social. E, para os que detinham funções públicas, formados dentro desse sistema, que facilitava a coincidência entre os valores domésticos, sociais e da ordem entre cidadãos, ficava extremamente difícil distinguir entre o privado e o público, entre o funcionário patrimonial, aquele cuja gestão política leva em conta basicamente o seu interesse pessoal, e o funcionário burocrático, que no funcionamento do Estado burocrático se encarrega das garantias jurídicas dos cidadãos. E assim, na nossa história, foram se sucedendo as situações em que a vida pública comparece absolutamente contaminada pela vida privada, em que os laços de sangue e do coração “fornecem o modelo obrigatório de qualquer composição social entre nós” (Buarque de Holanda, 1993: 106). Essas são, em síntese, as ponderações de Sérgio Buarque antes de apresentar o seu “homem cordial”, resultado dessa familiaridade extensiva ao público.
Ao adotar a expressão “homem cordial”, nosso autor teve que explicá-la bem, visto os mal-entendidos que a cercaram. A partir de uma interpretação de Cassiano Ricardo, Sérgio Buarque se viu constrangido a estender-se mais sobre o termo cordial, (1) já meio a contragosto. Reafirma-o no sentido etimológico e não só nele, mas “em seu verdadeiro sentido”, diz ele, que se relaciona a coração, distinguindo-o da polidez, da bondade e da civilidade. O homem cordial é reconhecido pela “lhaneza no trato, a hospitalidade, a generosidade, virtudes tão gabadas por estrangeiros que nos visitam [e, que] representam, com efeito, um traço definido no caráter brasileiro (…)” (p. 106). Faz esse traço decorrer da nossa transbordante riqueza emotiva, distinguindo-o da formal civilidade de outros povos. Além disso, a vida em sociedade é, para ele, “uma verdadeira libertação do pavor que sente em viver consigo mesmo, em apoiar-se sobre si próprio em todas as circunstâncias da existência” (p. 108). Explica essa situação por uma tendência a um viver nos outros, e, espantosamente para nós, conclui o parágrafo com uma citação de Nietzsche: “vosso mau amor de vós mesmos vos faz do isolamento um cativeiro”. Cá para nós, não se trata, até agora, de um belo retrato: o “homem cordial” finca os pés na família, não tem coragem de sair de casa, pois não consegue se sustentar a não ser vivendo nos outros. E o caráter de intimidade que produz na relação social nada mais é do que o efeito de um desamor a si próprio…
A partir do desenho desse quadro, não fica difícil compreender a idiossincrasia do nosso homem (cordial) em relação aos ritos, que de uma certa forma comemoram a distância. Mas, desse ponto, Sérgio Buarque extrai um novo fio que o leva à “dificuldade em que se sentem, geralmente, os brasileiros, de uma reverência prolongada ante um superior”. (Veremos adiante como isso se arranja nos procedimentos religiosos.) E diz ele: “Nosso temperamento admite fórmulas de reverência, e até de bom grado, mas quase somente enquanto não suprimam de todo a possibilidade de convívio mais familiar” (Sérgio Buarque, 1993: 108). Nosso autor inclui ainda nessa operação próximo-familiar a utilização na linguagem dos diminutivos, “a terminação inho aposta às palavras serve para nos familiarizar mais com as pessoas ou os objetos (…) É a maneira de fazê-los mais acessíveis aos sentidos e também de aproximá-los do coração” (Buarque de Holanda, 1993: 108). Nós aí acrescentamos o tratamento pouco formal sustentado no “você”, que exprime uma intimidade, certo, mas também destitui a diferença, é uma fala de igual para igual. Além disso, nessa mesma série ele considera a omissão do nome de família no tratamento social, prática que, herdada dos portugueses, se exacerbou entre nós. (2) Seria plausível, diz ele, “relacionar tal fato à sugestão de que o uso do simples prenome importa em abolir psicologicamente as barreiras determinadas pelo fato de existirem famílias diferentes e independentes umas das outras” (Buarque de Holanda, 1993: 109). Considerando, pois, que a filiação (que se imprime socialmente pela marca do nome de família) faz diferença, “o homem cordial” a dispensa.
Então, se o tecido social se desenvolve comprometido com o afeto e com os laços de sangue, desse parâmetro não vão escapar as relações religiosas. Os santos são requisitados a participar do dia-a-dia, e invocados como casamenteiros, achadores de objetos perdidos e até protetores dos doces contra as formigas… São, pasmem, objetos de chantagem; a inúmeras imagens, sobretudo do nosso interior mineiro e nordestino, faltam as mãos, mesmo a cabeça, reminiscência de uma graça não alcançada. A religiosidade se instala na superfície, na mesma tecla da aproximação familiar, destituindo os rituais, as cerimônias litúrgicas do seu estatuto simbólico, que se fazem interessantes pelo aspecto mundano dos encontros, das cores, da festa. O culto só importa na medida em que faz apelo ao sentimento e à emoção. Saint-Hilaire, citado por Sérgio Buarque, se queixa, a partir de uma visita a São Paulo: “ninguém se compenetra do espírito das solenidades. Os homens mais distintos delas participam apenas por hábito, e o povo comparece como se fosse a um folguedo” (p. 111). Aqui não podemos deixar de invocar os tempos coloniais, em que a introdução à religião se faz justamente no apelo ao sensível, num certo teatro musical.
De forma ampla, o “homem cordial” opera através de uma ética do emotivo que lhe serve para encurtar as distâncias. Mas, para além disso, expandindo-se numa “mentalidade cordial”, esse traço não faz passagem do indivíduo para uma organização coletiva. E o individualismo comparece como resistência a uma construção social em que o interesse geral possa sobrepor-se ao particular, manifestando-se essa resistência “como relutância em face da lei que o contrarie” (Cândido, in Raízes do Brasil, xlvi). Assim consideramos apresentado o “homem cordial”, aquele que se define como funcionamento do coração e, que, instalado no regaço familiar, vive a incapacidade, na melhor das hipóteses a dificuldade, de se fazer valer sob o registro de uma lei geral.
A partir da definição acima, como aproximar o “homem cordial” do turbulento Macunaíma, que escorrega pelo mapa do Brasil a sua afoiteza e a sua ânsia de gozo ? Parece-nos que falar de um não é falar do outro, e poderíamos, quem sabe, continuando as já referidas oposições das raízes do Brasil, acrescentar mais essa, Macunaíma e o “homem cordial”, uma vez que possam se apresentar numa dialética. Pois é bem isso que fazem. Os dois, aparentemente não têm nenhuma correspondência, nem se fazem análogos. Atrás das oposições, vamos procurar um fio… Antes disso, entretanto, é importante destacar que entre as inúmeras contradições que permearam a nossa colonização está aquela que fundamenta, talvez, as duas figuras. Trata-se da dupla necessidade colonizadora de impor grande mobilidade às populações, seja para buscar novas riquezas, para garantir os territórios, ou para alargar seus limites, e “a compulsão ao trabalho, exigida pela mesma exploração da colônia”, que, se assentando na monocultura, exigia na época uma mão-de-obra numerosa e uma estabilidade, isto é, uma fixação na terra. Esse contraste (3) fará as raízes de Macunaíma e do “homem cordial”.
No texto de Sérgio Buarque, destacamos alguns pontos da alma do homem cordial: o horror às distâncias metamorfoseado em horror à diferença, que é introduzido pelo autor através do desprestígio dos sobrenomes no trato corrente; o esvaziamento simbólico dos ritos, só valorizados no que se revestem, diríamos, de cor, sabor, amor. O que pretende um rito? O rito é uma comemoração, é uma repetição para fazer lembrar ou para fazer esquecer. O rito é basicamente um intermediário, um exercício de memória, que só se justifica pelo seu fundamental aspecto simbólico. Esvaziar o rito do seu simbólico é destruí-lo; a dificuldade diante da lei, que contraria os interesses particulares, e mesmo individuais; e finalmente, para assombro nosso, a conclusão nietzschiana do mau amor por si mesmo…
Esses aspectos, enumerados acima, pelo menos na sua totalidade, não identificam o nosso herói sem caráter. Em que, então, o despudorado Macunaíma se aproxima do acolhedor “homem cordial” ? Vejamos. O texto de Mário de Andrade conduziu-nos a um descontentamento na escolha de um pai português, uma nostalgia de um pai diferente, que no enredo da história se resume na expressão de Macunaíma, depois de ter escolhido a portuguesa “si eu subesse” (aí subentendido, não teria feito essa escolha)… Mais do que isso, se continuarmos a leitura nesse sentido, nos damos conta de que Macunaíma é filho da mãe, da índia tapamunhas. Não tem pai. Por seu lado, o “homem cordial” é filho do patriarcalismo. Um tem pai de menos; outro, pai demais. Macunaíma vai para o mundo, é descolado, audacioso; o “homem cordial” mantém-se no regaço materno (justo o que tem pai de mais…). O que pontilha a sua aproximação será a resposta à seguinte pergunta: por que um sai para o mundo, por que o outro não sai ? O ponto comum pode ser encontrado na referência à lei: um a evita; o outro, a dribla. Vimos a dificuldade do “homem cordial” de se fazer cidadão, de se dispor a contatos não regidos pela lei familiar. E, se sai de casa, procura fazer a lei à moda da casa. É o particular que determina o geral, sustentando a lei da “vantagem” e do ganho. Macunaíma se aventura pelo mundo, mas também não se subordina à lei. No seu jeito astucioso (já aí prenunciado o jeitinho brasileiro), escorrega aqui e ali, rompendo e corrompendo normas, desafiando regras e… escapando… O maior gozo é a meta dos dois, seja acumulando ganhos, seja somando mulheres. Ambos, a seu modo, “fazem” a lei, o que significa não se submeter a ela.
Em capítulo anterior nos detivemos na ligação entre o pai e a lei, de como a lei decorre do Nome-do-Pai. Uma questão que poderia nos ser colocada é a de como podemos falar de falta de lei no caso, visto no patriarcalismo, de pai demais. Pensamos que o patriarca é um pai excessivo, no sentido de condensar uma autoridade, da qual ele deveria, se fosse só pai, ser o passador. É como se ele negasse uma dívida com os antecedentes, se fizesse começo e, como tal, se visse constrangido pela obrigatoriedade de fazer a lei. Então, ele a encarna despojando-a do seu aspecto simbólico. Esse aspecto se funda, no nosso entendimento, naquilo em que justamente se reconhece a sucessão, não a origem. O resultado da superposição pai e lei restringe a amplitude dos seus efeitos sociais, transformando-a em instrumento de favorecimento de poucos, a despeito de outros muitos. Parece-nos mesmo que há uma degradação, uma degenerescência da lei, produzida pela inversão do domínio que sobre ela exerce o patriarca, contrário àquela que se produz como efeito do Pai. A partir dessas reflexões não nos parece abusivo irmanar Macunaíma e o “homem cordial”: eles têm um sobrenome comum que insistem em não usar …
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1. Em carta a Cassiano Ricardo anexada ao livro Raízes do Brasil, Sérgio Buarque diz que a cordialidade não lhe parece uma virtude que vá acompanhar necessariamente o brasileiro na sua história. Ela foi aplicada a um dado momento, nada garantindo que vá subsistir (pp. 143-145).
2. Embora já indicado em nota anterior, faz-se necessário um estudo sobre os nomes atribuídos aos índios e aos africanos. Qual seria seu nome família?
3. O Nordeste açucareiro é exemplar para dizer de um povoamento que tendeu para a permanência e produziu um tipo de convívio mais sedimentado, o patriarcalismo. A região de São Paulo, como que na periferia do sistema (o núcleo era a monocultura extensiva), sediou um provoamento mais ralo, em constante mobilidade. As bandeiras que daí partiam já foram chamadas de “sociedade em movimento” (Novais, 1998: 24 e 25).