Ana Cristina Manfroni
“Não espero nada das pessoas, apenas alguma coisa do funcionamento” (1)
“Não preciso de uma lista numerosa, mas de trabalhadores decididos” (2)
J. Lacan
Este é um convite a uma reflexão sobre o funcionamento de nossa instituição. Vou trabalhar para que não seja uma especulação mas sim uma tentativa de saber em que medida podemos, como seus membros, operar para nos destacar das forças puramente imaginárias que nos constrangem.
De que se trata quando colocamos em questão um funcionamento? De que trata Lacan quando diz que não espera nada das pessoas, mas algo do funcionamento?
Algumas vezes vimos Antonio falar de um tipo de funcionamento que nos faz ‘funcionários’, aqueles que funcionam. Penso na imagem do funcionário, como aquele que marca apenas o lugar do público, o lugar do Outro e não ocupa aí sua função: deixa o paletó nas costas da cadeira de trabalho e vai passear. Lembro ainda da fábula do Talmud a que Lacan faz referência (3) falando do imaginário: são dois homens saindo de uma chaminé, aquele que sai primeiro vem todo sujo do carvão da chaminé e o que sai depois, por já encontrar o caminho limpo, aparece sem nenhum carvão; Lacan pergunta: qual dos dois vai se limpar? Na historieta, o que está limpo olha para o que está sujo e vai correndo se lavar, o que está sujo olha para o que está limpo e vai contente passear. Certamente não é desse funcionamento imaginário – da enganação ou do transitivismo – que se trata, não disso que tem a ver com o que é pessoal, que é de onde não devemos esperar que algo venha. O ‘funcionário’ é aí algo da ordem do autômato, nada toca, como veremos, do funcionamento simbólico, pois ficamos com a garantia de nunca estarmos no lugar que devemos ocupar para podermos ser deslocados pela atopia própria do sujeito do desejo.
Mas a questão que se coloca não é apenas a de um mau funcionamento, há funcionários que se determinam a serem perfeitos que fazem funcionamentos idealmente perfeitos e temos registros históricos de quão longe isso foi levado no holocausto.
Na lição sobre “Os circuitos do desejo”, uma das últimas do Seminário sobre As formações do inconsciente, Lacan nos coloca a questão de uma sociedade que funcionasse de forma ideal, a suposição de um mundo humano, inteiramente organizado em torno da coalescência de cada uma das necessidades que devem ser satisfeitas, com um certo número de signos predeterminados que valem para todos. Nessa sociedade ideal, uma sociedade com um funcionamento perfeito onde, com a finalidade de satisfação de cada necessidade, o Outro, como lugar da palavra, é reduzido a uma dimensão de correspondência entre elementos, lugar de organização do sistema de significantes, que introduz ordem e regularidade nas trocas vitais no interior da espécie. Mesmo que supuséssemos homens de boa-vontade que se dedicassem a organizar e a fazer funcionar essa sociedade, mesmo aí a dimensão do Outro estaria excluída. Nesse lugar de um sistema perfeitamente organizado e fixado, ao surgir a questão de que todos participem de acordo com seus méritos, diz Lacan, é aí que começa o problema. O problema é aquele que a castração coloca: o Outro é ele mesmo simbolizado, ou seja, “ele mesmo enquanto lugar da articulação da lei está submetido à articulação significante, marcado disso, nessa submissão, desse efeito desnaturante que a presença significante comporta”.
Devemos partir então, para começar a pensar, de duas questões: a primeira, quando dizemos que algo não cumpre sua função, de que se trata aí, na função? E a segunda, ao que é se liga um funcionamento: o que é que funciona e o que é que não funciona?
Sobre a função
Qual a função que regula um funcionamento onde o sujeito está em questão? Isso foi tema de nosso trabalho sobre o Seminário As formações do inconsciente: fazemos entrar aqui a dimensão fálica – é o falo, enquanto significante responsável pelo campo da significação, que determina as funções. As funções são fálicas. Isso quer dizer que elas são ordenadas por leis que nos escapam, por determinação estrutural. Mas quanto e de que forma nos escapam?
O falo, como significante do desejo, marca a função enquanto fálica, a entrada do terceiro em sua dimensão de falta simbólica, em sua dimensão significante. O funcionamento é, portanto, o funcionamento da linguagem, da ordem simbólica e do discurso, um funcionamento onde o que está em jogo é o significante. É o funcionamento da cadeia significante que implica corte, angústia, sulco no real. A relação ao falo não é a de um funcionamento fisiológico onde a conjugação, a cópula, colaba função e funcionamento, onde o falo perde seu estatuto de significante e passa a objeto.
A criança e a mãe
Quando trabalhamos com a clínica da criança, quando nos perguntamos sobre o sujeito, ali onde as coisa estão se constituindo, vemos, com mais clareza, as leis que fundam estas funções e determinam sua existência e a relação do funcionamento destas funções às leis, a um encaixe mais ou menos adequado, mais ou menos regulado por elas.
Se por um lado há um funcionamento que pode muito bem ser ordenado à função e à lei que ela representa para que um corpo em sua totalidade funcione, por outro, inversamente, o funcionamento pode contrariá-la – a função , sem distância alguma, colada ao funcionamento ou ainda, um funcionamento que excede completamente a função, como veremos mais adiante. O que faz essa articulação? O que, na estrutura, determina esses movimentos?
Entre a mãe e o filho, é a função fálica que permite estabelecer um lugar simbólico. Como vimos o falo, significante do desejo, surge como o objeto que falta, ou melhor, como uma articulação significante da falta de objeto como tal.
Lacan nos falou de uma propriedade material da linguagem, efeito mesmo da cadeia significante, que é um funcionamento autônomo da linguagem (4) , responsável, na relação da mãe com a criança, pelo isolamento do objeto a. Mas, isso não basta, para que os termos aí implicados funcionem. Diz Melman(5) que, para que tudo isso funcione, para que esse objeto se isole, é fundamental uma mãe encarnada capaz de se regozijar com esse objeto, de considerá-lo como um presente e de fazer dele um tesouro. É a mãe caprichosa, segundo Lacan, aquela de quem se pode dizer que deseja – desejo da mãe, aquele que será barrado para a constituição fálica. É necessário, ainda, que esse objeto se constitua como definitivamente perdido, para que nada aí venha a constituir uma propriedade privada. Se constitui, num primeiro tempo, um momento que é de jogo, da alegria de uma posse onde essa perda ainda não é levada a sério. É preciso, pois, uma operação que faça disso uma perda definitiva. É com a entrada do objeto faltoso, da intervenção do pai como terceiro, como significante, que o objeto fálico irá adquiri essa condição de significante que aponta para a falta significante.
A função fálica é o que permite estabelecer entre a mãe e a criança uma ligação simbólica, é ela que permite a circulação desses objetos (a) entre a mãe e o filho, mas o faz de forma a que os objetos de um não sejam exclusivamente os objetos do outro e que também não se constituam objetos privados. Posto que é função, abre o espaço, dissocia o imaginário (do corpo da mãe) do real (do corpo da criança), e faz, ao mesmo tempo, a borda entre ambos, por onde circulam os objetos. Posto que é fálica, essa inscrição aí dos objetos os torna separáveis e separados, mas sobretudo operadores mesmos da separação e também suturantes, pois não se trata de uma passividade que aí recai, sobre os objetos. Tudo é constitutivo, estruturante! São os objetos que virão aí regular a função que inaugurou o espaço de circulação e o funcionamento – dos objetos e dos corpos em borda. Dizemos os corpos pois que se há a função fálica, aquilo mesmo que os une fazendo imaginariamente como se fossem apenas um, também os corta fazendo-os borda.
A circulaçãodos objetos a articula a função e o funcionamento, permite que nada mais seja unilateral ou se confunda. Sabemos que se o terceiro termo, simbólico, fracassa de algum modo ou falta, a função fálica não ordenará mais os objetos e teremos os destinos mais impedidores para o sujeito que vão desde uma suturação do real e do imaginário onde vemos que o corpo da criança se torna um mero prolongamento do corpo materno até uma separação radical entre os dois registros, onde ligação alguma é possível, onde não há lugar para a criança no imaginário da mãe.
Inscrição e circulação significantes
Estamos no campo do sujeito, então, a função e o funcionamento, já estão tomados no campo da linguagem. O corpo em questão é um corpo de linguagem, um corpo significante. Não é gratuito que Antonio, desde a fundação do Tempo Freudiano, nos fale do imperativo de que o significante circule. Sempre repetimos isso, não sei se realizamos as suas conseqüências.
O espaço e o tempo por onde objeto e significante circulam também foram tema de nosso trabalho, na articulação do jogo metafórico e metonímico da linguagem, na sincronia e na diacronia. O intervalo, o furo, aquele que mantém a distância entre a função e o funcionamento, entre as leis simbólicas e a ordenação da cadeia significante operando no real, esse intervalo sabemos que é de uma inscrição significante que aí se trata. O furo, por onde há a circulação, é uma inscrição que, por sua vez, na temporalidade da estrutura, cria a articulação entre a função e o funcionamento e os cria como separados. É importante perceber como é impossível que, no campo simbólico, a inscrição se dê do lado da função. É na medida em que a função funciona, que o funcionamento terá, com ela, relação. A questão da antecipação, tão formadora no estádio do espelho, nos esclarece que a antecipação, o futuro anterior, também não é do funcionamento mas sim do significante, é tempo de verbo que se inscreve e que os inscreve, a ambos – função e funcionamento.
A clínica
Bergés e Balbo, (6) tratam, na clínica do autista, da forma como essa questão aí se traduz: do ponto de vista do funcionamento de uma criança. Dizem eles, o autista é perfeito, tudo nele funciona muito bem – come, bebe, dorme, faz suas necessidades – mas a função fálica foi corrompida pelo funcionamento; função e funcionamento se colam.
Na clínica do adolescente os autores abordam o surgimento de novos objetos além daqueles que um funcionamento normal oferece aos sujeitos – como, por exemplo, o uso regular de drogas – objetos que são externos à função. Trata-se de um funcionamento que contraria a função, que terá uma tal atividade que não só a excede, mas que pode vir a substituí-la ou acarretar sua perda.
Vimos no Seminário Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise Lacan nos falando do que acontece com esse intervalo (aí mesmo podemos ler intervalo como desejo do Outro) – que estabelece a distância e que os liga -, na psicossomática: ele desaparece. S1 e S2 se solidificam, há a holofrase: é um problema na função que está em jogo e não no funcionamento do corpo.
Na anorexia, por exemplo, o que se coloca para o sujeito tem uma nova ordem na negatividade, pois que não é que o sujeito não coma nada, mas que ele come nada. Nada, nos diz Lacan (7), “é precisamente algo que existe no plano simbólico”. Comer nada é alguma coisa de muito diferente da “negação da atividade”. Essa inversão do automatismo do movimento de engolir se transforma num movimento voluntário de vomitar. Lacan nos diz que se nos precipitássemos a compreender o de que aí se trata tenderíamos a afirmar que se introduz, no plano da ação, a dimensão do negativismo como única possibilidade do sujeito de barrar a onipotência materna. Mas não se trata disso. A resistência à onipotência se elabora no objeto anulado enquanto simbólico; alimentando-se de nada inverte a dependência: é a mãe que agora depende de seu desejo, de seu capricho. A criança rejeita o alimento, barra a necessidade, “joga com sua recusa como um desejo” (8), e se torna mestre do funcionamento.
Ao contrário, quando há a distância – o furo na ordem significante que dá suporte à função -, há a temperança, da qual nos fala Lacan, ao final desse mesmo Seminário de 1964. A inscrição significante permite que exista aí, entre função e funcionamento (entre o que o nível fálico estabelece na relação de um sexo ao outro e aquilo que pode aí tomar lugar), temperança, graças à qual a pulsão e seus objetos circulam por um funcionamento a serviço da função. Essa temperança é resultado da intervenção da metáfora paterna, da lei que retroativamente inaugura a fecundidade, a dimensão fálica.
A questão institucional.
O funcionamento é, pois, simbólico. Diz Lacan (9) que aquilo que funciona é o mundo ou o sintoma e aquilo que não funciona é o real. Talvez esse “algo do funcionamento” de que ele nos fala tenha a dimensão da própria práxis psicanalítica: uma forma de, através do simbólico, tratar, abordar o real.
Sabemos que, em nossas particularidades, estamos à mercê de um funcionamento mais ou menos sintomático. São as vicissitude de cada um. O funcionamento de um corpo institucional, sua sintaxe, não pode, certamente, depender disso. As leis que determinam a função em torno da qual se dará nosso funcionamento são exatamente essas em que a distância significante, aquilo que permite o arejamento, a circulação do significante, impede que tenhamos, à mão, a posse do que supomos os nossos objetos, nossos pequenos falos. A separação se coloca no ponto de reconhecimento e submissão ao que não nos pertence. O lugar que ocupamos e a função que exercemos nos antecedem e nos ultrapassam. Só encontramos aí possibilidade de nos confundirmos com eles, se aí fazemos “um”, caso em que não respeitamos mais o tempo (Tempo), as coisa sobre as quais simplesmente não podemos arbitrar.
Toda vez que operamos no sentido de interromper o funcionamento institucional, em seu campo próprio, de um simbólico abordando o real, o fazemos na arrogância de nos arvorarmos donos daquilo que só pode existir em circulação. Nos apossamos, fazemos do significante um objeto privado e interrompemos o movimento. Não respeitamos mais a circulação dos significantes que nos representam – se impedimos sua circulação é porque nos apossamos das representações e fazemos obstáculo ao trabalho. O trabalho sustenta algo fora, desalojado, não nos sustenta e muito menos serve de escora às nossas dificuldades.
Toda vez que impedimos que algo se escreva, se inscreva, se publique, tomamos para nós, a nosso encargo, o exercício mesmo da dimensão fálica: ou seja a destituímos e impedimos a inscrição significante, impedimos a temperança e, com isso, nos esquivamos daquilo a que mais somos convocados, na medida em que nos instituímos: a manter aberta minimamente a possibilidade de surgimento do sujeito em seu caráter de se dar a representar por um significante para outro, a manter o sujeito em seu caráter de circulação, de endereçamento a um lugar Outro, fora de nós mesmos, fora de nossas posses, e analiticamente a possibilidade determinante do sujeito escrito como corte. O endereçamento é algo que faz seu retorno. O interdito é entre ditos, e o dizer e o fazer, não são ‘por dizer’, ‘por fazer’ – fala-ação – mas sim – ‘está dito’, ‘está feito’. Não somos uma sociedade anônima e tampouco contratualizada. Exercemo-nos no pacto que reafirma o simbólico, onde se confirma o que se estabeleceu na palavra dada, o que nos foi transmitido a transmitir, o que recebemos a transferir. E se produzem efeitos no real.
Se apelamos à espacialidade para falar de furo, de intervalo, de distância, de circulação, de inscrição, sabemos que, na verdade, é diante de uma dimensão temporal que tudo isso tem ou não lugar. O trajeto de uma viagem, um percurso tem seu tempo. Poderíamos dizer, com Lacan, que entre o instante e o momento, há o tempo. Nada daquilo que trilhamos adquire sua função no campo do desejo se não damos o passo final, aquele que efetivamente nos lança a poder dizer, sempre a posteriori, fizemos isso. Ou seja, o momento de concluir é aquele que faz surgir a verdade da cadeia significante onde o sujeito pode dizer o que o causou; é aquele que faz surgir, no ponto final desse momento, o sujeito, representado aí nessa cadeia; é aquele que não nos deixa saída pois a sorte – o destino – está lançada. Não há mais Outro a quem apelar, a quem lamentar o não feito, o não parido, o esquecido. Não há mais promessas ou promissórias não resgatáveis. Há sim uma barra sobre o palavreado, um ato no lugar da fala, por onde surgem formas enxutas, que produzem um efeito de sujeito e que, certamente, são matrizes institucionais, como foi a Ata de fundação de Antonio Carlos.
Se podemos dizer, com Joyce, que o importante é a viagem, podemos dizer, com Lacan, que a viagem só aconteceu ao se concluir. Isso é um momento, um átimo, um passo final. Se a obstinação em chegar nos automatiza e perdemos a viagem ela mesma, a procrastinação do momento de ceder nossos objetos faz com que estejamos sempre, não importa a geografia, no mesmo ponto.
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1. Lacan, O Outro falta, 15/01/1980. Publicado em Ornicar?, nº21
2. Lacan, Ata de Fundação da Escola Freudiana de Paris, 21/06/1964.
3. Lacan, Seminário A angústia, lição 9; Aí ele fala de uma fábula sobre a chaminé, mas não diz qual é. Penso que possa ser essa.
4. Lacan, Seminário inédito A angústia,
5. Melman, Estruturas lacanianas das psicoses
6. Bergès, J. & Balbo, G. L’enfant & la psychanalyse, Masson, Paris, 1994
7. Lacan, Seminário A relação de objeto, lição de 27/02/57
8. Lacan, A direção do tratamento
9. Lacan, Na entrevista que dá aos jornais antes da conferência ATerceira, 1974, em Roma.