Etienne Oldenhove
Bruxelas, Janeiro de 2011
Eu propus esse título para minha intervenção de hoje, Imersões na Transferência, mas vocês vão ver que eu vou encaixar dentro desta a intervenção que eu fiz no início do mês de dezembro por ocasião do vigésimo aniversário da instituição na qual eu trabalho aqui em Bruxelas, o Wolvendael. Então, eu propus esse título para minha intervenção de hoje, Imersões na Transferência, para abrir algumas questões a respeito da transferência na psicose. Essas questões são as seguintes:
– a que tipo de transferência somos confrontados no encontro com psicóticos? Primeira questão…
– que função têm esses tipos de transferência? Segunda questão.
– como podemos nos situar nessa transferência e se ela abre um trabalho possível; e se sim, em que condições ela abre um trabalho possível.
De saída, vou lhes indicar como eu tento pessoalmente me orientar nesse trabalho.
Primeira observação, então farei uma série de observações preliminares e aí passarei à intervenção que fiz no mês passado.
Eu penso que toda psicose muda de forma, não de estrutura evidentemente, mas ela muda de forma, conforme seja tomada ou não no campo de uma transferência. Esse é um fato, um ponto elementar, então podemos dizer que ele é elementar, mas ao mesmo tempo extremamente importante para a clínica das psicoses.
Eu cheguei a sustentar, em outra ocasião, em Liège, que a evolução da psiquiatria contemporânea em direção a uma posição ateórica e a uma prática cujo ideal é o de se situar o mais possível fora da transferência, numa objetivação pseudo-científica, impele as psicoses a tomarem, me parece, uma forma mais esquizofrênica. De certo modo, a medicina atual impele a uma esquizofrenização das psicoses devido à evitação dos psiquiatras em relação à transferência. Ou seja, em suma, se refletimos bem, essa é uma das maneiras de definir a transferência, em relação à atualização de uma alteridade.
Desse segundo registro, deduz-se que o falasser psicótico não é um sujeito dividido, já que está fora do recorte, fora da perda de gozo. Assim, não se pode atribuir-lhe a mesma responsabilidade de sujeito. E mesmo que não seja tão seguro que ele seja representado por um significante para um outro significante (com a condição de interrogar o estatuto do significante no campo psicótico), de modo algum sua relação com o Outro é marcada pela castração (o Outro sendo ele mesmo não castrado na psicose), o que traz todo tipo de conseqüências: Nenhuma perda que engendre uma lógica simbólica do desejo subentendido por uma fantasia primordial que orienta a vida inconsciente, uma hipocondria do corpo que não obedece às determinações fálicas da função da representação, uma desespecificação pulsional ou pelo menos um acoplamento problemático dos diversos registros pulsionais, uma relação com a linguagem que testemunha uma foraclusão do Outro, o que não significa que não haja um lugar do Outro para a imensa maioria dos falasseres psicóticos, já que muito poucos não têm acesso à linguagem….
Nesse contexto psiquiátrico em que a transferência é recusada, o quadro clínico evolui mais facilmente, me parece, de um lado na direção de passagens ao ato repetidas, é o que escutamos cada vez mais de nossos colegas que trabalham no hospital, na direção de fenômenos somáticos que servem de fixação a queixas hipocondríacas, na direção de um empobrecimento do discurso dos pacientes e uma debilização aparente, a partir do momento em que você sente que sua palavra é em vão e não é nem mesmo bem-vinda, você não tem mais muita razão, você tem menos razão, em todo caso, de falar, e na direção de uma acentuação disso que a psiquiatria atual chama de sintomas negativos na psicose, isto é, proliferação disso que se chama de depressão psicótica, vocês sabem que, no nível da nosografia, há uma invasão disso que chamam de depressão psicótica, de outros sintomas negativos como a abulia, etc. E, igualmente, na clínica, onde vemos, isso me impressionou muito, eu diria já há algum tempo, eu vi os tóxicos se introduzirem nas instituições, o consumo de tóxicos tornou-se muito mais importante nesses últimos anos; agora, na instituição em que eu trabalho é coisa corrente, permanentemente, os internos, uma boa parte dos internos consome, na maior parte isso se limita ao álcool ou ao haxixe, alguns usam drogas um pouco mais nocivas ou (…).
Essa foi então minha primeira observação preliminar.
Se ele demanda que se modifique seu registro civil e o nome que carrega – nome de família ou apenas prenome, de qualquer modo é o nome em seu princípio, o patronímico, que é visado –, é em referência ao que ele designa pelo nome d’A mulher, que remete a algo da ordem de uma identidade absoluta, totalmente diferente daquela, degradada, que é presentificada pelas mulheres, que para ele são apenassemblants de mulher.
Segunda observação preliminar, é aquela que vou desenvolver principalmente hoje, não apenas toda psicose toma uma forma diferente conforme esteja imersa ou não num campo transferencial, mas a transferência na psicose, as diferentes formas de transferência são tentativas de cura enquanto tais; isto é o que vou tentar sustentar hoje; alguns de vocês já conhecem alguma coisa porque eu lhes encaminhei o texto que eu escrevi sobre esse tema.
(…)
Terceira observação preliminar, a transferência na psicose é sempre faca de dois gumes: ou ela é mortífera e reduz o psicótico a ser apenas objeto puro do Outro, é o que nos lembra muito bem Marcel Czermak em sua intervenção que eu reli recentemente, o psicótico resiste mal à transferência; permanece perfeitamente correto tudo o que disse Czermak ali; é o que se produz quando o Outro, é minha maneira de dizer, adquire consistência demais; talvez possamos discutir isso. Ou então o Outro guarda ou adquire uma forma em que algo da função do furo se inscreve, então essa é a segunda eventualidade, é o que eu disse que é uma faca de dois gumes, e nesse caso a transferência manifesta todas as suas virtudes de tentativa de cura.
Quarta observação preliminar, como analista, é essencialmente ao nível da transferência que se situa nosso trabalho com os psicóticos, me parece, é o que eu tento defender. É ali onde, pelo fato de nossa presença, nossa presença de analista, por exemplo, ou mesmo de psiquiatra na instituição, ou de psicólogo, nós ocupamos o lugar de grande Outro, nós ocupamos o lugar de grande Outro, e na maneira pela qual vamos ocupar esse lugar, entre uma presença indefectível, o que é da ordem do ‘não deixar cair’, eu penso que é sempre uma dimensão fundamental em nosso trabalho com os psicóticos, então essa presença é partilhada entre essa presença indefectível e uma reserva advertida, é o que eu chamo de ‘saber deixar em paz’, não ser intrusivo, então essa posição muito particular na transferência com relação aos psicóticos atualiza algo de uma forma furada, de uma forma limitada, de uma forma barrada do Outro; é isso, eu acho, nossa tarefa quando trabalhamos com os psicóticos.
Enfim, quinta observação preliminar, como clínicos, eu creio que nós só podemos ficar impressionados pelo fato de que inúmeros psicóticos são resistentes, mas então aqui, eu utilizo realmente a palavra resistente num sentido inteiramente diferente daquele a que Marcel Czermak faz alusão em sua famosa intervenção, ’os psicóticos resistem mal à transferência’; eu levei algum tempo para chegar aí, mas minha experiência clínica me levou a pensar que, eu fico sempre, eu fico muitas vezes admirado com a maneira pela qual alguns psicóticos, não digo todos, são verdadeiros resistentes, resistentes no sentido nobre desta palavra; muito frequentemente só podemos ficar impressionados com o trabalho enorme e corajoso que eles fazem para não serem simplesmente devorados pela adversidade que os atingiu em sua história e pelos impasses de estrutura aos quais eles são acuados; por sua tenacidade, sua coragem e sua resistência eles nos dão muitas vezes uma lição de vida; às vezes temos uma imagem da psicose do lado da morte, da pulsão de morte, certamente eles são confrontados a isso, assim como entre vocês, mas eu acho que aqui há muitas pessoas que estão igualmente do lado da vida, mesmo se isso não é aparente à primeira vista, pois o que muitas vezes se aponta neles é justamente a grande dificuldade em que se encontram de desejar, de poder, ahn, essa inércia na qual às vezes eles permanecem durante um tempo muito longo, isso não impede que eles façam em geral um trabalho de pensamento absolutamente enorme.
Bem, chego agora ao ponto mais específico que eu queria trazer hoje, e eu me desculpo verdadeiramente por aqueles entre vocês que já me ouviram falar sobre esse tema, será uma repetição para eles, mas, é isso, sinto muito.
Então, eu tinha intitulado minha intervenção naquela ocasião ‘Tentativas de cura (no plural)’. Nesse título vocês encontram imediatamente um aspecto essencial do que Freud nos legou a propósito dos psicoses. Para Freud, o ator das tentativas de cura é justamente o próprio sujeito psicótico. É um ponto de partida do qual eu acho que nós nem sempre medimos a que ponto ele revolucionou nossa clínica e a tirou de sua ganga médica. Pois é na medicina sobretudo que os conceitos de cura e de doença são plenamente pertinentes. Em nosso campo, o da vida psíquica e de seus tropeços, esses conceitos são muito menos evidentes. Se a cura é habitualmente definida como restitutio ad integrum, ela faz problema num campo onde os fenômenos se estruturam sempre em torno de uma falta, de uma perda, de uma subtração. Com efeito, em nosso campo, o da palavra e da linguagem, nenhuma imagem, por exemplo, nenhuma representação, sem que algo de irrepresentável lhe tenha sido subtraído; é, por exemplo o que eu acho que foi admiravelmente evidenciado, entre outros, por nosso colega Stephane Thibierge, quando ele relê o i(a), uma imagem só se sustenta porque algo de um real lhe foi subtraído, e não há sistema simbólico completo, evidentemente, ao contrário, ao nível do simbólico há sempre necessidade de uma incompletude. O adjetivo latino integer significa não tocado, que não recebeu nenhum ataque, não cortado, intacto, inteiro, sem alteração, e secundariamente ele toma os seguintes sentidos: são, razoável, imparcial, etc., eu lhes poupo todos esses sentidos derivados.
Integer remete então, para nós, mais a algo, eu diria, da morte psíquica, talvez fosse ir longe demais dizer isso, mas principalmente a algo da ordem do não nascimento. A vida psíquica começa com a incidência da linguagem sobre o corpo, ela necessita sempre uma perda fundadora. A integridade nunca poderá ser senão secundária no que concerne à vida psíquica; é por isso que só podemos falar de narcisismo secundário, é a razão pela qual o narcisismo primário não faz sentido.
Em seguida, temos na expressão restitutio ad integrum, restitutio, restituição como retorno a um estado anterior, a um estado antes do dano, antes da doença, antes do traumatismo. É o sentido clássico da palavra cura. Não é de modo algum nesse sentido que Freud nos embarca quando ele fala de tentativas de cura. A própria expressão ‘tentativas de cura’ nomeia claramente a distância que há entre cura e tentativa de cura. Uma tentativa de cura não é uma cura. Uma tentativa de cura não tem por objetivo reconduzir ao estado anterior, a um estado não perturbado, como pode ser o caso em certas patologias médicas. Quando Freud fala de tentativa de cura, ele fala de uma criação, portanto, da produção de algo novo. Uma tentativa de cura é bem mais uma tentativa de resposta do que um retorno a uma integridade perdida. Resposta a um impossível, mais do que solução de uma impotência. E nos engaja na repetição que não é o retorno do mesmo. Ou seja, aquilo com que lidamos em nosso trabalho e em nossas existências é de uma ordem completamente diferente daquilo que a medicina nos permite abordar. Freud, para além, algumas vezes, de alguns pensamentos nostálgicos em relação à medicina e a biologia, já nos disse muito claramente: é apenas por analogia que em nosso campo nós podemos continuar a falar de doença e de cura. A norma em nosso campo, como dizia Lacan, ele diz isso em seu seminário da Angústia, a norma é a falta.
Ali onde Freud abre um método clínico verdadeiramente novo, mas também uma ética diferente, é ao especificar que na vida psíquica todo sintoma tem sempre uma dupla valência. Para Freud, seja no domínio das neuroses ou no das psicoses, um sintoma vem sempre dizer, a um só tempo, uma dificuldade, um problema, um sofrimento, mas já também a tentativa de resposta ao problema colocado.
Por exemplo, tomemos o exemplo de uma fobia, uma fobia já é uma resposta altamente sofisticada a uma angústia que, sem essa formação sintomática, permaneceria difusa e invasiva.
Freud nos convida a estar atentos às duas faces da maioria dos sintomas psíquicos: a face de parada, de dificuldade, de inibição, de angústia, mas igualmente a outra face, a da resposta, de compromisso, de criação. Ao fazer isso ele muda radicalmente a condição da clínica, eu acho. E aqueles que nós somos chamados a encontrar, é preciso que os encontremos também e sobretudo, sem esquecer o outro aspecto das coisas, mas também e sobretudo do lado de sua potencialidade criativa, de sua capacidade de responder.
Chego agora mais especificamente ao uso dessa expressão por Freud em seu trabalho sobre o Presidente Schreber, trabalho que ele publicou, vocês sabem, sob o título de ‘Observações psicanalíticas sobre um caso de paranóia descrito sob a forma autobiográfica’. Vou simplificá-lo ao extremo mas, na minha opinião, Michel vai provavelmente tomar as coisas de maneira muito mais detalhada do que eu.
Freud, apoiando-se no testemunho eminentemente precioso de Schreber, descreve as diferentes frases, as diferentes fases, perdão, do processo psicótico. Vocês se lembram que, depois de uma fase de desinvestimento libidinal do mundo, de uma fase de fim do mundo e de morte subjetiva, Schreber vai reenodar com o mundo, vai reinvesti-lo libidinalmente; e é nesse momento que Freud introduz essa questão da tentativa de cura. Então, ele escreve o seguinte, falando do mundo engolido no desmoronamento psicótico de Schreber. Ele diz: O paranóico o reedifica, esse mundo, não mais esplêndido, certamente, diz ele, mas ao menos de tal modo que ele possa viver novamente nele. Eu acho extraordinária essa maneira de dizer as coisas. De tal modo que ele possa viver novamente nele, então ele vai reconstruir um mundo onde ele terá de novo um lugar, é isso que ele está dizendo. Ele o edifica pelo trabalho de seu delírio. Isso que consideramos uma produção da doença, a formação delirante, é na verdade a tentativa de cura, a reconstrução. Ela é, depois da catástrofe, mais ou menos bem sucedida, nunca plenamente, diz Freud. Uma modificação interna em profundidade, segundo os termos de Schreber, efetuou-se em relação ao mundo. Mas o ser humano reconquista uma relação com as pessoas e com as coisas do mundo, uma relação frequentemente muito intensa, embora ela seja hostil, ela que era antes de uma ternura plena de esperança. Fim da citação do texto de Freud.
Freud situa então a tentativa de cura na paranóia no nível do delírio. Isso nos permite ouvir e receber todo delírio de outro modo que não como simples desrazão a ser calada sufocando-a sob nossa suficiência e nossos eventuais neurolépticos; o que não quer dizer que não vamos utilizá-los, eu falo principalmente da posição a adotar em relação a isso.
Eu queria hoje partir dessa contribuição freudiana e talvez levar as coisas um pouquinho mais longe.
Eu tinha proposto como título para essa intervenção que eu fiz anteriormente ‘Tentativas de cura (no plural)’. Quais seriam essas tentativas de cura? Há certamente as construções delirantes como Freud evidencia; há também, mas eu não me deterei muito aí hoje, só faço uma alusão, isso que por ocasião de nosso trabalho, que eu acho que podemos qualificar como um trabalho de sublimação, aquilo que Lacan chamou em um de seus últimos seminários de sinthome; são essas produções, essas obras artísticas, científicas, intelectuais, poéticas que todos vocês conhecem; obras artísticas reconhecidas por todos ou arte dita bruta, muitas vezes mais confidencial mas muito presente em nosso trabalho cotidiano; obras científicas nas quais nos apoiamos como por exemplo a teoria dos conjuntos de Cantor ou o chamado teorema da incompletude de Gödel, se ao menos admitimos a paranóia de Cantor e a de Gödel; obras poéticas como a de Artaud ou a de Joyce e de tantos outros, mas aqui, outra vez, em todo caso para alguém como Joyce, compreende-se que se discuta se ele era psicótico ou não. O importante não está tanto aí. Essas obras são de criação, isso é o que é importante, que têm um alcance universal inegável, mas que tinham também um alcance estritamente singular no momento de sua emergência, o de tratar uma força pulsional, o de transformar um gozo que aí habitava ainda e buscava uma saída fora do corpo.
Eu me resumo:
Primeira tentativa de cura, as construções delirantes;
Segunda tentativa de cura, as criações sinthomáticas;
Terceira tentativa de cura, a transferência.
É essa tentativa de cura que eu queria interrogar com vocês hoje, porque é aquela à qual somos chamados a nos prestar em nosso trabalho cotidiano com os psicóticos. Enquanto as produções delirantes e as criações sublimatórias são obra do sujeito psicótico sozinho, a transferência, por definição, supõe um outro, supõe um endereçamento. Nós somos então aí convocados pelo sujeito psicótico e podemos tentar responder aí ou responder por isso.
É aí que se situa uma linha divisória entre os que fazem a escolha de trabalhar fora da transferência e aqueles que, ingênuos ou advertidos, embarcam-se na transferência, com seus riscos e perigos. Seja, de um lado, e vemos isso muito bem na evolução da psiquiatria contemporânea, seja, de um lado a segurança, o securitário e uma debilização certa, é de todo modo uma vertente adotada por uma boa parte da psiquiatria, seja o risco, a responsabilidade e uma exigência de pensamento.
Uma vez mais vou partir de Freud para reexplorar essa questão da transferência na psicose, essencialmente na paranóia ou então no que se chama de esquizofrenia paranóide, porque frequentemente agora as assimilamos um pouco, pois as esquizofrenias não paranóides necessitam de uma abordagem diferente, penso que se trata de uma questão de todo modo bastante diferente.
Freud situa perfeitamente, evidentemente, a incidência da transferência no caso do Presidente Schreber; ele descreve com muita fineza a evolução da transferência entre Schreber e Flechsig e seu reviramento de amor em perseguição. É o que vocês encontram no fim da citação que eu lhes fiz. Isso vai inclusive lhe permitir fazer uma leitura lógica, magistral, das diferentes formas de delírio paranóico. Eu as lembro a vocês muito rapidamente, de fato vocês sabem tudo isso de cor, mas eu lhes lembro assim mesmo.
Freud vai chegar a definir logicamente as diferentes formas, as grandes formas de delírio paranóico, a saber: delírio de perseguição, delírio de ciúme, delírio erotomaníaco e delírio megalomaníaco, transformações por mediação e por projeção de uma proposição que Freud estima estar na origem de toda paranóia, a saber: eu, um homem, eu amo (ele) um homem; Ou então, se quiserem: eu, uma mulher, eu amo (ela) uma mulher.
Conforme vocês façam incidir a negação sobre o sujeito, sobre o verbo ou sobre o objeto dessa proposição, e, se vocês acrescentarem, ali onde as coisas estariam claras demais, uma projeção, vocês podem deduzir daí as quatro grandes formas de delírio paranóico:
Delírio de perseguição – eu não o amo, eu o odeio – negação incidindo no verbo – projeção: ele me odeia.
Delírio erotomaníaco – não é ele que eu amo, é ela que eu amo – negação incidindo no objeto – e então projeção: é ela que me ama.
Delírio de ciúme – não sou eu que amo o homem, é ela que o ama – negação incidindo sobre o sujeito da proposição.
Delírio megalomaníaco – eu não amo de jeito nenhum e eu não amo ninguém, eu só amo a mim – recusa global de toda a proposição, nos diz Freud.
Então, essa leitura dos diferentes delírios paranóicos, ligando-os a uma estrutura lógica, a uma estrutura gramatical, é um passo determinante e de uma audácia incrível; Freud nos dá acesso a uma racionalidade das loucuras; já para ele, as loucuras procedem logicamente tanto quanto podem; e Lacan, por sua vez nos fará observar que não há nada mais lógico que uma psicose. A hipótese de Freud em relação à paranóia é a de um núcleo homossexual não assumível: eu, Schreber, eu o amo, ele Flechsig, meu professor e doutor, no lugar e posição de meu pai; negação, eu não o amo, eu o odeio, projeção, ele me odeia, ele me persegue; vocês se lembram do desenvolvimento do delírio de Schreber, e depois, no delírio de Schreber, progressivamente Flechsig será substituído por Deus, e enfim esse delírio se estabilizará, numa forma erotomaníaca, a saber, Schreber toma aí o lugar da mulher de Deus, o que vai apaziguá-lo completamente.
Essa hipótese de Freud, tem seus limites, é preciso substitui-la por uma hipótese mais fundamental, à qual a noção de grande Outro, introduzida, elaborada por Lacan – já a vemos surgir em seus dois primeiros seminários, mas é somente no seminário III, justamente o seminário em que ele trabalha a questão das psicoses, que Lacan vai elaborá-la mais; é a hipótese do grande Outro; essa hipótese inteiramente fundamental é a da relação de todo sujeito com o Outro, com o grande Outro; é a dimensão da transferência enquanto tal.
A maior dificuldade do psicótico, em todo caso é minha maneira de apreender aquilo com que me confronto aí, a dificuldade maior do psicótico é de se forjar um lugar num mundo que não o adotou, chegar apesar de tudo a se virar com um grande Outro que não o adotou.
Ou ele lida com um mundo, com um Outro que permanece uma total incógnita para ele, que pode querer para ele qualquer coisa, ou que não quer absolutamente nada para ele, e ele permanece então numa posição que eu qualifico, é minha maneira de me situar, numa posição propriamente esquizofrênica, ou seja, quase fora da transferência, na angústia e numa dissociação maior: ele está fora do grande Outro, totalmente preso em si mesmo. Ou o Outro, aí não falo mais da posição esquizofrênica, ou o grande Outro se torna um Outro, é a intervenção do um, porque quer algo com ele, com o sujeito. Com isso, ele adquire um lugar em relação a esse Outro, com a condição de que esse lugar seja desconfortável. Se o Outro tem raiva de mim ou quer minha pele, eu não sei mais em que me sustentar, e sobretudo o mundo diz respeito a mim, e inversamente, eu digo respeito a ele. Vemos que algo da ordem de uma relação do sujeito com o Outro que se estabelece. Temos aí a posição de perseguição.
Quanto à posição erotomaníaca, ela advém da forçagem seguinte, o erotômano diz: eu digo, às vezes alto e forte, às vezes silenciosamente, que o Outro me ama. É esse o postulado da erotomania. Eu tenho certeza disso, apesar, muitas vezes, das aparências de uma lamentável realidade que parece contradizer minha convicção. Apesar de tudo eu vou afirmar alto e forte que o Outro me ama.
A posição megalomaníaca vem justamente dizer que eu sou o centro do mundo, aliás, como as duas posições precedentes. Todas essas posições paranóicas são de todo modo posições em que o sujeito se acha mesmo estar no centro do mundo, desde que seja um centro ardente e um centro desconfortável.
E a posição do delírio de ciúme diz que eu deveria ser o centro do mundo, o centro desse Outro que faz valer, que faz existir a pessoa que eu creio amar. Que o ciumento paranóico crê amar.
Por um módulo ainda mais elementar que aquele que Freud suspeitava ser subjacente às construções paranóicas, por esse módulo, portanto, da relação de um sujeito com um grande Outro, reencontramos as grandes formas dos delírios paranóicos.
Por que é que a maioria dos delírios paranóicos se limitam a essas quatro grandes formas de delírio? É em todo caso bastante extraordinário… Parece-me que é preciso responder: porque eles são sempre em primeiro lugar uma tentativa de instaurar uma transferência e, por isso, são tentativas de cura. Essas formas paradigmáticas do delírio são, a cada vez e cada uma a sua maneira, forçagens para se cavar um lugar num mundo que não quis saber de você.
Pequena observação de passagem sobre o que chamamos de significação pessoal, que muitas vezes é o ponto de convicção mais inabalável de um delírio. O fato de estar convencido de que isso “me” concerne seria também um índice do valor transferencial desses delírios. O mais importante é que isso me concerne e, portanto, por isso mesmo, isso me dá um lugar.
Eu disse que uma parte essencial de nosso trabalho na instituição era prestar-se a essa transferência, na instituição ou em outros lugares, eventualmente no consultório, uma parte essencial de nosso trabalho era prestar-se a essa transferência, não a do delírio, mas a que paralelamente o sujeito instaura com a instituição; porque eu acho que é muito importante distinguir esses dois tipos de transferência que podem muito bem não coincidir, distanciamento que constitui uma possibilidade de trabalho. Assim, no ano passado, nós acolhemos, trabalhamos com um paciente internado que, no nível de seu delírio, podemos dizer que ele estava do lado da perseguição; era um delírio muito organizado, os perseguidores eram os ingleses, seu delírio se desencadeou com uma viagem que ele tinha feito a Londres e ele teve que ser repatriado e desde então “Os ingleses não paravam de procurar briga com ele, de incomodá-lo, de serem insidiosos em relação a ele, dizendo coisas desagradáveis ou humilhantes”, tudo ia nesse sentido no nível de seu delírio; ao passo que em sua transferência na realidade cotidiana, em suas relações com a equipe e com seus colegas na comunidade terapêutica, ele estava mais numa dimensão, ele estava mais permanentemente numa dimensão erotomaníaca, ou seja, ele se ocupava conosco, estava convencido de que podia e devia fazer nossa felicidade, que ele era único e eminentemente amável.
Essa transferência diante da instituição, nós não a criamos. (…) Eu digo que nós podemos nos prestar a ela. E o trabalho não para aí, pois essa transferência é muito perigosa e uma faca de dois gumes: o sujeito psicótico e nós mesmos podemos fazer dela uma alavanca, uma tentativa de cura, o estabelecimento de um laço na maioria das vezes apaziguador, ou podemos nos perder aí sob as formas devastadoras de amores mortíferos, de rivalidades desastrosas, de projeções aniquilantes. Quando o Outro toma lugar demais aí, consistência demais, o sujeito não tem mais nenhum lugar ou consistência e é votado à passagem ao ato.
A persistência nesse tipo de transferência é um trabalho difícil, muito delicado, que necessita conseguir se manter nessa crista estreita entre duas vertentes deletérias: de um lado o deixar cair e do outro a intrusão.
A paranóia e a transferência que ela inclui são em si uma tentativa de cura porque o Outro toma aí uma certa figura, uma certa consistência. Mas é preciso que ele não tome demais, é preciso que na transferência essa forma do Outro que vamos fazer valer permaneça barrada, seja constantemente descompletada. Todo o trabalho, me parece, disso que chamamos de psicoterapia institucional consiste em ser institucionalmente o que sustenta o lugar de uma certa forma do Outro que eu tentei lhes testemunhar.
Bem, eu paro por aqui, quanto ao que eu queria trazer hoje como primeira questão nessa questão da transferência na psicose.
Fim da intervenção. Segue-se uma discussão. No site da ALI, onde essa intervenção – editada – está transcrita, encontra-se acrescentado o trecho abaixo:
Vocês encontrarão numerosos testemunhos desse trabalho no excelente livro de François de Coninck e da equipe do Wolvendael: “Um lugar, um tempo para acolher a loucura”. Permito-me então remetê-los a ele.
Para concluir esse percurso, gostaria de observar o seguinte: eu me apoiei muito na psicanálise, Freud e Lacan, para apresentar o que eu tinha a dizer hoje. Não creiam que eu o tenha feito em primeiro lugar para promover ou defender a própria psicanálise aprioristicamente. Eu recorri a ela porque, no curso do tempo foi a única via de acesso séria que encontramos em nosso trabalho para nos aproximarmos mais dos sujeitos que se endereçam a nós num centro como o Wolvendael.
Apesar do caráter às vezes um pouco teórico ou técnico do que eu disse, eu gostaria, sobretudo, de testemunhar hoje o que me ensinaram os sujeitos psicóticos com os quais vivemos nessa comunidade: encontrei ali verdadeiros resistentes, no sentido nobre dessa palavra, sujeitos que apesar da adversidade, apesar das condições psíquicas de vida muitas vezes extremamente difíceis, batiam-se com uma coragem impressionante para levar uma vida digna. Eles nos dão uma lição de vida. Cabe a nós ouvi-la.
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*Tradução e transcrição de Sérgio Rezende a partir do áudio dessa intervenção. Não revisada. Documento interno de trabalho do Tempo Freudiano Associação Psicanalítica.