Stéphane Thibierge
Vou propor a vocês, para começar, uma observação a propósito da psiquiatria e da psicanálise, uma observação muito simples.
Creio que, para os médicos e para os psicanalistas, encontramo-nos numa situação que alimenta uma confusão ambiente, a tal ponto que aquilo que podemos chamar os diferentes discursos tradicionais não têm mais, propriamente falando, objeto. Um discurso, na medida em que ele articula um conhecimento, é especificado pelo fato de incidir sobre um objeto e enunciar um certo número de proposições relativamente a esse objeto, as quais se chamam uma teoria. A teoria tem por função definir o objeto, justamente, ou seja, seu objeto e, se for o caso, o método que esse objeto reclama. Se nos apoiamos nesses termos e nesses critérios bastante simples, hoje em dia há poucos discursos que conservam um valor articulatório.
Desse ponto de vista, acho que a questão de nosso congresso, como ela está posta, é uma questão muito pertinente, pois tem o interesse de nos apresentar, de saída, o que podemos chamar de ordens de fatos diferentes. Lembro-lhes o título, com efeito, que menciona: a operação do significante: o nome, a imagem, o objeto.
Já no título, vocês têm uma tese que é colocada: a saber, que a operação do significante, enquanto tal, produz um fato que é precisamente a distinção de três ordens de fatos diferentes. É assim que essa operação é aqui apreendida, na medida em que ela produz essa distinção. E isso remete de maneira muito direta, podemos acrescentar, à incidência do significante no corpo.
É isso que especifica o humano, que, como diz Lacan, é o animal que padece do significante, ou seja, cujo corpo deve suportar a estrutura do significante. Não temos escolha quanto a isso, embora isso se realize segundo diversas modalidades, que admitem uma certa diversidade.
A distinção inicial dessas três ordens de fatos é algo que pode parecer bem simples, podemos mesmo dizer que é elementar – no sentido em que reduz as coisas a seus elementos. Mas como vocês sabem, já que vocês seguramente estudaram um pouco de história das ciências, ou de filosofia, de método, os pontos elementares são sempre aqueles aos quais só podemos chegar por último – e mesmo assim, nem sempre chegamos, é preciso fazer um esforço.
E aí, acho que esses três registros, assim apresentados como a operação do significante, são trêstermos nos quais podemos nos apoiar para trabalhar. Digo três termos: a importância de indicar três termos e não três idéias, por exemplo, é para insistir no fato de que esses três significantes indicam três ordens de fatos que assim identificamos. Estamos, pelo meio articulado desses três significantes, em condição de identificar aí três ordens de fatos que distinguimos respectivamente.
Nós as identificamos, isso não quer dizer que as compreendemos. Não estou certo de que qualquer um de nós compreenda o que uma imagem é – ou então, se temos a impressão de compreender uma imagem, será fácil mostrar que essa compreensão só pode ser vaga, fraca.
Para que serve isso, identificar o nome, a imagem, o objeto? Isso nos serve – aos psicanalistas, aos médicos, a outros ainda – isso nos serve para identificar os fatos, ou seja, aquilo que vamos levar em conta. Vocês sabem o quanto é necessário, quando se tem uma prática, seja ela qual for, saber em que fatos vamos nos apoiar, que fatos vamos reter como importantes, que fatos vamos deixar de lado como secundários. Quando vocês recebem um paciente, por exemplo, se fizerem esse exercício que consiste em escrever aquilo que gostariam de deixar para alguém que viesse a se ocupar desse paciente depois de vocês, digamos, vocês verão que se trata de um exercício que comporta uma dificuldade muito sensível. Era um exercício no qual Clérambault era excelente, são seus famosos atestados. Não digo que tenhamos que fazer da maneira que era a dele, que era ao mesmo tempo tributária de seu trabalho de médico e de seu estilo singular. Acho apenas que cada um de nós, que é clínico, sabe o que pode designar essa prova, que consistiria em deixar para um colega um relatório correto, não muito disforme, a propósito do paciente que recebemos.
Esses três termos, portanto, permitem-nos identificar fatos, e não somente fatos clínicos, também fatos, simplesmente.
Uma primeira dificuldade que essa questão de nosso colóquio permite esclarecer, me parece, é a seguinte. A operação do significante, tal como acabei de evocá-la, admitimos que ela determina efeitos no corpo humano – dizemos o corpo humano para ser breves, na realidade não é só no corpo humano, longe disso – que qualificamos de neuróticos, psicóticos ou perversos. São três modos segundo os quais o corpo suporta a estrutura do significante. E a operação do significante, está aí a dificuldade que eu evocava, quando ela consegue se dar de uma maneira neurótica, para dizer as coisas assim, ela tem esse efeito estranho de levar justamente a desconhecer seus próprios efeitos, e isso de princípio, e de uma maneira, em certos aspectos, radical.
Em outras palavras, vocês não podem mais saber o que ela foi.
Em conseqüência, na medida em que você é tomado na estrutura que o constitui e que lhe permite então analisar os fatos, se essa estrutura neurótica comporta justamente seu próprio desconhecimento, você fica embaraçado para identificar os fatos. Podemos formular essa dificuldade de uma outra maneira. É que na neurose, dentre esses três registros, pode-se dizer que o registro da imagem é que vai estar em posição de mestria, no sentido do que Freud chamou de narcisismo. E isso vai embaralhar tudo, a partir do momento em que é a imagem que comanda. O neurótico, trata-se sem dúvida de uma evidência, mas ela me parece poder ser lembrada aqui, é mais do que atento a sua imagem, ele às vezes é obnubilado por ela. E o neurótico se regula mais facilmente pelo que é da imagem, como vocês sabem, do que pelo que faz sua questão, pelo que faz seu desejo. Uma das experiências mais elementares da psicanálise, Lacan ressalta, é constatar que quando se convida um sujeito a falar do que o interessa e a falar, como se diz, livremente, muitas vezes isso se interrompe bem rapidamente. Aí temos um exemplo concreto dessa posição de mestria da imagem.
E é nesse sentido que, na neurose, a imagem embaralha tudo. E isso parasita o que pode valer para nós como nossa abordagem científica dos fatos. O comportamentalismo – e Eduardo Rocha falou muito bem dele, antes, quando falou do cognitivo-comportamentalismo – é uma visão do mundo que diz, em suma, que tudo que não tem imagem deve ser deixado de lado, negligenciado, até mesmo eliminado. E então, se acontece de você ter um sintoma que não tem imagem, você sabe assim o que pode lhe acontecer, ou pelo menos a esse sintoma. Isso torna difícil uma abordagem séria dos fatos, dos quais pode-se dizer que estamos verdadeiramente longe, e especialmente para o que nos concerne e nos interessa, uma abordagem analítica. É bastante sinistro, na medida em que o objetivo é chegar a que tudo esteja fixado em imagens, ou seja, à morte. Não é verdadeiramente agradável, como abordagem.
O registro da imagem embaralha nossa abordagem científica dos fatos, mas embaralha também, de maneira considerável, e cada vez mais, nossas relações sociais. Se vocês estão num contexto em que é a imagem que está em primeiro plano, com efeito, vocês não podem não se esforçar para ser semprereconhecidos, já que a imagem comporta esse registro do reconhecimento, com esse equívoco que isso produz em francês, em que o reconhecimento quer dizer o fato de que se percebe a realidade e, além disso, quer dizer também a preocupação que se tem em ser reconhecido pelo outro.
Isso nos mostra bem o tipo de lógica em que se acha engajado aquilo que o cientificismo contemporâneo quer chamar de objetividade. Essa objetividade é de fato uma busca do reconhecimento, que tem um acento inevitavelmente paranóico. Esse privilégio concedido ao registro da imagem coloca no centro o Eu, isso que Freud chamou de Eu, e o confunde, ao fazê-lo, com a operação do significante.
A operação do significante, nós a percebemos bem no exemplo que lhes dei há pouco do analisante que encorajamos a dizer e que em determinado momento, que às vezes surge muito rapidamente, pára de falar. Aí percebemos o que é a operação do significante: é a divisão do sujeito. O corpo humano é dividido pelo significante, enquanto sujeito falante.
Podemos dizer, se nos referimos às três estruturas clínicas, que a psicose consiste na rejeição, o que Lacan chama de foraclusão. Na perversão, ela é desmentida, e na neurose é desconhecida ou recalcada – o que, aliás, não é a mesma coisa, mas esse não é nosso tema aqui.
Isso quer dizer, entre outras coisas, que não podemos nos orientar, na demarcação dos fatos, somente a partir do registro da imagem – é impossível. Constatar que é impossível, isso pode ir longe, já que poderíamos dizer que toda a tentativa de uma certa tradição filosófica, de se orientar no real a partir do pensamento e da compreensão, na medida em que o pensamento é da ordem do imaginário, pois bem, é uma tentativa impossível. Vir a se dar conta disso pode ter conseqüências.
Nós, enquanto clínicos, apoiamo-nos na identificação de algo diferente. E isso nos exige muitos esforços. Tentamos, para identificar os fatos, seguir, eu diria de maneira quase cega, a lógica do significante.
Foi o que Freud fez desde o início, e está aí toda a dificuldade, nele, da questão do objeto. Eu li, na introdução da revista que vocês editam, no terceiro volume sobre as psicoses1, que Marcel Czermak realçava essa questão do objeto como uma questão especialmente difícil para Freud. Não sei se vocês estarão de acordo, mas proponho-lhes distinguir da seguinte maneira a questão do objeto.
Freud trouxe, no início, os Estudos sobre a histeria. O que faz Freud, o que faz Breuer, nos Estudos sobre a histeria? Eles deixam as histéricas falarem e elas enunciam significantes, elas dizem muitas coisas.
Não era evidente saber de que elas falavam. Se vocês tomam o discurso de Anna O., não era simples para Breuer, seguramente. Ele podia bem se perguntar de que exatamente ela falava. Seria ela louca? Efetivamente, os significantes saíam e se colocava a questão de saber que sentido isso tinha, ou para onde isso remetia, para que tipo de fatos. Freud foi, com relação a essa questão, de um grande rigor e, ao mesmo tempo, testemunhou uma grande dificuldade. Ele sempre enfatizou o fato de que era preciso seguir de perto os significantes produzidos pelo sujeito, ou seja, tomá-los à maneira de um texto sagrado, um texto a decifrar.
Mas onde ele ficou mais embaraçado, parece, foi para articular o sentido, ou algo da ordem do sentido. Como vocês sabem, ele propôs, supôs, que o que ligava o significante e o significado, em outras palavras, o significante e a imagem, ele supôs que o que os ligava era o sexual: que era da ordem disso que chamamos de falo – que o falo era o que garantia um laço localizável entre esses significantes produzidos pelas histéricas e o sentido. Foi a maneira pela qual ele tentou tratar o que fazia sintoma. Mas foi também uma maneira de preservar, ao fazê-lo, o que podemos chamar de solidariedade entre o significado e o significante.
Aí, eu proporia dizê-lo assim, encontra-se uma dificuldade de Freud, que Lacan localizou e da qual ele mesmo partiu para avançar alguma coisa que permitisse orientar-se também fora das neuroses e, em particular, no que concerne às psicoses. Pois essa operação do significante, nas psicoses não temos nenhuma esperança de nela articular de maneira solidária o significante e o significado. E é aí que se acha, me parece, a dificuldade de Freud.
E o que eu evoco aí com meus colegas – pois, isso que eu lhes digo, nós tentamos trabalhr juntos, a partir do ensino de Marcel Czermak, de Melman e de alguns outros… – temos alguns pontos de apoio existentes para abordá-lo. A psicanálise não chegou diante dessas questões como se as descobrisse num deserto: havia coisas que já existiam.
Na tradição médica neurológica, por exemplo, na época em que a psiquiatria e a neurologia não eram tão distintas quanto hoje, observou-se que havia toda uma série de fenômenos que manifestavam de modo notável uma dessolidarização entre o significante e o significado. Isso se via em neurologia, em psiquiatria, e é porque esses fenômenos estavam em voga que, um dia, o clínico advertido que era Joseph Capgras pôde ver chegar uma paciente, uma psicótica, que apresentava uma megalomania e um delírio de perseguição. Mas esse ambiente onde ele estava, digamos de espírito científico, mesmo se também era cientificista, permitiu a Capgras isolar um fato que parecia periférico, mas que era de primeira grandeza. Capgras isolou, na fala dessa mulher, que ela se queixava do seguinte: mudavam o tempo todo a pessoa de sua filha. Ela dizia: “minha filha, cada vez que eu a vejo, nunca é a mesma, substituem-na por um sósia”.
Capgras não deixou isso passar. Ele disse que esse sintoma era muito notável. Está certo: temos de um lado a imagem e do outro o nome. Alguns anos mais tarde, outros psiquiatras isolaram um outro sintoma que era logicamente muito próximo da síndrome de Capgras, na qual se pode dizer que a mesma pessoa é sempre uma outra. Eles viram chegar uma paciente que lhes dizia: “todos os outros que eu encontro, é o mesmo”. Dessolidarização, aí também, entre o nome e a imagem.
Vocês vêem como se formulava ali uma questão que já atormentava Freud. Freud sabia, efetivamente, que não estava quite com a questão do objeto, ou do real, apenas com a suposição do falo como aquilo que vem ligar o significante e o significado no corpo humano.
Freud, aliás, deixou textos, principalmente um texto, em que se percebe a dimensão da identificação dealgo. Gostaria aqui de dizer apenas uma palavra sobre esse termo identificação: quando falamos de identificação, geralmente falamos da identificação intransitiva, ou seja, de um fenômeno que pertence ao registro do reconhecimento e que é, bastante freqüentemente, da ordem do imaginário. Mas não sabemos muito bem como pegar isso – pois não é apenas do registro do imaginário, Lacan consagrou um seminário inteiro a mostrá-lo muito precisamente.
É difícil demarcar a função, aqui, da identificação transitiva: o que o sujeito identifica? Não a que, mas: o quê?
O desconhecimento da estrutura próprio da neurose, que evoquei no início, não pode ser levantado para assim promover a identificação, no sentido transitivo, do objeto que comanda o neurótico. A esse objeto, com efeito, ele não tem acesso. Ele só pode situar sua recorrência, eventualmente, num tratamento e na ordem do significante. Lacan chamava isso de a lógica da fantasia. Para situar isso é preciso fazer um esforço. Podemos dizer que para nós a realidade, o reconhecimento, só pode se sustentar se não identificamos o objeto que comanda nosso desejo.
Para retornar a Freud, há um texto no qual percebe-se muito bem que ele tinha se dado conta dessa questão da identificação, texto sobre o qual Charles Melman falava um dia, dizendo que o achava completamente desorientador e inapreensível quanto ao sentido. Trata-se de Pulsões e destinos das pulsões. Nesse texto, Freud segue ao pé da letra, pode-se dizer, a lógica do significante na cartografia das pulsões. Trata-se de um texto que não se presta de modo algum ao reconhecimento, ou seja, é difícil lhe dar um sentido, exceto o sentido seguinte, que não é propriamente um: apenas uma regulação quase automática da incidência do objeto sobre o sujeito. E Freud declina as diferentes modalidades da pulsão, de um modo gramatical, fazendo muito pouco apelo ao sentido.
Para chegar ao fim de minha exposição: Freud colocara de uma maneira completamente inédita a questão do objeto, mas como sem dúvida acontece com invenções de tal alcance, digamos que ele ainda não sabia muito bem o que fazer disso, como marcar seu alcance em certas ordens de fatos, e em particular nos fatos da psicose.
Lacan retoma as coisas por uma borda diferente, e especialmente a partir da descoberta feita por esses médicos franceses que evoquei. Digo médicos franceses porque isso se inscrevia numa certa tradição que era a da escola francesa em clínica e em psiquiatria. Faz sentido dizer isso porque se trata de uma tradição que sempre preferiu tentar fazer um relatório preciso dos fatos, inclusive quando isso fazia balançar a teoria. Eles tinham uma grande preocupação com a exatidão do que escreviam. E confiavam mais na escrita, e no que escreviam sobre o que seus pacientes diziam, do que no pensamento de seu tempo, especialmente em psicopatologia. A descoberta que evoco aí é que esses psiquiatras – que encontraram a síndrome de Frégoli, a síndrome de Capgras – criaram um termo que Lacan certamente conhecia. São dois psiquiatras, Courbon e Tusques. Eles escreveram um artigo, hoje em dia esquecido, com razão de certa maneira, pois quase que só o título é inventivo, mas já está bom. Eles intitularam esse texto Identificação delirante e falso reconhecimento. E ali, indicaram de que modo, nas psicoses que evoquei, o núcleo da psicose e do delírio, que pode ser um delírio muito pouco desenvolvido, o núcleo elementar comporta a menção de algo – “que me atormenta”, dizem os pacientes. Esse algo ou esse alguém, Courbon e Tusques resumiram muito bem suas características. Trata-se de um objeto autônomo, xenopático, e é sobretudo sempre o mesmo, ou seja, sempre o mesmo um, que tem sempre o mesmo nome, e que não tem nada a ver com a unidade contável, o um da conta – trata-se de um tipo de isolamento perfeitamente puro de uma instância persecutória no real.
Em toda psicose, encontramos uma modalidade mostrável, demarcável, do fato de que a estrutura especular se acha reduzida a uma lógica reduplicativa em que a imagem se confunde estritamente com o objeto. E para se dar conta do que pode designar isso que chamamos de representação quando se trata de psicose, ou ainda a imagem, não temos nenhum outro meio senão nos fiarmos no que os pacientes nos dizem. Não vale a pena tentar compreender alguma coisa, é preciso apenas tentar levá-la em conta, no sentido literal e estrutural.
Por exemplo, na síndrome de Cotard, quando um paciente nos diz que ele se torna o universo inteiro, um, não temos que compreendê-lo, mas tentar levar isso em conta.
Quis sobretudo chamar a atenção para o que nos parece ser o interesse dessa seriação, o isolamento dos fatos que a série dos três termos propostos pelo colóquio torna possível.
Obrigado.
Tradução de Sérgio Rezende
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