Nicolas Dissez
Intervenção no seminário de verão, agosto de 2005
Quando Lacan, durante o seminário dedicado à “Lógica da fantasia”, que precede imediatamente esse seminário sobre “O ato psicanalítico”, convida seu amigo Roman Jakobson para responder às interrogações de alguns de seus alunos, ele próprio lhe faz uma pergunta que, naquele momento, pode parecer surpreendente. De fato, ele faz a mesma pergunta duas vezes, com duas formulações diferentes. Eu recupero para vocês essas duas formulações: “Se eu mesmo tivesse uma questão a levantar para o Professor Roman Jakobson, diz ele, eu perguntaria se ele, cujo ensino sobre a linguagem tem para nós tantas conseqüências, se ele também pensa que esse ensino é de natureza a, naqueles que o seguem, exigir uma mudança de posição radical no nível do que constitui, digamos, o sujeito”. Pouco depois ele reformula o que, ao que me parece, continua sendo a mesma questão, um instante depois: “Será que você pensa que, um lingüista formado na disciplina lingüística, isso engendra nele uma marca tal que seu modo de abordar todos os problemas é algo que carrega um selo absolutamente original?”.
Essa questão, os desenvolvimentos do seminário do ano seguinte permitem entender que ela concerne eminentemente ao registro do ato, esse registro novo que Lacan tenta afirmar como essencial à teoria analítica. Aqui, se quiserem, na pergunta a Jakobson, seria do ato lingüístico que se trataria. Temos aí uma maneira de situar o quanto Lacan, um ano antes de se entregar a essa questão do ato psicanalítico, já tinha esse registro em mente. Podemos, com efeito, tentar adaptar a fórmula de Lacan ao que se refere ao ato psicanalítico: “Será que pensamos que a experiência analítica é de natureza a exigir, naqueles que ela formou, uma mudança de posição radical no nível do sujeito?”. Ou ainda, pela segunda formulação de Lacan: “Será que você pensa que a formação de um analista, sua própria análise portanto, isso engendra nele uma marca tal que seu modo de abordar todos os problemas é algo que carrega um selo absolutamente original?”. Não teríamos assim uma formulação que permite circunscrever o máximo possível a natureza desse ato psicanalítico no qual Lacan nos inicia no decorrer das quatro primeiras lições do seminário? É essa formulação que eu lhes proponho reter como uma definição possível do ato psicanalítico. Eu a indico a vocês porque essa definição me serviu de fio condutor para a leitura das lições 5, 6 e 7 desse seminário. É esse fio que eu lhes proponho então seguir, para perdê-lo, já que Lacan ressalta, durante a lição precedente, que a apreensão do saber para a psicanálise procede de um “eu perco”, no sentido em que se diz “eu perco o fio”, teremos ocasião de voltar a isso.
A resposta de Jakobson à questão de Lacan é de uma grande precisão, mas, a meu ver, ela justamente não concerne ao registro do ato. Ela nos permite situar as dificuldades que Lacan vai enfrentar para introduzir esse registro novo do ato psicanalítico. Eu cito para vocês a resposta que Roman Jakobson dá a Lacan: “É curioso que um lingüista… que isso quase não exista, que alguém se torne lingüista. Os psicólogos mostraram que a matemática, a música, são preocupações, capacidades, que aparecem na idade infantil. Se vocês lerem as biografias dos lingüistas, verão que eles já são vistos como predispostos a se tornarem lingüistas com seis, sete, oito anos. É a opinião de Saussure, de uma grande quantidade de lingüistas. O que é que isso quer dizer? Eu me permito dizer que a grande maioria das crianças sabe muito bem pintar e desenhar, mas, numa certa idade, a maioria perde essa capacidade e aqueles que se tornam pintores guardam uma certa aquisição infantil, um certo traço infantil. O lingüista é um homem que guarda uma atitude infantil no nível da língua”.
Vocês verificam o quanto a resposta de Jakobson leva em conta, com muita fineza, alguns aportes da psicanálise. Ela situa precisamente o registro comum do recalque, que vem atingir a maioria entre nós, em particular no que concerne à estrutura da linguagem. Esse recalque, Jakobson o indica com muita precisão, o lingüista é aquele que escapa aí, e é o que vem fundar seu desejo. Só que essa resposta está claramente do lado do desejo, de um traço, diz Jakobson, que já estaria ali no lingüista. É uma resposta que se situa do lado da vocação lingüística, se quiserem; ora, o registro do ato psicanalítico justamente não é esse. O ato psicanalítico situa a emergência de um saber, mas também de um desejo, dos quais nada, no depois de sua sobrevinda, permite supor que ele pudesse estar ali antes. Trata-se justamente de um saber e de um desejo novos para o sujeito. Está justamente aí o que lhe dá sua estrutura. Um ato determina um antes e um depois, sem possibilidade de voltar atrás.
É nesse ponto da novidade instituída pelo ato que Lacan vai começar a lição 5, e é esse ponto que vai constituir o eixo da lição. De fato, essas três lições, 5, 6 e 7, são estruturadas de forma bastante similar. Lacan vai, no curso de cada uma delas, propor um percurso, uma leitura do tetraedro que ele havia introduzido no ano anterior, durante o seminário sobre “A lógica da fantasia”, mas a cada vez com a ajuda de um eixo de leitura diferente. No decorrer da lição 5, Lacan aborda a noção de ato a partir do seguinte: o ato constitui um começo. A lição 6 propõe uma nova leitura do tetraedro, mas explorando as relações do sujeito e do ato. A lição 7, enfim, explora a articulação entre ato e discurso, já que um ato autêntico é justamente o que permite operar uma mudança de discurso. Então, eu não vou lhes propor uma leitura linear das três lições, mas antes uma leitura desse tetraedro ressaltando indicações que estão presentes no decorrer dessas três lições. Vocês poderão encontrar as notações que se referem ao ato enquanto começo, aquelas que vêm interrogar as ligações do sujeito e do ato e, enfim, aquelas que se referem às relações entre ato e discurso. Esse percurso deve também nos permitir circunscrever o modo como Lacan situa, no seio desse tetraedro, o saber específico que pode ser esperado de um tratamento.
Lacan inicia então a lição 5 a partir do que vai constituir o eixo dessa lição, “o ato, diz ele, institui o começo”, ou seja, um ato autêntico é sempre um ato fundador. Vocês sabem que é o momento que ele escolhe para citar o poema de Rimbaud que ele aprecia: “A uma razão”, no qual reside, ele nos diz, “a fórmula do ato”. Não vou insistir na ênfase que é dada nesses poucos versos ao termo novo (“a nova harmonia”, os “novos homens”, “o novo amor”). Esse novo amor, com efeito, é justamente o registro de um desejo novo que ele vem indicar. Um desejo responsável por modificações tais no sujeito que constitui para ele um verdadeiro começo. Lacan retomou essa questão numa fórmula particularmente concisa no início do seminário: “A psicanálise, diz ele, isso faz algum coisa”. Trata-se precisamente de saber o que isso faz com o analisante, ou seja, que marca isso imprime nele. Esse termo marca, traço, é aqui essencial. Essa marca, com efeito, é justamente marca significante e é justamente o aporte da psicanálise, a especificidade de sua prática, permitir reduzir o registro do ato a sua dimensão significante. A práxis analítica é justamente aquela que impõe essa regra ao analisante e ao analista, de se submeter unicamente ao registro significante, ou seja, abster-se de qualquer “agir” no seu campo. O analisante espera, no entanto, justamente uma subversão desse dispositivo, que é aquela que Lacan nomeia como ato psicanalítico. Esse ato, Lacan ressalta isso quando faz alusão ao registro do ato notarial, é o que é capaz de constituir uma marca, uma nova inscrição, com os efeitos de verdade que isso induz para um sujeito. Esses efeitos são o que Lacan procura circunscrever aqui, introduzindo esse novo termo, ato psicanalítico. Trata-se então de situar aí até que ponto a experiência analítica pode ter conseqüência, na medida em que ela introduz a um saber novo para o sujeito.
A questão que Lacan traz é então a dos efeitos da introdução da psicanálise sobre a subjetividade. O ato que foi o de Freud, o de estabelecer o inconsciente, o que ele chama ato2 de nascimento da psicanálise, que efeitos dele podemos situar na subjetividade? Lacan retoma, nesse momento, a formulação do cogito cartesiano, “Penso logo sou”, para indicar que o ato de estabelecer o inconsciente tem um efeito de ruptura sobre o cogito. A psicanálise faz passar do “penso logo sou” para um “ou não penso, ou não sou”. Vocês sabem que Lacan escreve essa formulação do cogito no interior dos círculos de Euler para dar conta dessa disjunção operada pela psicanálise sobre a conjunção entre o ser e o pensamento que o cogito constitui. Essa disjunção fundamental é o lugar do sujeito no início de sua análise. Eu assinalei (1) nesse lugar, no esquema do tetraedro que Lacan retoma, depois de tê-lo introduzido durante o seminário do ano anterior sobre “A lógica da fantasia”. Esse lugar dá conta da alienação fundamental do sujeito, à qual Lacan retornou várias vezes no decorrer de seu ensino. Essa alienação fundamental é que desemboca nesse esquartejamento do sujeito entre duas posições insatisfatórias, tanto uma quanto a outra, que Lacan simboliza pelos dois círculos de Euler amputados de sua parte comum. Essa alienação é também a que faz cair por terra qualquer esperança, para o sujeito, de alcançar uma formulação definitiva do que seria seu ser. O sujeito é, com efeito, irredutivelmente esquartejado entre os quatro cantos desse tetraedro que Lacan trouxe no decorrer do ano anterior e reutiliza aqui.
Eu lhes proponho retomar as quatro posições subjetivas que esse tetraedro determina, antes de examinar o que permite articulá-las. A subversão freudiana consiste em situar o pensamento, aquele do “eu penso” portanto, do lado de um pensamento inconsciente. O pensamento que caracteriza o sujeito deve ser situado, a partir de Freud, nessas formações do inconsciente que são o sonho, o lapso, o ato falho ou o chiste. É em fenômenos assim que vai se manifestar a verdade do sujeito, e é nesses fenômenos que se pode situar um “eu penso” que viria especificá-lo. Vocês sabem, no entanto, que a posição habitual do sujeito consiste em, esse pensamento que irrompeu no sonho, no lapso e no ato falho, não levá-lo em conta, em considerá-lo irrelevante em sua vida. Esse pensamento inconsciente, o sujeito é, mais freqüentemente, levado a não pensar nele.
O lugar que eu assinalei com (2) no esquema dá conta dessa posição do sujeito em que Lacan inscreve, no círculo de Euler decepado, o “eu não penso”. Essa posição subjetiva do “eu não penso” é também aquela que é indicada por Freud na última frase de seu texto sobre a denegação, quando ele ressalta: “não há prova mais forte da descoberta efetiva do inconsciente do que quando o analisado reage com a frase: Eu certamente não pensei isso”.
Vocês sabem que essa posição subjetiva se acompanha, mais comumente, na vida do sujeito, de um sentimento de falta. No dia a dia do sujeito, algo falta irredutivelmente a sua vida, e esse sentimento é certamente o que mantém seu desejo desperto. Essa falta é evidentemente ligada ao fato de que, na posição subjetiva do “eu não penso”, o sujeito deixa de lado essa dimensão do pensamento inconsciente, esse lugar que Freud especificou com a fórmula “wo es war soll ich werden”: “ali onde isso era(estava) eu devo advir”. É por isso que Lacan situa nessa zona o lugar da falta, a do objeto a, causa do desejo.
Certamente, ao lado dessa primeira posição subjetiva, o sujeito dispõe de uma outra possibilidade, que consiste, se ele está em análise, em tentar levar em conta a verdade inconsciente que se manifesta nessas formações do inconsciente. Ou seja, ao se submeter a esse efeito de verdade, o sujeito pode tentar defrontar-se com o pensamento inconsciente que se revelou aí. Esse esforço leva o sujeito a uma nova decepção. O resultado dessa operação não é que nesse “eu penso, eu sou(estou)”, mas ele redunda, principalmente, nos diz Lacan, num “ali onde eu penso, eu era(estava)”, nesse emprego específico do imperfeito que a língua francesa permite, lembrado por Lacan, que é o de: “mais um instante e o trem descarrilava”. Esse instante depois é uma virtualidade, ou seja, na prática o trem nunca descarrilou. Pois bem, esse “ali onde eu penso, eu era(estava)” é do mesmo registro, é um “ali onde eu penso, eu ia ser(estar) ali”, mas o simples fato de pensar nisso fez escapar essa possibilidade de ser. Para ser(estar) ali como inconsciente é preciso ainda que eu não o pense como pensamento, pois ao pensá-lo eu já não me encontro mais aí, ou seja, eu não sou(estou) aí. É o lugar, assinalado (3) no esquema, que corresponde ao segundo círculo de Euler amputado, aquele do “eu não sou”.
Vocês verificam que, nesse esforço de agarrar o pensamento inconsciente que se manifestou nessa formação do inconsciente, o sujeito não se reencontra aí inteiramente, ou seja, ele tem a impressão de que nessa operação algo se perdeu. “Ali onde isso era(estava)”, ou seja, ali onde se revelou uma verdade inconsciente, “eu não sou(estou) ali”, eu devo ter perdido algo no caminho. É aqui que encontramos a indicação de Lacan que eu lembrava há pouco, segundo a qual a apreensão do saber durante a análise procede de um “eu perco o fio”. É por isso que Lacan situa aqui o registro da perda, inerente a esse esforço do sujeito em se por de acordo com essa mensagem que ele recebe do Outro. É esse acordo impossível com o Outro, já que irredutivelmente marcado por uma perda, que Lacan assinala (-fi), indicando que essa perda tem tudo a ver com a castração, o que ele ressaltou no ano anterior indicando que “não há ato sexual”. Não há ato que permita ao sujeito realizar-se inteiramente no que constituiria um acordo definitivo com o Outro, particularmente com o Outro sexo.
Esse esforço do sujeito, para encontrar-se com o pensamento inconsciente que se manifestou nessa formação do inconsciente, redunda então num “eu não sou”, e só pode conduzi-lo a retomar sua posição inicial, a de um “eu não penso”, assinalado (2), onde ele reencontra um semblant de ser. É o lugar que Lacan chama de “falso ser”, ressaltando: “Nunca se está tão sólido em seu ser quanto quando não se pensa”. Esse retorno obrigatório à posição inicial do sujeito é um constrangimento estrutural que dá conta da escolha forçada que é a da alienação do sujeito. Esse lugar do “eu não penso” permite também a Lacan situar com rigor o lugar da resistência no tratamento, na medida em que, ele especifica, essa resistência é resistência do discurso e não do sujeito. Esse rigor trazido à função da resistência invalida a possibilidade de uma análise das resistências, tal como ela pôde ser promovida como etapa necessária do tratamento por certas correntes analíticas.
Situamos então três dos quatro lugares desse tetraedro. O lugar do “ou eu não penso – ou eu não sou”, (1), que é o do sujeito no ponto de partida da análise. O lugar do “eu não sou”, (3), o do sujeito que se submete a um efeito de verdade, não se encontra aí inteiramente, não completamente, em seu esforço de recuperar o pensamento inconsciente que se manifestou numa formação do inconsciente. Enfim, o lugar do “eu não penso”, (2), esse retorno obrigatório ao qual o sujeito é constrangido. Esse constrangimento é estrutural, Lacan insiste nisso, não há outra posição sustentável de maneira duradoura para o sujeito. A análise levada a seu termo deixa intacto esse constrangimento que é o da escolha forçada da alienação e situa o sujeito no círculo de Euler do “eu não penso”, decepado por uma falta.
O trabalho analítico pode, no entanto, permitir esclarecer de modo diferente essa posição obrigatória do “eu não penso”. É o que Lacan indica por meio da quarta posição do tetraedro, assinalada (4) no esquema. A análise, ressalta Lacan, leva o sujeito do “eu não penso” a realizar algo da ordem de um pensamento do “eu não sou”. Trata-se, nos diz ele, de demarcar que há dois “ali onde isso era/estava”. Um é tomado no registro do que falta à existência, o outro está ligado ao registro da perda inerente a toda busca do saber inconsciente. O sujeito é levado a relacionar esses dois “ali onde isso era”. Ou seja, ele pode ser levado a situar que o que falta a sua vida está intimamente ligado a essa perda cujo caráter irredutível ele pôde identificar. “O sujeito, diz Lacan, deve se colocar na conseqüência dessa perda para saber o que lhe falta”. Esse saber esclarece de modo diferente, para um sujeito, a posição do “eu não penso”. O sujeito pôde, por meio desse trajeto, reconhecer a necessidade estrutural dessa posição marcada pelo sentimento de uma falta. Em outras palavras, ele não é sem saber que, como sujeito, ele só existe por essa falta que é a do objeto a. É por isso que, nessa quarta posição, Lacan desloca o objeto a para inscrevê-lo no lugar que era inicialmente o do “eu não penso”.
Essa escrita é uma primeira indicação de Lacan a respeito do que pode ser esperado de um trabalho analítico quanto a uma modificação da posição de um sujeito. Eu gostaria de ressaltar, antes de ir adiante, que essa modificação situa justamente a possibilidade de um saber que concerne à função do objeto a.
Tentei, portanto, dar conta da disparidade desses quatro lugares determinados pelo tetraedro, e da especificidade de cada um deles. Gostaria agora de examinar a maneira como Lacan vai dar conta de sua articulação. Esses quatro lugares são, com efeito, articulados entre si por três operações que Lacan nomeia como alienação, verdade e transferência. Essas três operações determinam, nos diz Lacan, um grupo de Klein. Sem retomar aqui em detalhe a estrutura de um grupo de Klein, tal como ele é definido pelos matemáticos, pode-se dizer que não é possível atribuir a esse tetraedro a estrutura completa de um grupo desse tipo. Certas operações, ou seja, certas passagens de um lugar a outro, parecem impossíveis nesse tetraedro, ao passo que é a circulação perfeita entre seus diferentes lugares, permitida pelas três operações que o determinam, que define em matemática o grupo de Klein. Parece-me possível indicar que é justamente essa passagem impossível de certos lugares a certos outros que determina a estrutura no sentido da psicanálise, como Lacan a entende, ao passo que o que define um grupo de Klein em matemática é a possibilidade de uma circulação perfeita entre todas as posições.
Essa indicação de Lacan, essa analogia com o grupo de Klein, pode no entanto nos ajudar a não tomar esse tetraedro de um modo esquemático demais, ou seja, o de uma representação, de um planeamento, ao qual nos constrange nosso modo habitual de pensar. Um tal planeamento poderia levar a uma esquematização do próprio tratamento, um tratamento-tipo congelado no seu desenrolar e em suas etapas sucessivas, concepção sempre criticada por Lacan durante seu ensino.
Uma representação nas três dimensões do espaço, como é proposta aqui, é uma primeira maneira de se distanciar dessa esquematização excessiva que o planeamento do tetraedro poderia sugerir.
A função desse tetraedro, a meu ver, é então propor quatro posições subjetivas distintas articuladas entre si por três operações diferentes. Digamos que temos, com esses quatro lugares e essas três operações, algo como a bateria mínima que permite dar conta da alienação fundamental do sujeito e da possibilidade de que haja ato psicanalítico.
Quanto às três operações que estruturam o tetraedro, já descrevemos a operação de alienação e a operação de verdade. A terceira operação, aquela que concerne à função da transferência, é essencial aqui por vir esclarecer especificamente a questão do ato psicanalítico. A questão insistente que constitui o eixo da lição 5 concerne, eu lhes disse, ao ato enquanto começo. Trata-se, para Lacan, de poder situar o que pode permitir, no início de cada tratamento, que haja análise. Se justamente é o ato que institui o começo, deve haver um ato no início de cada análise que permita que se estabeleça, que comece o processo analítico. “Começar uma análise certamente é um ato, mas esse ato, quem o faz?” questiona Lacan. Ele dá a resposta da maneira mais clara: esse ato depende primeiramente do analista. O analista é que, vindo marcar essa disjunção entre o “eu não penso” e o “eu não sou”, situa os lugares que determinam a alienação fundamental do sujeito. Então, é justamente o analista que vai permitir o estabelecimento do dispositivo necessário ao processo analítico, ou seja, ele é que institui, no início de cada tratamento, a possibilidade de que haja análise.
Esse ato, em que o analista instaura o fato de que possa haver análise, trata-se de saber do que ele depende, ou seja, o que o garante. Uma primeira resposta se impõe, a garantia que o analista oferece, da possibilidade de que haja análise, ele a tira de sua própria análise, ou seja, esse ato aconteceu para um analista no final de sua própria análise. Mas esse momento inicial da análise, pelo qual um sujeito aceita levar em conta sua divisão, entre esse “eu não penso” e esse “eu não sou”, vocês sabem que ele só pode se dar por meio da suposição de um saber naquele ao qual ele se endereça quanto à causa dessa divisão. Em outras palavras, esse sujeito não pode saber nada do que se aprende na experiência analítica senão por meio da instalação da transferência.
A simples instalação da transferência não poderia, no entanto, garantir em si mesma a especificidade do ato analítico. A suposição de um saber no outro, ou seja, a instauração de relações de transferência, constitui bem mais o comum de nossas vidas. Deve então haver, nas modalidades com as quais um analista aceita a transferência, um vestígio desse saber vindo de seu próprio tratamento, que garante sua especificidade. Ou seja, deve haver, no ato que inicia uma análise, algo que já determina seu fim, nos dois sentidos que esse termo pode tomar aqui. Esse saber, vindo do tratamento do analista, e que é capaz de assegurar a especificidade do ato psicanalítico, nos diz Lacan, concerne ao destino do sujeito suposto saber.
O desvelamento, no curso do trabalho analítico, de qualquer saber novo, pode, com efeito, dar oportunidade ao analisante de levantar a questão: esse saber, havia realmente alguém que o sabia antes? O grande aporte da psicanálise é, sem dúvida, permitir reinterrogar o que parecia até então uma evidência: nenhum saber sem sujeito. A psicanálise, nos diz Lacan, conduz a “esse tipo de impensável que situa no inconsciente um saber sem sujeito”. Cada desvelamento de um novo saber durante o tratamento oferece a um sujeito a possibilidade de verificar que, esse saber tão surpreendente que acaba de emergir, ninguém mais senão ele mesmo poderia ter acesso a ele. Daí se deduz, logicamente, uma queda desse sujeito suposto saber, que no entanto tinha sido indispensável à instalação do processo analítico. Essa suposição, então, embora tendo sido necessária, revela-se falsa. O processo analítico leva à queda do sujeito suposto saber em benefício da função do objeto a, na medida em que ele se revela a verdadeira causa do desejo do analisante. É por isso que Lacan indica que o vetor da transferência, aquele que conduz o sujeito de seu lugar inicial àquele em que o objeto a é identificado em sua função estruturante enquanto tal, é também o do ato psicanalítico. Esse saber, ao qual o analisante é conduzido no fim de seu tratamento, forçosamente tem consequência no momento em que ele, como analista, faz-se suporte da transferência. “O ato psicanalítico, nós o afirmamos ao suportar, aceitar a transferência”, diz Lacan, mas esse ato é um ato “em falso”, precisa ele. O analista que consente em encarnar o sujeito suposto saber não é sem saber que essa suposição necessária está fadada a se revelar falsa. É, nos diz Lacan, “um sujeito suposto saber falsificado” que o analista encarna.
Nessa lição 6, que interroga sem cessar o que une o sujeito e o ato, Lacan indica então que é por uma destituição do sujeito suposto saber que se instaura o ato psicanalítico. Essa destituição mantém no lugar do sujeito suposto saber apenas a função do objeto a, esse “resto da coisa sabida”. É o segundo ponto indicado por Lacan com relação ao saber específico que é possível esperar de uma análise. Como aquele que realçamos há pouco, é notável que se trata de um saber que concerne à função do objeto a.
O analista, porque experimentou isso no curso de seu próprio tratamento, não é, então, sem saber que os efeitos do ato analítico conduzem aquele que suporta a transferência a se encontrar destituído de sua posição de sujeito para se ver reduzido à função de objeto a. Esse lugar é justamente o de refugo, de dejeto, do que deve ser irredutivelmente rejeitado. É por meio desse último ponto que Lacan ressalta aquilo que o ato psicanalítico, em sua especificidade, permite esclarecer do estatuto do ato enquanto tal. Todo ato autêntico, com efeito, redunda automaticamente, na vida de um sujeito, numa destituição, mais frequentemente transitória, de seu estatuto de sujeito, em prol dessa posição de objeto a, que é fundamentalmente uma posição de ejeção do registro social. É nessa rejeição estrutural, nessa destituição da posição de sujeito que só o ato analítico permite isolar, que Lacan situa a especificidade de todo ato autêntico.
________________________________________________
1 Tradução: Sergio Rezende – Publicado no Bulletin de l’ALI no 114 – Outubro de 2005
2 NT – Em português, o termo usual é certidão ou registro de nascimento; em francês, o mesmo termo, acte, designa ato e ata (registro, certidão.)