Charles Melman
Intervenção em 17 de dezembro de 2011 em Roma, por ocasião da jornada preparatória do Seminário de inverno de 2012
Eu aprecio muito as comunicações dos senhores que são – como dizer – absolutamente clássicas, sobre a questão do fim da análise. Os senhores veem, achamos sempre que somos especiais, originais; achamos sempre que falamos a partir de nossa experiência singular e, no entanto, dizemos sempre a mesma coisa. Se é verdade que dizemos sempre a mesma coisa, isso mostra bem que há, em algum lugar, uma lei e a questão é saber se podemos nos informar sobre essa lei. Não para burlá-la – porque nós gostamos muito de burlar a lei – não para burlá-la, mas para nos permitir talvez estar um pouco mais informados sobre o que dizemos, sobre o que fazemos e sobre a maneira de sustentar nosso lugar enquanto analistas.
Há uma grande força na vida social: é a polícia do pensamento. Cada um, sem saber, faz a polícia do pensamento do outro e o convida a estar conforme com o pensamento comum. Antes de encontrar um analista, os senhores tiveram numerosos encontros sociais: os pais, os amigos, os professores, os padres, os filósofos, e todos lhes responderam no sentido de fazer a polícia, isto é, lhes deram conselhos. Conselhos de quê? De ter um gozo conforme, o gozo que convém. Pouco importa que esse gozo os satisfaça ou não, mas é preciso que seja o gozo partilhado que constitui o valor reconhecido no grupo social. Quando você encontra um psicanalista pela primeira vez, não é um pai, não é um amigo, não é um conselheiro, não é um padre, não é professor. Então é o quê? É alguém que – por seu silêncio – tem uma função, que é deixá-lo, pela primeira vez no mundo, tomar conhecimento do que é seu próprio desejo. E ele faz isso a partir de um lugar que é o lugar do grande Outro, onde não há nenhuma prescrição quanto ao desejo. Então, os senhores veem a originalidade absoluta da situação.
A descoberta de Freud é que o sintoma neurótico ou psicótico está ligado a uma defesa contra o desejo singular. Se você pega por exemplo o caso de Dora, você vê muito bem que o que Freud recomenda a Dora para curar seus sintomas histéricos é aceitar seu desejo de mulher. E ele supõe que seu desejo de mulher deva ser um desejo heterossexual e que seu futuro é viver com aquele que a ama e realizar o que até aqui ela recalcou. Os senhores veem que em Freud o meio de curar sua neurose é realizar seu desejo, mas em conformidade com uma ordem que vamos chamar de “patriarcal”, que é que a realização de seu próprio desejo só pode ser perfeita aceitando a lei do pai, isto é, para uma mulher, fazer casal com um homem e ter filhos. E seguir o percurso conforme com a ordem moral e social. Quando Freud diz Wo es war soll Ich werden, isso quer dizer que o lugar de onde eu falo deve estar conforme com o lugar de meu desejo, e ele coloca como princípio que esse desejo está sempre ligado à ordem paterna. É por isso que Freud foi atacado pelas feministas e também por aqueles que põem em questão a ordem paterna, isto é, também a ordem fálica.
Quando os senhores observam o funcionamento das sociedades psicanalíticas ou quando leem nos livros a história do movimento psicanalítico (seja em torno de Freud, na história da psicanálise londrina, ou na história da Escola de Lacan), o que é que os senhores constatam? A guerra, a confusão, a desordem, os antagonismos, as paixões, as denúncias, a desqualificação do que chamam de heterodoxos. Então, os senhores se perguntam: mas será que o fim de uma análise, será que a vida mental e social dos psicanalistas é apenas, para cada um deles, afirmar aquilo a que chegaram no tratamento, isto é, a afirmação de seu próprio desejo, e a partir desse momento na vida social assistimos à guerra entre egos, cada um convencido de sua legitimidade? E então, entre eles há um ou uma que tem carisma, isto é, que tem o talento de fazer uma reunião coletiva em torno de sua própria fantasia, isto é, de seu próprio desejo, e nesse momento nasce uma escola. Não é engraçado. Não é engraçado, se é verdade que o limite, o finito de cada psicanálise é o reconhecimento pelo analisante do que é seu próprio desejo, isto é, do que é o objeto de sua fantasia e que, a partir desse momento, ele afirma o limite de todo pensamento (e em primeiro lugar do seu) e o caráter irredutível dos seus conceitos. Então, questão que lhes é colocada e que, aliás, os senhores colocam: será que está aí o limite e o fim de uma psicanálise? Ou seja: antes da psicanálise o sujeito era o servidor de um ideal que habitualmente o levava a recalcar seu próprio desejo para colocar seu desejo a serviço do ideal, e o que seria o fim da análise seria que agora ele teria se tornado o servidor não mais de um ideal, mas de um objeto, o de sua fantasia. O que é que nós pensamos disso?
J. JERKOV: De todo modo, é uma fantasia que foi despojada do que a vestia.
CH. MELMAN: Não exatamente. Não, porque esse objeto causa da fantasia é determinado pelo Um do ideal, portanto ele continua vetor desse Um que o causou.
Então, pode-se também, numa sociedade analítica, resolver a dificuldade, como em todos os grupos sociais, atribuindo-se um texto de referência – aquele que o grupo escolheu. Não se está obrigado a se precipitar imediatamente na direção de Freud ou Lacan. Pode ser Melanie Klein, pode ser Winnicott, pode ser Bion, pode ser Balint, pode ser Ferenczi, é o que não falta, hein? E a partir desse momento, cada um dos participantes ou procura por seu desejo singular de acordo com a conceituação do autor, ou então seu desejo pessoal fica sendo o que cai da teoria que ele adota e – se ele é leal consigo mesmo – ele se torna um dissidente. Que história!
Todos aqueles com que lidamos são de certo modo pessoas de boa vontade e até mesmo, muitas vezes, inocentes, porque não sabem quais são os mecanismos que estão em causa. Não são todos perversos. Então, será que nós conhecemos melhor os mecanismos que estão em causa? Porque não podemos mais falar como Freud, como Ferenczi, como Winnicott ou Lacan: eles respondiam aos problemas de Seu tempo, mas nós… nós temos que responder com os problemas de nosso tempo, isto é, aqueles que foram causados pela elaboração deles. Se eu quero ser fiel a Lacan, não é forçosamente repetindo Lacan. Lacan não é o fundador de uma religião, mas o fundador de uma maneira de pensar e dos mecanismos gerais do pensamento, isto é, de nossa relação com a linguagem. Então, considerando o ensino de Lacan, como é que eu julgo hoje o fim da análise?
Quando Freud levanta a questão em termos de finito e infinito, surge na mente de cada um imediatamente a dimensão matemática. Porque os conceitos de finito e infinito vêm da matemática. O finito quer dizer que há um limite, uma fronteira, e que, para além, há o que Lacan chama de Real. Isto é, o que o Begriff, o conceito, não pode esgotar, quer dizer que a propriedade da linguagem é estabelecer um Real que a própria linguagem não pode cobrir, esgotar, fazer um círculo fechado. Tem-se aí um sistema absolutamente homogêneo com todas as escritas formais, pois a lógica chegou à mesma conclusão: num sistema há ao menos uma questão à qual o sistema não pode responder – é o teorema de Gödel – a lógica invoca uma metalógica, isto é, o sistema que poderá responder à questão deixada aberta pela escrita precedente. Mas essa metalógica tem, ela mesma, uma questão que em sua própria escrita ela não pode responder, então não há jamais a última palavra. Quando havia discussões, Lacan nunca buscava a última palavra, ele nunca procurava ter… a gente diz assim: “ter razão”. “Eu é que tenho razão!” – isso quer dizer: “eu é que tenho a última palavra”.
Cada um dos senhores teve inúmeras discussões em nome da razão. Por que será que nunca chegamos a concluir numa razão comum? Por que é que cada um tem a sua e por que será que se coloca nessa discussão todo o seu peso, toda a sua existência, não se pode absolutamente renunciar a sua razão? Os senhores veem que o que chamamos de “a razão” tem sempre relação com o que em cada um é sua fantasia. Ou seja, ninguém pode renunciar a seu próprio gozo. Será que num fim de tratamento um sujeito pode renunciar a seu próprio gozo? Será que é o objetivo do tratamento? E se seu próprio gozo é perverso, será que ele pode renunciar a sua perversão? Por que é que há identificação ao sintoma? O sintoma não é nunca senão a modalidade de seu próprio gozo. O sintoma dá o sentimento de que, graças a ele, eu existo.
Uma história banal. Uma paciente, uma jovem, cuja sintomatologia está toda ligada a uma história muito simples, elementar: uma irmã mais velha que é a amada e a preferida do pai. E ela mesma… como se, ou não a viam, ou denunciavam o tempo todo suas insuficiências, sua burrice, sua feiúra, etc. etc. Por toda a sua vida ela vai reproduzir esse sintoma em todo o seu trabalho, suas relações sociais, suas relações amorosas: identificação a seu sintoma porque para ela é a maneira de existir. Será que o tratamento pode vir a fazê-la existir de outro modo? É uma questão à qual os psicanalistas não respondem facilmente, mas é uma questão que merece ser levantada. Será que o que é encontrado com esse problema é o limite de seu tratamento, o limite da análise? Ou será que há uma possibilidade de lhe dar acesso a uma lei geral que mostre a ela – vamos nos exprimir de maneira imajada – que se trata de um falso furo, isto é, um furo que lhe permite viver, mas que a linguagem lhe dá a possibilidade, lhe faz a oferta de ter outras relações com o Real que faz furo? O finito é também o que dá à linguagem seu sentido habitualmente sexual, habitualmente. Porque há um finito de que se fala raramente, é o finito traumático, o traumatismo pode introduzir para um dado sujeito uma dimensão de finito, que faz com que esse traumatismo torne-se a fonte de um automatismo de repetição. Como para a minha paciente. Esse finito é o que foi chamado em nossa cultura de “o rochedo da castração”. É esse finito que faz com que Freud decifre a libido como sendo o significado da palavra. Há finito e então um Real, e esse Real é habitado pelo sentido sexual, diz Freud. Ele é habitado pelo sentido sexual na medida em que há um Nome-do-Pai. É o Nome-do-Pai que dá seu sentido sexual ao Real. E essa famosa história de Édipo, seria preciso saber se ela é dirigida contra o pai que está em casa ou contra o pai que é a instância Uma presente no Real, e na medida em que essa instância Uma é o suporte do significado sexual. Porque o pai de casa é apenas o representante dessa autoridade ao-menos-Uma no Real (que introduz na vida doméstica esse significado sexual escondido). E que, como todo significado sexual, implica uma privação do objeto causa da fantasia. Continuamos aí na dimensão do finito.
Mas esse objeto causa da fantasia está ligado a uma ordem que por si mesma é infinita. A dimensão do grande Outro: se a representamos, por exemplo, pela sequencia dos números reais, é uma sequencia infinita. É a sequencia dos números que está entre 0 e 1. Entre 0 e 1 há uma sequencia de números”0,” e – depois da vírgula – toda a série que quiserem. Eu posso escrever 0,999999….. o quanto quiserem, não chegarei nunca – partindo do 0 – a encontrar o 1. Haverá sempre algo que vai faltar para chegar a fazer 1. Eu me sirvo desse suporte matemático para imajar. O que vai sempre faltar vai ser então um objeto real (já que é uma cifra que falta) e que é ao mesmo tempo uma pura falta – isso para responder à questão de agora há pouco sobre a letra, isto é, de que maneira a letra é um suporte real e no entanto uma pura falta1. Pois essa falta no grande Outro não é a última palavra, mas é a letra que viria dar sentido ao conjunto inscrito no grande Outro. Eu lhes disse há pouco que, quando o paciente vem ao analista, ele vem consultar um lugar onde não há última palavra, não há última letra. A partir de então, na prática do tratamento, a questão é a seguinte: até onde quer ir o analisante e o que é que o próprio analista quer e pode suportar? Porque o analista também pode, às vezes, – como direi? – ser sensível à polícia do pensamento e a que o gozo deve ser conforme com as regras sociais, ou ele pode estimar que o gozo só é bom em certas condições e não em outras. Será que Lacan ficava completamente neutro? Não. Isso é que era estranho. E para o analisante dele era muito curioso tentar situar o que para ele era indicação de um limite. Não creio que já haja artigo ou estudo sobre o que ele pensava ser o tipo de recomendação que ele fazia ou não.
Os dois grandes valores sociais são conhecidos desde sempre, desde a Antiguidade: as honras e o dinheiro. Ainda não se inventou nada diferente. Será que no campo da psicanálise vai-se recomendar ao paciente esses grandes valores sociais que são as honras e o dinheiro, ou o dinheiro ou os dois (é melhor os dois!). Alguém de vocês citou o que Freud escrevia a Jung (foi você Johanna?): é que eram valores que não interessavam a ele. Mas então, se se quer curar alguém, o que é que se lhe vai recomendar como valor? O que é que a psicanálise introduz? Ela introduziu novos valores? Mas sim, isso é que é estranho. Não se deve dizê-lo demais, mas sim, ela os introduziu.
Os senhores não se serviram, para falar do fim da análise, dos quatro discursos. Vocês conhecem essa escrita de Lacan do discurso psicanalítico, é uma audácia que não tem nenhum precedente na cultura. Se é verdade, é extraordinário. O que é o discurso psicanalítico? Ele não lhes diz que é um discurso que é melhor que o discurso do Mestre ou que o discurso científico ou o discurso Histérico. Vocês sabem o que é um discurso. Quer dizer que, quando falamos, não é possível estabelecer um laço entre nós senão com a condição de fazer operar um desses discursos, que é esse discurso que faz o laço social. Por que é que as pessoas se mantêm juntas? É um enigma. Por que é que elas vão procurar umas às outras? Pois bem, seu encontro passa forçosamente por um desses discursos. E o que Lacan afirma é que a psicanálise é uma invenção que é o reconhecimento do que já é um efeito presente na língua, na palavra, e que foi Freud quem descobriu esse efeito que é um efeito de linguagem. Quando você fala, qual é o referente no qual sua palavra se autoriza? É sempre o Um, um Um. Pode ser aquele do discurso do Mestre, pode ser o do discurso do saber, pode ser o do discurso Histérico. Uma histérica se refere sempre ao Um, que ela deve enfim fazer aparecer, existir – é sempre o Messias, o Salvador que ela deve fazer aparecer no mundo, o grande Curador – de tal modo que no discurso há sempre um lugar que é o lugar do Mestre ao qual todo locutor se refere. Pois bem, o que é introduzido pela linguagem é que o que pode vir a esse lugar instalado pelo Mestre é esse objeto que é o objeto de dejeto, o que o discurso do Mestre implica como rejeito, aquilo a que ele recusa a Bejahung, ele diz “Não! isso não”.
Nos discursos, esse objeto pode vir ao lugar do Mestre e comandar a palavra do sujeito, do locutor, e esse objeto é aquele mesmo de sua fantasia, do que faz a fantasia do sujeito. O discurso psicanalítico é aceitar, para o clínico, ocupar essa função de representar esse objeto, e de tal modo que a transferência possa passar desse ao-menos-Um inaugural ao reconhecimento desse objeto que comanda seu desejo e que é o objeto pequeno a. Mas, diz Lacan, a resistência está no psicanalista, porque ele não quer cair, isto é, permitir ao sujeito reconhecer que o que o comanda não é nada mais do que esse objeto de sua fantasia, esse dejeto. Alguém na cultura jamais ousou por isso em evidência, em relevo? Com que consequências?
No caso do discurso psicanalítico, o que era inicialmente o finito e que dá a certeza do conceito (porque, uma vez que o mundo está decidido, não há nenhum obstáculo a que o conceito possa dar conta perfeitamente do Real com o qual eu lido, eu entro no domínio da certeza. “Eu sei como tratar o Real. Meus conceitos são os mestres do Real”: é isso o discurso do Mestre), o que era o Mestre revela-se não ser um significante, não ser o conceito, é o puro elemento literal enquanto ele falta no campo do Outro para vir dar o sentido último que responderia a minha questão. E o que me comanda é um puro furo.
E é aí que se abre a justa dimensão do infinito. O que Lacan chama de lalangue em uma única palavra. Por que lalangue escrita em uma única palavra? Isso lhes mostra que o conceito não vem de um corte imposto pelo Mestre, mas que seu corte é aleatório na cadeia sonora e que ele é comandado antes de tudo pela questão do gozo que é aquilo a que o grande Outro não pode dar a última palavra.
Agora há pouco, F. Gambini perguntava por que é que não seria ao acaso: pois bem, a afirmação de Lacan quanto a isso era que a nomeação, isto é, a determinação dos conceitos que no Pentateuco é dita ter sido feita por Adão, o primeiro homem – afinal, no mito religioso por que é que não é Deus que procedeu à nomeação? Não, foi Adão! – e Lacan diz algo que os senhores não compreendem, ele dizAdam (ou melhor, Adame). Por que Adão? Por que ele está no lugar do grande outro, o que faz com que o conceito já seja habitado por essa questão do gozo que é a grande questão que o sujeito coloca para o grande Outro, e que o conceito que o sujeito estabelece já seja construído a partir dessa questão que ele coloca para o grande Outro. Então, Lacan diz: cada língua tem sua inteligência própria e quando vocês fazem uma tradução vocês perdem essa inteligência própria à língua.
Quando você fez a pergunta, Gambini: “Por que não por acaso?” em pensei em uma palavra da língua francesa e você vai me permitir a grosseria para a qual eu vou chamar sua atenção. Há uma palavra francesa, talvez seja a mesma palavra em italiano: “concupiscence”. Em francês, você tem “con2“, você tem “cu-3“, você tem “pisse4” e felizmente no fim você tem a “science5”! é um acaso. Mas, quando você escuta seus pacientes, você vê muito bem que não há esse acaso e que nos conceitos que seu paciente vai escolher haverá o que é a verdade subjetiva do paciente, você vai ouvi-la. Será que o acesso à análise infinita (isto é, o fato de que é preciso um limite, mas que é graças a esse limite que a dimensão do infinito vai veicular a interrogação sobre o “Che vuoi?”), será que é terapêutico? Lacan variou quanto a isso. Ele não tinha a verdade diante dele e aí ele ia assim fornecê-la a seus alunos e ele evoluiu. Quando ele fez a operação do passe, ele optou pela análise enquanto infinita, isto é, o sujeito reconhece que o objeto de sua fantasia não é a resposta última vinda da ordem do mundo, que era sua resposta singular, mas que não era uma resposta universal e que não era a última palavra. E aí ele reconheceu: há o fracasso do passe.
Eu não lhes conto todas as peripécias que a instalação desse júri do passe causou [murmurinho na sala]. Eu não lhes contei? Ah, é um filme que vocês perderam…
Era outubro de 1967. Isso se passava no hospital Sainte-Anne. E é divertido porque habitualmente a única grande sala disponível em Sainte-Anne era a capela, mas naquele momento a capela estava em obras, então a reunião aconteceu nos subterrâneos de Sainte-Anne – vocês veem que o destino nos era favorável – e Lacan leu sua Proposição de 9 de outubro de 1967 sobre o passe. Estava lá todo o estado maior da École Freudienne, ou seja, uma reunião de egos – que era gente respeitável e honrada, gente inteligente. E também havia alunos, havia Lucien Israël e quando Lacan leu sua Proposição, da parte dos brilhantes alunos, foi a bronca6. Foi a revolta, inclusive da parte do nosso caro amigo – pois eu gostava muito desse rapaz – Lucien Israël e isso foi a origem da cisão futura. E eu me lembro de um insulto de um rapaz brilhante que se chamava Guy Rosolato, que lhe disse: “Em suma, agora, o psicanalista vai ser o pastor do dés-être7!” Porque em Heidegger o papel do filósofo é ser o pastor do ser. O pastor do des-ser! Não é engraçado isso, porque o rebanho não é muito numeroso, a prosperidade do pastor é ter um grande rebanho…
E aí aconteceu de eu ser eleito para o júri do passe – foi um acidente, eu lhes asseguro – e então eu assisti o funcionamento desse júri e logo de saida eu não fiquei satisfeito porque a maneira de apreciar os candidatos ficava muito incerta. Em primeiro lugar havia candidatos que tinham uma posição social na Escola e que não podíamos recusar, havia aqueles que tinham seus alunos e que era preciso absolutamente nomear e a maior confusão reinava nos espíritos. Ou seja, a questão que vocês levantaram durante a manhã: “O que é um fim de análise?”, era inteiramente incerta para a elite que estava ali reunida, enquanto o candidato ao passe se abria inteiramente, ele contava sua história com uma sinceridade, uma autenticidade notáveis e os juízes entregues completamente a suas pequenas questões – sociais, pessoais, etc. E Lacan não dizia nada. Não se deve crer que Lacan falava nesse tipo de reunião…
J. JERKOV: Para Lacan, o passe dizia respeito unicamente àqueles que acreditavam ter terminado sua própria análise. Não era todo mundo, então, mesmo se nós sabemos muito bem que no início do passeas pessoas concernidas não eram exclusivamente aqueles que tinham acabado de completar seu percurso analítico. Hoje, os candidatos, trata-se de pessoas que acabaram de completar uma análise ou não?
Ch. MELMAN: Em geral eles acabam de completar uma análise.br>
A. MELE: Pode-se fazer o passe durante sua própria análise?
Ch. MELMAN. Teoricamente o passe é o momento em que o analisante estima que está no fim de seu percurso.
J. VENNEMANN: Aconteceu com Israël, num de seus seminários, de dizer que o passe era um sintoma de Lacan.
CH. MELMAN: É verdade, não é idiotice. Um sintoma de Lacan porque Lacan não queria parar no bom senso do conforto cotidiano. Será que o conforto cotidiano faz a minha felicidade e a finalidade última da minha existência? Pode-se responder: “Sim. O que eu quero é o meu conforto, meus pequenos hábitos, minhas satisfações sexuais. E que não venham me perturbar. A partir do momento em que eu achei meu conforto está tudo bem”. A filosofia dele não era essa. Ele não fazia a psicanálise entrar no campo do utilitarismo – uma doutrina que considera que no fundo nada vale se não for útil. Não era a doutrina dele. Então, aí também, é preciso tentar dizer por quê.
J. VENNEMANN: O útil e o gozo não andam juntos.
CH. MELMAN: Não andam juntos… Pode-se viver no útil, como você sabe, Johanna. As culturas do útil e do instrumento ao mesmo tempo… Será que isso serve ao gozo (porque o instrumento serve). Será que isso serve ou desserve ? Não digo que seja uma sobremesa8. Será que desserve? Tudo isso são questões que foram abertas graças a ele. Quando eu trabalhava come ele, eu não percebia toda a dimensão do que ele trazia. E ele sabia. Ele cobria um campo considerável que não era somente matemático, literário, filosófico, científico… Seus alunos tinham campos de especialização muitas vezes muito… muito estreitos. Lacan sabia, mas ele não se queixava disso. É a realidade. Faz parte da maneira pela qual nosso ensino é feito. Nosso ensino nunca buscou nos tornar inteligentes. Algum de vocês se tornou inteligente por esse ensino?
POSTÂMBULO
O fim do tratamento pode deixar-lhes a escolha: o comprovado do limite que o finito impõe, ou seja, a positivação estúpida que lhes faz dizer a respeito do Real que o bordeja: é isso com certeza, ou então a viagem sem limite numa rede em expansão, entre elementos quaisquer que torna equivalente o caráter aleatório de seu sentido, outra estupidez, portanto: nunca se pode saber.
Essa bipartição dá conta da divisão das sociedades psi entre espontaneistas, fantasistas ou iluminadas e os cinzentos dogmáticos – Ferenczi contra Freud. Mas os lacanianos e em particular os da ALI têm sorte: eles têm o direito de verificar que é preciso finito para aceder convenientemente ao infinito, ou seja, esperar mais do casamento deles.
Veremos com essa jornada se “casêmo-los” pode se tornar divisa, já que a relação não pode se escrever entre eles.
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Tradução: Sergio Rezende
1 Ch. Melman se dirige a Michela Marino que tinha levantado a questão de saber como era possível que uma letra pudesse ao mesmo tempo ser pura falta e suporte do Real.
2 NT – babaca
3 NT – homófono a cul – bunda
4 NT – do verbo pisser – mijar
5 NT – ciência
6 Nas arenas espanholas, quando se quer matar o touro e o toureador não está à altura, há um protesto coletivo : a bronca.
7 NT – des-ser; no original há certa homofonia com désert (deserto).
8 NT – No original, dessert (‘desserve’ e também ‘sobremesa’)