Seminário de verão 2008
Valentin Nusinovici – 15/07/2008
Semblant (Vocabulaire de la philosophie de Lalande): o que imita ou representa, de um modo fictício, uma coisa real, de maneira a fornecer mais ou menos a ilusão dela. Termo muito usual até o século XVI, depois caído quase completamente em desuso. Seria conveniente servir-se dele mais amplamente.Semblant (Robert historique de La langue française): aparência, aspecto (desde 980); a partir do século XVI, o valor negativo ligado à idéia de aparência predomina.
Lacan recupera, então, o semblant (no sentido do século XVI: ele volta a lhe dar boa aparência), sobretudo subverte seu sentido. O semblant não é a imitação ou a representação de uma coisa real. Nem uma aparência (um fenômeno) para além da qual haveria a coisa em si.
O termo entra na teoria analítica quando a questão de um discurso que não o seria é posta em cena. Mas, certamente, há um trabalho prévio. Se o primeiro exemplo de semblant no Sobre um discurso… é o dos meteoros (fenômenos que se produzem na atmosfera), já o que é dito do arco-íris, no final do seminário sobre as psicoses, dá corpo, por assim dizer, ao termo semblant. Lacan ressalta que, se o arco-íris está inteiramente em sua aparência, nós só nos interessamos porque ela é nomeada. É seu nome que nos captura “até perdermos o fôlego para saber o que há de escondido atrás dele”, quando todo mundo sabe que “não há nada escondido por trás” (nada que seja capaz de aparecer no campo perceptivo). A ciência (Descartes) vai reduzi-lo ao “modo que os raios de luz atuam contra essas gotas, e de lá se orientam na direção de nossos olhos”, ou seja, ao real de leis físicas. O arco-íris não é imaginário. Ele é uma ilusão – relacionada com um real – da qual o significante faz um semblant.
Só há semblant nomeado. O nome que sustenta a figura do semblant é o representante de um real que, enquanto tal, é sem representação.
Segundo a concepção corrente, os fatos científicos são elaborados a partir de fenômenos “naturais”. Qualificar esses fenômenos de semblants subverte a idéia de uma natureza enquanto dado pré-discursivo. A natureza à qual temos acesso é cheia de semblants (Sobre um discurso… lição 1). “O discurso científico só encontra o real pelo fato de que ele dependa da função do semblant” (lição 2).
O trovão, na medida em que ele é a “própria figura do semblant”, é a manifestação do deus supremo. Figura do significante mestre, “ele é ligado à própria estrutura do que é discurso” (lição 1). Vale dizer que o semblant não é desprovido de eficácia. Lacan dizia que o pai do pequeno Hans infelizmente nunca estava lá para fazer o deus trovão.
Encontramos o termo semblant nos Quatro conceitos… (11 de março de 1964). Lacan acaba de lembrar que o objeto da psicanálise está fora da problemática filosófica da representação, que “me assegura como consciência que sabe que é apenas representação e que há, mais além, a coisa em si”, o que permite que “tudo se arranje bem”.
É preciso partir, diz ele, do fato de que há “uma fratura, uma esquize do ser à qual ele se acomoda, desde a natureza” (entendemos: uma esquize que não seria determinada pelo significante). Ele se apóia em sua leitura do livro de Roger Caillois, Méduse et Cie, para sustentar que isso é observável no mimetismo. “O ser se decompõe aí, de um modo sensacional, entre seu ser e seu semblant, entre ele mesmo e esse tigre de papel que ele oferece à visão”. Parada amorosa ou insuflação deformada da intimidação, “é por essa forma separada de si mesmo que o ser entra em jogo nos seus efeitos de vida e de morte” (talvez a insistência no termo ser remeta a Sartre, citado pouco antes, e para quem a aparição, que não é sustentada por nenhum existente diferente dela, tem seu ser próprio).
Segue-se a constatação de que é também “por intermédio das máscaras que o masculino e o feminino se encontram”. Há, então, “uma certa manutenção” do semblant animal no comportamento humano. Mas uma coisa os diferencia: “o fato de que esse semblant seja veiculado num discurso” (lição 2). É o discurso que faz semblant”; fazer-homem, fazer-mulher são fatos de discurso.
O semblant humano não é semblant de alguma coisa, “esse semblant é o significante em si mesmo”(lição 1). Esse enunciado é seguido pela precisão de que o significante não é “essa coisinha boa domada pelo estruturalismo”. Procura-se domá-lo, entendemos, quando ele é suposto se sustentar num céu (a partir do qual ele se sobreporia à natureza), a questão de sua incorporação sendo então descartada, e com ela os embaraços da questão do gozo. Mas o semblant só tem sentido analítico com relação ao gozo. Em Antropologia estrutural, Lévi-Strauss postula a identidade das leis do pensamento e das leis do mundo. O que, para Lacan, mantém a relação em espelho do mundo e do pensamento, anterior à ciência moderna, e sustenta a idéia de uma escala dos seres que chega até um ser supremo (Mais ainda, 15 de maio de 1973). É estabelecer teoricamente um mundo de semblant.
O estruturalismo que Lacan reivindica para si é o da série. A série, diz ele em De um Outro ao outro, pode dar medida do gozo. Trata-se de situar, no final da série, “a falha” (o objeto a), que é sua causa.
Em Lituraterre é citado o livro de Roland Barthes, O império dos signos. Entre outras, uma importante diferença com Lacan refere-se à significação da verdade. Barthes evoca o ator japonês masculino intérprete de papéis femininos: ele não representa a mulher, não a plagia, ele a significa. Ele é um “puro significante cujo embaixo é dito clandestino (ciumentamente mascarado) ou subrepticiamente assinalado(no travesti ocidental). A verdade é objetivável, situada na realidade do sexo anatômico.
A verdade para o analista é a de uma falta fundamental, a do gozo primordialmente recalcado cujo significante é o falo, ela é da verdade da castração (Lacan fala no seminário da “verdade pura”). O órgão peniano, que nos exemplos de Barthes tem, claramente, uma função de significante, é precisamente um semblant fálico. Não é que o ator japonês ausente a verdade, é que ele não faz valer osemblant fálico.
“O semblant que se dá pelo que é, é a função primária da verdade” (lição 2). A função primária da verdade é de palavra. O sintomático “embaixo subrepticiamente assinalado” é um semblant que se dá pelo que é; a verdade fala aí na defesa (desmentido) contra a castração.
Lacan diz também que “o semblant só se enuncia a partir da verdade” (lição 9), ou seja, na dimensão da verdade, a partir do lugar dela (de sua demansion2). Na escrita dos discursos uma flecha sai do lugar da verdade em direção ao do semblant.
O que faz interpretação produz um efeito de verdade que não é semblant, mas que não basta para refutá-lo. “O sangue rubro3 não refuta o semblant, um pouco de serragem e o circo recomeça (lição 1). Há um efeito de luz, o sujeito é tocado no nível em que se defende, no nível de sua falta. Mas o efeito de verdade comporta sempre sua zona de sombra (correspondente ao recalque originário), a partir da qual o circo (o girar em círculos) recomeça.
Questão levantada no fim da primeira lição: de que se trata ali onde não seria semblant? (não: de que se trataria?). Trata-se de que, para além do princípio do prazer, “apareça o relevo desse efeito de discurso que até então nos parecia impossível”.
Para dar conta do relevo (a homonímia ligando o objeto a, resto da operação discursiva, ao mais-de-gozar) é proposta uma “curva de excitação” com um ponto de tangência inferior, dito ponto ‘supremo’: o mais baixo de um limite superior, em oposição ao ínfimo, o mais alto de um limite inferior. Os termos supremo e ínfimo (dos quais vários colegas ainda não conseguiram encontrar a origem) aparecem já em De um Outro ao outro (com definições inversas) Em O saber do psicanalista (6 de janeiro de 1972) o objeto a será definido como “o supremo de uma curva à qual ele dá seu sentido, e do qual, muito precisamente também, o supremo escapa”.
Há sentidos latentes, mas não falsos semblants para o psicanalista. A psicanálise não é um levantamento de máscaras. A pretensão a levantar as máscaras (que leva à passagem ao ato) não tem nada em comum com a saída da roda dos discursos por um discurso que não seria semblant.
Falar de falso semblant levanta suspeita sobre a palavra. Lacan diz que “o que se enuncia de palavra é justamente verdadeiro por ser sempre autenticamente o que ela é” (lição 1). Qual é o fundamento dessa autenticidade subjacente à verdade? Sabemos da crítica feita a Heidegger por ter querido estabelecer um critério de autenticidade na idéia de um acordo, por exemplo entre uma coisa e o que ela é estimada ser. Não seria ao “dividir irremediavelmente o gozo e o semblant” (instaurando um desacordo) que a palavra é autenticamente o que ela é, sendo por aí verdadeira, não podendo dizer senão o semblantsobre o gozo?
1 NT – Para ler o texto original, em francês:
http://www.freud-lacan.com/articles/article.php?url_article=vnusinovici150708
Tradução: Sergio Rezende
2 NT – construção lacaniana que joga com dimensão e mansão, morada.
3 NT – No original sang rouge, que joga foneticamente com semblant / sang blanc (sangue branco).