Ana Cristina Manfroni
Falar da relação do adolescente com a violência é relacionar duas formas de mal-estar.
A segunda é a forma do mal-estar em nossa civilização e que tem, certamente, do lugar onde a práxis psicanalítica nos dá a palavra, rigor de abordagem em suas diferenças com a agressividade, a punição e, até mesmo, os atos impositivos necessários. O NAV trata dos sujeitos que lhe são encaminhados pelas instâncias públicas e daqueles que vêm por sua própria iniciativa, mas sempre sujeitos que se apresentam como tendo sofrido ou mesmo sido autores de algum tipo de violência.
A outra forma, a própria adolescência, é um mal-estar específico da cultura em que vivemos já que há sociedades onde a transição entre a infância e a vida adulta se dá de modo mais homogêneo, integrado de forma direta (como em sociedades orientais, africanas ou tribais, através de ritos de passagem), sem crise psíquica(2) , tão disruptiva quanto a que vivemos entre nós
Acrescente-se a isso, no NAV, o fato de que se trata de atendimento a adolescentes com grandes dificuldades pessoais, num meio institucional, em que as circunstâncias, na maior parte das vezes, implicam recomendação ou imposição legal. Portanto um sujeito espremido também entre instituições.
O adolescente se caracteriza, em seu movimento, pelo que chamamos de passagem ao ato, onde se trata de um ato sem mediação, sem a mediação que a dimensão da palavra traz; quase uma precipitação, cujo paroxismo se encontra, por exemplo, no ato do suicídio. É diferente da ação, do agir da vida cotidiana, e é diferente também dos atos, que embora se façam igualmente de modo impulsivo, conservam a dimensão de um dizer, que têm, portanto, dimensão e conseqüências éticas, apelo ao Outro. Os atos adolescentes se fundamentam numa dificuldade imensa com o trato social, cujo laço é impedido pelo ensimesmar-se – tentativas de suicídio, anorexias, empreendimentos de fugas, vivências homossexuais, indo até a inibição, a ação inibida – ou pelas ações grupais – como delinqüência ou uso de drogas. Vemos, então, que essa precipitação se dá sem a ação mediadora do simbólico e nos revela a dificuldade fundamental do adolescente, seu confronto com o Outro, a partir de negação do diálogo e da palavra. Como levá-lo a colocar em ato a palavra? Esse é o desafio do psicanalista, o de reenviar à palavra, ou seja, convocar o sujeito a uma tecitura, a um fazer com a própria palavra– o que evita a elucubração psicologizante e paralizante e se oferece como barra, também, à passagem ao ato. Poderíamos, já agora, definir uma primeira direção para o tratamento, o de dar lugar para a palavra em ato, ao invés do ato sem a dimensão de fala, esse que supõe uma autonomia sempre violenta da ação.
O adolescente vive, mais do que qualquer um de nós, qualquer fala sobre ele ou suas coisas como um perigo real. A sua dificuldade nos recursos à simbolização pode ser de tal ordem que os problemas com as injunções da linguagem se assemelhem aos da psicose, carregando em tintas a sintomatologia desse quadro de crise psíquica e confundindo aqueles que, de uma forma ou de outra, têm que se haver com o adolescente. Esse perigo pode contaminar com facilidade aquele que emite a palavra ou que a representa, o que torna muito difícil o trato com o adolescente, principalmente quando se está em posição de transmissão ou tratamento. Esse perigo real pode levá-lo, e freqüentemente leva, a prescindir da presença real daquele que pode lhe dizer coisas ou fazê-lo falar. A presença real, de um pai ou de um Outro que faça presença, é fundamental para as operações de simbolização fundadoras de uma ética e de uma subjetividade, posição do sujeito pressuposto, necessária à vida social. Sem isso que faz laço social é muito difícil que se abra a possibilidade de uma transferência, motor do engajamento em qualquer tratamento psicanalítico
Se a palavra porta esse perigo real para o adolescente, ele se defenderá dela tratando-a como objeto imaginário ou destituindo-a – vale dizer, ela terá todo o sentido ou nenhum. Mais do que qualquer um, o adolescente falará para não dizer nada. Se a palavra passa a ter, para ele, o peso das coisas, o desafio, então, é o de pensar como fazer com que, ainda assim, produza efeitos, consiga atravessar a resistência e chegar ao sujeito em questão?
Um sujeito, é com isso que a psicanálise tem que se encontrar em sua prática e em seu trabalho conceitual. É o sujeito que é escutado na fala daquele que toma a palavra no tratamento. E é a ele que o analista se dirige constituindo com isso, para o adolescente, um lugar de acolhimento de seus sintomas que não seja nem educativo, nem punitivo. Se a questão do adolescente é justamente o desafio para um sujeito de, pela primeira vez, ter de tomar a palavra em seu próprio nome, o espaço analítico é, por excelência ,o lugar onde ele encontra as melhores condições para essa assunção. Deixar que o sintoma apareça, ali na relação analítica, que tenha lugar, sem que isso implique nenhuma palavra objetivante sobre ele – é isso acolher o sujeito, para que ele possa reiniciar sua interlocução com o Outro. Deixar falar o sintoma é deixá-lo fazer ruído, repercutir, jogar, tentar seduzir na transferência. Lidar com ele não é tentar aboli-lo – o que poderia parecer educativo, mas na verdade é inútil – nem qualificá-lo – o que seria impedidor de que o sujeito desse o passo necessário para seu tratamento, aquele que consiste em começar a se interrogar, reconhecendo-se, aí, em seus sintomas. Deixar, enfim, que surja tudo o que possa proceder à simbolização e barrar a imaginarização tão própria do adolescente – a mostração, a tipificação, a identidade grupal, a rebeldia como mero antagonismo, a linguagem privada, segregada e segregativa.
Em sua relação com a palavra, o que o adolescente pede é sempre da ordem do privado, uma língua que poderíamos dizer materna, onde ele quer ser plenamente compreendido. Só que aí se constitui uma falácia pois se lhe damos essa língua que o compreende, essa língua privada, o infantilizamos, o fazemos retornar à infância da qual ele está tentando sair, lhe caçamos a palavra. Aí ele se sente apanhado, perseguido, com seus pensamentos adivinhados por nós, sem condição de reter coisas que lhe sejam próprias. Esse é o sujeito que nos dispomos a tratar. O adolescente mais do que qualquer outro, deseja ao mesmo tempo que detesta isso que nos pede. Ele nos pede que sejamos coniventes com sua atopia, com sua falta de lugar, com o não reconhecimento do valor de sua palavra. O adolescente barganha com as palavras: ao invés de esvaziá-las de sentido, para que o sentido possa se renovar, ou se fixar aos sentidos fechados delas para não se encontrar com o que possa vir de novo, como fazem os neurótico, ele fica a meio caminho, esvazia o sentido da norma, da normalidade, mas faz isso só para fixar novos e restritivos sentidos, o que o deixa sem possibilidade de fazer laço social, numa camisa de força. Ou fica só ou faz bandos, grupos em torno de algum sentido fixado, de algo emblemático, que se constitui como tentativa frustrada de alguma simbolização.
É também com o real do sexo que o adolescente se encontra. Esse real, que vem com a puberdade, introduz um complicador, com a imagem do corpo, com a consistência do Outro, com o Outro sexo, com o investimento objetal. A essa irrupção traumática se acrescenta o fato de que, por não estar ainda inscrito no mundo adulto, o sexual não é acompanhado de uma vivência capaz de sustentar uma posição na vida cotidiana. Quando essa sustentação acontece, se dá quase sempre às expensas de algum tipo de antecipação que aborta as virtualidades possíveis do simbólico.
Vemos que o trabalho, a que os analistas do NAV se propõem, é um trabalho difícil e rigoroso. O que se visa é a ajudar o adolescente que chega a abrir um novo caminho – não no sentido de um caminho futuro antecipado que seria sempre imaginarizado, mas um percurso que ele mesmo faça na construção de sua palavra de sujeito. Trata-se de um trabalho que o leve a falar, refletir sobre suas coisas, sua história, como um primeiro passo para que possa vir a interrogar aquilo que no mundo o representa. É preciso levá-lo ao confronto que ele traz quando vem e do qual está fugindo. É aí que deverá se encontrar com sua divisão de sujeito e, portanto, com o lugar de onde pode vir a ter lugar, junto aos outros, outros sujeitos, num campo que é de reconhecimento mas principalmente um campo afetado de desejo. O que o real lhe traz, ao entrar na adolescência, é justamente o tropeção com aquilo pelo que, a partir daí, estará para sempre acossado: é que, para nos inscrevermos como sujeitos no mundo, na cena social, temos de reescrever sem cessar nossos acontecimentos, nossas rememorações. Isso é palavra em ato, elemento presente, a cada vez, em toda e qualquer troca para o sujeito.
A partir daí, o sentido da dimensão simbólica – lugar de referência paterna que aponta para a ordem da diferença e da lei – será mais possivelmente assegurado. Essa significação faz limite e deixa aquele que se encontra excluído da norma ou do laço social, numa situação limítrofe, tocando, de algum modo, a possibilidade de ser incluído. Convidar o adolescente a falar é forçar a queda da dimensão da onipotência que nada mais é do que aquela materna, do primeiro Outro real, da língua particular que assegurava o sentido de cada palavra – um sentido sempre ligado ao maternal -, no laço social e fazer valer a circulação da palavra que sempre nos vem do Outro, a palavra que tomamos, ao falar.
Uma vez que a violência está presente constitutivamente na lógica do tempo que chamamos adolescência, ela se duplica quando o sujeito se vê, em sua realidade cotidiana, mergulhado numa cena regida por ações violentas, pela lógica de organização de acesso ao mundo que não é através do símbolo, mas através do acesso direto, seja contaminada pela vivência grupal ou imposta por qualquer um. Assim, a dificuldade de instituir um espaço simbólico de laço afetivo, em sua relação com seu semelhante, é muito maior.
Se partimos do fato de que o ato específico do adolescente tende a se situar na margem da dimensão da palavra, podemos afirmar que suas tentativas de apropriação, quer de objetos, quer do outro, pela violência, devem ser lidas por nós como tentativas de aquisição de uma inscrição, de uma insígnia paterna, legítima, que lhe foi, a depender do caso, precariamente transmitida pela filiação simbólica.
O desafio feito ao trabalho do NAV é o de poder ouvir algo de uma verdade por construir e não por desvelar, verdade essa que surgirá nova para ambos – sujeito e analista, a despeito de toda a carga de tintas que tenha o drama com o qual o sujeito veio munido ao chegar.
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1. Este artigo foi escrito para publicação no livro Lugar de palavra – resultado do trabalho do NAV, Núcleo de Atendimento à Violência, dirigido a um público leigo.
2. A idéia de que a adolescência representa em nossa cultura uma crise psíquica é de Charles Melman.