Anna Carolina Lo Bianco
Tomei como questão uma reflexão sobre o discurso psicanalítico e o discurso universitário tal como eles articulam um texto.
Meu objetivo foi tentar apreender o que faz de um texto analítico algo de diferente do texto que é composto do lugar do discurso universitário. Essa questão para mim é muito urgente porque, estando às voltas com o impossível que está na relação da análise com o discurso universitário, trabalhar a diferença entre os dois discursos é uma das maneiras que tenho encontrado de enfrentar essa condição.
Parto da passagem do Seminário XVII, em que Lacan examina o uso de Sellin por Freud em Moisés e o monoteísmo. Tomo de início, vocês se lembram, a discussão com André Caquot, professor de Ciências Religiosas na École des Hautes Études, que a meu ver é um exemplo precioso do que são as posições sustentadas pelo discurso universitário e as que vêm do lado do discurso psicanalítico.
Lacan pede a Caquot que encontre no texto de Sellin alguns vestígios que indiquem algo sobre o assassinato de Moisés. Ele é movido pelo seguinte problema: “como, por que, Freud precisou de Moisés”, e, mais que isso, por que “precisou do assassinato de Moisés”.
É muito interessante acompanhar a discussão entre os dois, ver a diferença entre o que Lacan considera importante e o que Caquot ressalta do texto de Sellin; e, principalmente, é importante escutar a discussão, tendo em vista o que Freud escreveu!
Ao analisar o texto de Sellin, Caquot começa por delimitar a sua ideologia e a sua opção metodológica — e, em toda a sua fala, nos deparamos com a mesma preocupação, com a mesma crítica por não encontrar em Sellin uma prova mais segura, uma demonstração de que Moisés haja sido morto. Considera a hipótese de Sellin “frágil”, chegando a achar nela uma “imaginação desenfreada”, e se refere ao assassinato como um “pretenso assassinato” que Sellin “pensa” circunscrever — uma “conjectura gratuita”. Respondendo a uma pergunta de Lacan, Caquot menciona ainda que, a despeito do rigor e da clareza, o argumento era falso. Mas, o que chama mais atenção é que, por duas vezes, afirma que Freud teria usado a referência de Sellin por seu prestígio acadêmico, já que talvez a lembrança que Freud tivesse fosse a de uma passagem de Goethe em que esse autor “imaginava” (novamente a crítica) que Moisés havia sofrido uma morte violenta.
Acredito que a gente possa considerar a intervenção de André Caquot como bastante representativa de uma intervenção cuja estrutura esteja dada no discurso universitário.
Em contraposição a essas observações, por outro lado, encontramos uma breve menção de Lacan que nos oferece uma visão diferente do uso que Freud faz do texto de Sellin. Em seguida à exposição de Caquot e depois de alguns comentários, Lacan diz que Freud não se baseia em nada dessa articulação realizada por Sellin nas várias edições de sua obra. Ou seja, Freud procura no texto, muito pelo contrário, a “extraordinária latência” implicada na maneira de proceder de Sellin e, até certo ponto, é muito concebível que Freud haja valorizado justamente uma lembrança, uma suposição, que ressurge a despeito de todas as resistências.
Acredito que possamos avaliar o passo que Freud estava dando ao afirmar o assassinato de Moisés: basta lembrar as conseqüências que isso traz para o real que ele vem fundar na religião judaica e para todas as questões que tocam esse tema, seja a do recalque, a da recusa, a da tradição, a da transmissão ou outras. Podemos reconhecer aí uma maneira de operar que implica quem está escrevendo para além de sua vontade; ou seja, a operação não é automática e a garantia não está dada de fora: o que garante o achado que o texto traz é o ato de quem escreve. Freud, ao supor o assassinato de Moisés, seja a partir de sua leitura de Sellin ou de Goethe, usa esses autores como ponto de apoio para se lançar numa decisão conceitual audaciosa e corajosa e, nesse ponto, o ato de Freud é ao mesmo tempo um ato ético e um ato teórico, conforme Christiane Lacôte nota em relação a outros momentos da escrita freudiana. Nesse ponto, torna-se nítida a diferença entre o domínio do discurso universitário e a incidência do discurso do analista sobre o texto que está sendo produzido. Por um lado, nos encontramos em busca de coerência e consistência, como eu acho que é o caso de Caquot; por outro lado, ao considerarmos o discurso freudiano, estamos em outra dimensão. Não encontramos mais o apaziguamento assegurado pela citação, pelas referências aos grandes autores, a menos que se inclua aí uma relação de transferência, que não é uma crença cega.
O que vemos, então, Freud fazendo no seu texto é menos significar o assassinato de Moisés do que autorizá-lo. Acredito que essa distinção entre significar e autorizar possa ter eco entre o que é uma operação comandada pelo saber e outra comandada pelo analista no seu lugar de causa.
Talvez seja a isso que Lacan se refere quando fala que não vai dizer o que sabe sobre os nomes-do-pai ou que não vai sacanear a sua audiência fazendo-a entender o que é os nomes-do-pai. Porque, se a fizer entender alguma coisa, a chance de que as coisas mudem vai ser mínima. E a característica do que é dito a partir de um saber estabelecido é que o que quer que seja dito, “dos temas mais ardentes, até mesmo da atualidade política, por exemplo, seja apresentado, seja posto em circulação, de forma tal que não leve a nenhuma conseqüência”.
Acerca do discurso freudiano, ao contrário, pode-se falar tudo ou mesmo já se falou muito, mas não se pode dizer que ele não teve conseqüências…
Bem, mas nesse ponto eu acho que é preciso fazer ainda alguns movimentos para que a gente não caia num maniqueísmo em que se identifique um discurso como bom e outro como mau, ou então em algo que diga respeito à vontade daquele que articula um texto. Acho que há outras questões que têm que ser levadas em conta para que se possa situar o que eu estou chamando do ato no texto analítico. Porque, se ele é ato, não comporta um sujeito, menos ainda um eu da vontade ou da intenção.
Recorri então a um texto de Charles Melman “Ce que nous avons oublié”, em que ele, num colóquio sobre “a filiação entre a fé e a razão” sobre Ibn Rushd, Maimônides e santo Tomás de Aquino, vai falar de uma disjunção-conjunção entre o conhecimento e a palavra, que acaba por situar o sujeito num lugar de exílio, como eu vou falar mais, foracluído pelo conhecimento e abolido por sua própria palavra. Acho que esse texto me trouxe muitos elementos para considerar que é de um ato que se trata na articulação de um texto analítico — vou resumir brevemente o que pude apreender nesse texto.
Começa por uma menção ao que o texto de Ibn Rushd acredita ser um texto religioso. Ele diz que nesse texto há uma ordem interna à redação do texto, que não é imposta de fora, pela vontade divina, por exemplo. É uma ordem necessária, da escrita mesmo. Trata-se do emprego do silogismo que vai permitir a decifração do texto, indo do desconhecido ao conhecido. É um método que permite a retificação do texto literal e, ao mesmo tempo, dá os limites da interpretação.
Tal método rejeita as proposições que são contraditórias com as premissas e Melman diz que essa rejeição é comandada por um “automatismo inerente ao jogo de escritura”. Ou seja, esse método reconhece um automatismo no jogo de escritura, um “comando automático”, que exclui qualquer intervenção do sujeito.
Melman se pergunta se um texto desse tipo dá conta do fenômeno da Revelação, i.e., de uma lei que não se articula a partir de um jogo de escritura mas sim a partir da emergência de uma voz.
Diz que Ibn Rushd é ambíguo ao responder a isso, mas que santo Tomás e Maimônides afirmam que esse texto, que se articula a partir da voz, é de uma outra ordem e vem de um lugar diferente da razão.
Bem, para falar desse lugar, Melman toma uma decisão: diz que não vai se valer da lógica da demonstração, mas de sua própria palavra, para dizer que, se o sujeito é foracluído pela lógica, ele é abolido também pelo jogo significante, na medida em que está sujeito às leis da linguagem. Essas leis da linguagem comportam prescrições e interditos e chegam ao sujeito sob a forma de uma Lei (com L maiúsculo), que lhe é revelada do real.
Melman menciona, nesse ponto, um conflito marcado por uma disjunção-junção entre o que se profere pela boca como palavra (com autoridade e a paixão e o caráter assertivo que acompanham a palavra quando ele é proferida), repito, uma disjunção-conjunção entre a palavra e a racionalidade pela qual tenta se defender dela — porque essa oposição é a mesma entre o saber intuitivo espontâneo que anima essa palavra (mesmo que ela não saiba nada ela está sempre persuadida de seu saber e de como ela é bem-fundada e de seu direito e de sua legitimidade), ou seja, essa oposição entre palavra e racionalidade é a mesma entre saber intuitivo e conhecimento pelo qual o sujeito pode tentar não ceder ao fanatismo que habita intrinsecamente a sua palavra.
É aí que Melman fala que, se o sujeito é foracluído pela lógica (pela demonstração, pelo conhecimento), ele não é menos abolido por sua própria palavra — na medida em que essa palavra o arrebata, o deixa sem recursos (ou seja, ele sempre é surpreendido com perguntas do tipo “por que eu disse isso?” ou “por que fui tomado desse jeito pela palavra?)
Ou seja, o sujeito está, de um lado, foracluído pela lógica e, de outro, abolido pela sua própria palavra — seu lugar é então entre o conhecimento e a lógica, de um lado, e a palavra, de outro. Melman fala que o lugar dele é, portanto,um lugar de exílio.
Acho que é nesse ponto que me autorizo a dizer que desse exílio só se pode sair por um ato que, com sua dimensão de real e com sua ponta de significante, vai oferecer como efeito um lugar para o sujeito.
______________________________________
1. Apresentação nas Jornadas do Seminário O Avesso da Psicanálise. Tempo Freudiano Associação Psicanalítica. Março de 2004.