Ana Cristina Manfroni – 1998
Parto do escrito de Lacan, “O estádio do espelho” para tentar falar disso que, da constituição da criança na relação à linguagem e à voz, se estrutura, já aí, em função dos lugares materno e paterno. Tomo fundamentalmente os dois parágrafos que transcrevo a seguir e a leitura de textos de Lacan, Freud, Melman, Bergès e Balbo, cujas referências constam das notas de rodapé, ao longo do texto:
O estádio do espelho é um drama cujo impulso interno precipita-se da insuficiência para a antecipação – e que fabrica para o sujeito, apanhado no engodo da identificação espacial, as fantasias que se sucedem desde uma imagem despedaçada do corpo até uma forma de sua totalidade que chamaremos ortopédica – e para a armadura enfim assumida de uma identidade alienante que marcará com sua estrutura rígida todo o seu desenvolvimento mental(1)
A assunção jubilatória de sua imagem especular por esse ser mergulhado na impotência motora e na dependência da amamentação que é o filho do homem nesse estágio de infans parecer-nos-á pois manifestar, numa situação exemplar, a matriz simbólica em que o je se precipita numa forma primordial, antes de se objetivar na dialética da identificação com o outro e antes que a linguagem lhe restitua, no universal, sua função de sujeito.(2)
Lacan fala de uma antecipação, algo que se precipita da insuficiência para a antecipação. De que insuficiência ele trata? Sabemos, a partir do que trabalhamos em nossa segunda Jornada, que é a mãe quem se encarrega de todas as funções para a criança, como um sistema corporal para além do corpo da criança (certamente um para além específico já da antecipação e não da insuficiência) e que revela a ela o imaginário do corpo. Trata-se de uma insuficiência de sua posturo-motricidade e de uma pré-maturidade. E o que a criança antecipa? Certamente algo que é da ordem de uma imagem dela mesma, mas não só isso. Lacan define esse momento como um drama, o contraste entre o que está na origem – no sistema materno que deve realizar as funções vitais – e a antecipação sobre a insuficiência. Se a insuficiência está em dependência com a mãe, a mãe também está em causa no espelho. Ela se encontra aí, entre essa necessidade de dar os cuidados ao filho e a possibilidade de se permitir instalar-se no quadro dessa antecipação, numa estrutura tal que só a partir dessa permissão é que o quadro se inscreve. A permissão de deixar sua posição – de funcionar em todas as funções -, para que possa haver esse precipitado da antecipação, para permitir um funcionamento fora dela.
Trata-se, portanto, para a mãe, também de uma antecipação, pois que ela está incluída nesse drama: terá de fazer um luto de seu filho, que, por esse estádio, irá deixá-la. Se esse luto não opera para ela, se por qualquer razão ela se vê impedida de fazê-lo, dificilmente poderá operar para o filho. Tivemos a oportunidade de falar sobre isso em nosso trabalho da Oficina de Psicanálise com crianças e adolescentes do Tempo Freudiano, quando estudamos, a partir do esquema óptico, a constituição da imagem real fundamental para a constituição da imagem virtual e suas determinantes na estruturação da criança autista. O autista é aquele a quem fica definitivamente vetada a possibilidade da assunção de uma imagem, posto que a imagem real fracassou. Assim nos diz Balbo:(3) que “…para o autista, todos os objetos que se encontram alojados no real que o circunda o reenviam em espelho a seu corpo despedaçado; todos esses objetos o reenviam a um fragmento de seu corpo, mas esse reenvio, se é especular, não é para ele matricial, ou seja, unificante.
Se a mãe faz o luto (antecipado à perda, o que localiza, pois, uma perda antecipada), ela permite o júbilo, compartilha o júbilo, na exata medida em que seu filho é perda de seu corpo, perda de corpo que o constitui como corpo, é perda de si. Ela também irá se recolocar diante de um corpo sem filho. O que é esse júbilo? É o júbilo da criança diante de sua imagem no espelho, mas Lacan fala de uma assunção jubilatória, portanto, da assunção de uma imagem. Já aí a antecipação que permite um certo ultrapassamento da insuficiência, mas ao preço de “uma desarmonia que se coloca entre aquilo que ela é e aquilo que ela poderá vir a ser ou deverá ser, idealmente”(4). Nesse júbilo, tudo irá se ordenar em torno do que antecipa, do que lhe permitirá coordenar motricidade e psiquismo. A matriz simbólica de que fala Lacan é o que, como matriz do sujeito, o lançará nessa experiência na qual a criança pode reunir o que – o júbilo aponta para isso -, em seu despedaçamento, não se encontra tão disperso assim, como no autista: forma uma unidade psíquica e motora. Essa desarmonia, esse contraste, esse drama, só é pensável pela matriz simbólica, ou seja, pela tomada dessa experiência a partir de um imaginário que se sustenta pela palavra.
Se falamos em perda, em função simbólica, em inscrição materna, nessa experiência, devemos necessariamente nos remeter à pergunta: o que a criança vai encontrar em sua imagem no espelho, nesse jogo do qual também faz parte a mãe? Algo que já esteja em causa desde o nascimento, nessa relação entre eles, não só os cuidados vitais, mas tudo o que a mãe fala para essa criança, o discurso da mãe para com ela, criança. É importante notar que Lacan fala que a linguagem restitui, no universal, sua função de sujeito. Restitui, aponta, me parece, para o que já esteve lá. Será que a antecipação coloca, retroativamente, a criança, o filho, como um significante no discurso da mãe?
Antes de continuar, aqui, com todas as questões que essa pergunta irá produzir, tomarei uma passagem do Seminário A Angústia(5), que me parece fundamental neste momento. Lacan nos remete a lembrar comoa relação especular se encontra tomando lugar, dependente do fato de que o sujeito se constitui no Outro. Ela se constitui de sua marca na relação ao significante. Já nada que na pequena imagem exemplar de onde parte a demonstração do estádio do espelho, nesse momento dito jubilatório em que a criança se assume como totalidade funcionando como tal na sua imagem especular, será que não tenho lembrado, desde sempre, a relação essencial com esse momento desse movimento que faz o bebê que vem se apreender nessa experiência inaugural do reconhecimento no espelho, se volta para aquele que o porta, que o suporta, que o sustenta, que está lá atrás dele, o adulto, a criança se volta em um movimento verdadeiramente tão freqüente (…) para aquele que o porta, para aquele que aí representa o grande Outro (…) levando em conta a ligação inaugural dessa relação com o grande Outro, com esse advento da função da imagem especular assim percebida, como sempre, por i (a). Mas deve-se permanecer aí?
Certamente que não. Lacan segue e, bem mais adiante na lição, volta diretamente a essa questão da relação especular com o grande Outro, afirmando que “esse investimento da imagem especular é um tempo fundamental da relação imaginária, fundamental nisso que tem um limite e é que nem todo investimento libidinal passa pela imagem especular. Existe um resto”. Esse resto, Lacan o caracteriza pela função do falo,e isso quer dizer que, desde agora, em tudo o que é referência ao imaginário, o falo virá sob a forma de uma falta, de um – . Em toda medida em que se realiza em i (a) isso que chamei a imagem real, a constituição no material do sujeito da imagem do corpo funcionando como propriamente imaginária, quer dizer libidinizada, o falo aparece como um branco. O falo é sem dúvida uma reserva operatória, mas não somente que não é representada no nível imaginário, mas que é cortada da imagem especular. (…) A relação dessa reserva, inapreensível imaginariamente, ainda que ligada a um órgão, o instrumento que deverá, de tempos em tempos, entrar em ação para a satisfação do desejo, o falo, a relação desse –
com a constituição de a que é esse resto, esse resíduo, esse objeto cujo estatuto escapa ao estatuto do objeto derivado da imagem especular.”
Então o falo não faz parte dessa imagem, pois que ele se recorta dentro dessa imagem. Esse objeto a que só podemos imaginar no registro imaginário, mas que institui um outro modo de imaginarização, e sua relação com o falo, nisso que é uma reserva cortada da imagem especular, abrem, nesse recorte, o furo em torno do qual há a antecipação, em torno do qual está a imagem do corpo, em torno disso que não é especularizável. Na antecipação posturo-motora vemos que a falicização do eixo de seu corpo, a postura ereta, a motricidade, a estrutura corporal são lançadas pela falicização da mãe, tributárias disso que não é especular, disso que, acompanhado de palavra, faz com que a imagem se encontre com um furo, com algo que não é representado. Farei aqui um salto, apenas para indicação do que retomarei mais adiante: o objeto a, que aí está, para retomarmos o caminho do discurso materno, está como voz. De quem?
Lacan introduz essa questão falando do momento quando a criança se volta para aquele que a suporta, que ali representa o grande Outro. Esse instante, de se virar para olhar de outro lugar, faz corte, é o instante da perda, do luto da mãe, do adeus da criança, “virada de adeus, pois que o espelho tem valor de castração simbólica: tudo o que a mãe pode fazer é nomear.”(6) A partir do que escreve Lacan no último parágrafo do “O estádio do espelho”, podemos afirmar que nomeia dizendo: “(…) ‘Tu és isto’, em que se revela, para ele, a cifra de seu destino mortal…”(7)
Desde que nasce, a criança está mergulhada na linguagem e nos sons do mundo. Há ruídos, rumores, murmúrios, e, se a criança não é surda, ao seu redor o mundo fala, mas dizemos que, antes da experiência matricial do espelho, essa fala é apenas sonoridade. Esses ruídos, em sua origem, não podem ser tomados ainda como fonemas ou unidades das palavras, mas, na sonoridade, são fragmentos do som do mundo, fragmentos do discurso materno. Vimos na afirmação de Lacan, ponto de partida deste trabalho, que a relação especular se constitui de sua marca na relação ao significante, pois que dependente do fato de que o sujeito se constitui no Outro e que, na assunção jubilatória que aí se dá, a criança se assume como totalidade. Poderíamos dizer que é a totalidade, a unidade dos fragmentos do corpo enquanto ruídos, enquanto, como nos diz Balbo(8), resultante de que, em seu discurso, a mãe, de palavra a palavra, de letra a letra, despedaça o corpo de seu filho ao mesmo tempo que o unifica, uma vez que esse corpo irá se ordenar numa certa sintaxe. Se a criança se precipita numa forma, antes que a linguagem lhe restitua sua condição de sujeito, há nessa precipitação uma antecipação dessa restituição da linguagem, uma sintaxe, no espelho, um discurso que permite à criança se reencontrar nisso que ela já ouviu falar dela. O corpo em questão é um corpo preso a uma estrutura falada, agarrado pela linguagem, nesse drama do sujeito, nessa desarmonia em que o que ele antecipa de sua constituição é já lembrança do que se perdeu.
A língua entre a mãe e seu filho é uma língua feita de pequenos sons, feita de sonoridade. Melman a chama de língua privada, é algo entre eles que só eles entendem, barrada a todos. Mas nem todo o tempo é assim, há um momento em que a mãe fala com a voz da linguagem e a criança se vê lançada aí. Portanto, a voz da mãe porta isso que faz com que a linguagem esteja organizada segundo as leis da gramática, da fonética, segundo uma sintaxe. Para que a língua privada seja barrada, é necessário que haja para a mãe o significante da falta e que a criança possa ter acesso às leis que comandam o jogo da língua materna. Mais que isso, é preciso que, além de falar a língua de todos, a inscrição seja significante: se a mãe se encontra referida ao grande Outro, se há pai, a entrada na língua terá para a criança inscrição significante.
Antonio Carlos Rocha(9), ao escrever sobre a separação do público e do privado e suas conseqüências nos efeitos do sujeito na cena do mundo, diz que, quando há uma coalescência entre o público e o privado, acontece uma completa desqualificação daquilo que é público. O sujeito vive o público como exterior a ele, não encontra seu lugar aí, no Outro, sentindo-se, pois, estrangeiro, não representado. Como conseqüência direta, quanto menos representado por um significante – que é sua marca e destino –, mais tentaráse significar, evidentemente numa privatização do mundo tão extensiva quanto sem saída. Uma definição mínima poderia dizer que a essência do domínio público começa, de alguma maneira, desde a instauração do registro simbólico para um sujeito, quando os significantes se constituem enquanto tal, separando-se da voz, extensão do corpo materno, e se organizando em torno da função fálica, isto é, vindo a representar esse sujeito. Essa fórmula nos parece suficiente para evidenciar o modo como a desqualificação do domínio público não pode levar o sujeito senão aos impasses de um imaginário privado, em que o sujeito se perde no corpo materno, numa demanda inesgotável e impossível de satisfazer.
Dissemos que a palavra da mãe se organiza segundo as leis da linguagem, da língua (a sintaxe, articulação, pontos de flexão, desinências etc.). Diz Bergès (10)que a função da palavra se encontra na qualidade recalcadora da palavra da mãe, e o que faz a sua qualidade recalcadora é justamente essa organização. Podemos dizer que aí está o que vem barrar o ruído do mundo. A palavra saída da boca da mãe tem também qualidade motora, com o que há de motor na fonação, motoriza algo que tem a ver com a letra. Assumimos um corpo engajado na fonação, por articulação. O que quer dizer isso?
Volto ao final do Seminário A Angústia.(11) Lacan nos diz que a questão maior que nossa prática nos oferece é o fato observável do jogo autônomo da palavra. Traz como exemplos a experiência de Jakobson com o gravador e o conceito de Piaget de linguagem egocêntrica. Uma criança pequena, longe da fase do espelho ter concluído sua obra, diz Lacan, desde que domine algumas palavras, antes de dormir ela monologa. É um monólogo que jamais se reproduz na frente de outra pessoa, e Lacan lhe dá uma função análoga à do sonho. É a partir daí que começa a nos falar sobre a voz como objeto. Desse monólogo só temos como estado, de resto, a fita do gravador; de outra forma só temos murmúrios longínquos, sempre prestes a se interromper com o nosso aparecimento. Pergunta Lacan: “Será que isso não nos introduz à consideração de que alguma via nos é oferecida para apreender que, para o sujeito que está se constituindo, é também do lado de uma voz destacada de seu suporte que devemos procurar esse resto?”
Para nos falar da voz, Lacan fala do som e do ouvido. Na relação da sonoridade com a linguagem, diz que sabemos que o sujeito recebe, sob forma vocal, a linguagem, mas que também sabemos muito bem – e aqui faz referência ao caso de Helen Keller – que há outras vias para receber a linguagem: “linguagem não é vocalização, vejam os surdos. No entanto, acredito que podemos avançar no sentido de que uma relação mais do que acidental liga a linguagem a uma sonoridade”. A essa sonoridade Lacan dá o caráter de instrumental. Já o ouvido, Lacan — em algo que, como nos diz, tem só interesse metafórico — o compara a um ressonador. Define o próprio da ressonância pelo aparelho que domina, pois que é o aparelho que ressoa e não ressoa qualquer coisa. Nosso ouvido é um ressonador do tipo cano, em que Lacan retoma o que já chamara a forma mais elementar da constituição criada e criadora de um vazio, a forma do pote. Ele é algo que pode ressoar. Só que a voz não está em ressoar num vazio espacial,mas num vazio que é o vazio do Outro como tal, o ex nihilopropriamente falando. A voz responde ao que se diz, mas ela não pode responder. Para que responda, devemos incorporar a voz como a alteridade do que se diz. É por tudo isso que nossa voz, desligada de nós, aparece com um som estrangeiro. É da estrutura do Outro constituir um certo vazio, o vazio de sua falta de garantia. A verdade entra no mundo com o significante. Ela se experimenta, ela se reenvia somente por seus ecos no real. Ora, é nesse vazio que a voz, enquanto distinta das sonoridades, voz não modulada, mas articulada, ressoa. A voz de que se trata é a voz enquanto imperativa, enquanto ela reclama obediência ou convicção, enquanto ela se situa, não em relação à música, mas em relação à palavra.
A voz tem a função de modelar nosso vazio justamente porque é algo que não se assimila, se incorpora. Por se tratar de incorporação, algo que faz corpo em alteridade, é que ela modela esse vazio, lugar de nossa angústia, mas “somente depois que o desejo do Outro tenha tomado forma de comando”. Lacan volta a falar aqui do shofar da sinagoga, como instrumento, “ao mesmo tempo musical e substituto da fala, arrancando nosso ouvido de todas as suas harmonias costumeira”.
É preciso lembrar aquilo que lemos na lição Os Nomes do Pai(12), sobre a voz. Lacan a define, em sua relação ao Outro, comoesse objeto caído do órgão da palavra, o Outro é o lugar onde isso fala. Aqui não podemos mais escapar à questão: quem? Para além daquele que fala no lugar do Outro, e que é o sujeito, quem está aí mais-além, de modo que o sujeito, cada vez que fala, toma voz?
Assim, a voz não é um objeto como o seio ou as fezes, por exemplo. Não é um objeto que se apresentou como tendo pertencido ao próprio sujeito, em queda, em falta(13), Mas é aquilo que veicula algo, que constitui o vazio do Outro com a função de modelar nosso vazio, de aí fazer corpo. O objeto voz, distinto da sonoridade, da música, da modulação – do mundo sonoro onde o que se diz não importa, importa estar em uníssono -, é o que resta enquanto inscrição significante. O sujeito habita, tem seu lugar de inscrição nisso que ressoa do vazio. É assim que posso compreender o que diz Balbo(14)quando afirma que “o objeto voz só pode ser perdido se resta em uma inscrição significante, o que foi ouvido dessa voz é o que faz terceiro e resta inscrito para o sujeito”. Ela localiza o sujeito. De todas as vozes que vão se destacando, a voz materna, a voz da criança, as vozes do mundo, o objeto voz resta numa inscrição que é significante. A voz articulada opera nisso que permite a entrada da criança na linguagem e onde a um só tempo a criança irá se perder enquanto voz(15). Só assim poderá advir da linguagem, da palavra, da tomada do significante embrenhado no corpo que constitui.
Quando, por exemplo, Freud (18) nos diz que. se esquecemos um nome, e, ao tentarmos lembrá-lo, dizemos que começa com M, ou que tem um O, isso é o que resta. Bergès(17),se pergunta como podemos articular, em torno dessa letra que nos resta, a questão de uma inscrição que não será mais significante, a saber, que, em efeito, o que nos resta, isso resta mas não é suficiente para fazer significante, para evocar. Mas Balbo lembra que Freud também nos diz queretemos as palavras esquecendo as vogais e que é sobre as consoantes que o recalcamento incide, ou seja, que uma outra palavra vai advir, virá até nós no lugar daquela que buscamos e de que nos havíamos esquecido; mas é outra palavra que vem substituir à precedente, e terá, diz ele, as mesmas vogais. Bastaria reencontrar as consoantes para reencontrar a palavra perdida. Assim, o recalcamento concerne às consoantes, ou seja, que a palavra que vem substituir aquela que buscamos e que está momentaneamente perdida salva as vogais do recalcamento. É uma palavra que sustém as vogais. Estes são seguramente os ruídos da voz materna, e tem certamente relação com os fonemas, e com a entonação dessa voz. Enquanto as consoantes estão do lado paterno, ou seja, do lado da função fálica, do lado disso que corta, que escande, disso que recorta dentro desses ruídos para constituir as unidades carregadas de sentido, de significação, as unidades significantes (18).
No entanto, a voz traz também o silêncio, como vimos Lacan nos dizer no Seminário 11(19): “A ruptura, a fenda, o traço da abertura faz surgir a ausência – como o grito não se perfila sobre o fundo se silêncio, mas, ao contrário, o faz surgir como silêncio”. O sujeito, ao se constituir nessa incorporação, enquanto voz perdida, sofre a condenação do que o faz surgir como mudez. Diz Melman(20) que “a voz impõe silêncio ao real e, primordialmente, ao real do corpo. Mas a voz impõe também o silêncio àquilo que habita no real, ou seja, entre outros, ao sujeito”. O sujeito só poderá, então, se dar a ouvir nas manifestações do inconsciente: “dar livre curso ao recalcado, aos traços que Freud descreve no chiste ‘lubricidade, egoísmo, ceticismo, cinismo’, ou seja, tudo o que o pai interdita à sua criatura, obrigando-a a ser altruísta, a só funcionar em seu serviço a ele”.
A vida cotidiana nos mostra que o que se tolera do corpo em relação à voz são acompanhamentos, pequenas mímicas, “gestos que testemunhem a obediência do real do corpo à voz”. As falhas da linguagem fazem atos, revelam o branco fálico da imagem, nos fazem corar, colorimos de vermelho a vergonha que sentimos pela intervenção do corpo frente à voz.
A clínica nos mostra que o analisante, o sujeito, seja criança ou adulto, tem seus problemas de mudez, ali mesmo onde fala, de surdez ali mesmo onde ouve: tenta sempre conservar o sentido e deixar escapar a voz. Algo sempre emudece, há palavras que partem, mesmo estando tão freqüentemente ao nosso alcance; quando retornam nos trazem o que menos esperávamos; outras que vêm mas não as dizemos, as calamos antes que falem de nós; algumas partem e não as podemos recuperar mais. Temos também as palavras que não ouvimos, que não podemos articular, pois que só lhes emprestamos modulação, sonoridade ou as prendemos em sentido.
O sujeito está sempre nos paradoxos de sua relação com a linguagem.
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1 Lacan, J. “O estádio do espelho” em Escritos, pp. 100-97 (ed. brasileira e ed. francesa). Grifos meus.
2 Op. cit., pp. 97-94.
3 Balbo, G. e Bergès, J. “Du corps à la lettre” em La question du père aujourd’hui, La psychanalyse de l’enfant n.º 20, revue de l’Association freudienne, pág. 185.
4 Op. cit., p. 190.
5 Lacan, J, Seminário A Angústia, lição de 28 de novembro de 1962.
6 Balbo e Bergès, op. Cit., p. 185.
7 LACAN, J. O estádio do espelho, pp. 100-103.
8 Balbo e Bergès, op. cit., p. 186.
9 ROCHA, A. C., “O discurso analítico: limites de sua transmissão” em Lacan e a formação do analista no Brasil, p. 45.
10 Bergès, op. cit., p. 205.
11 LACAN, J. O Seminário A Angústia, lição de 05 de junho de 1963.
12 LACAN, J. novembro de 1963.
13 A especificidade do objeto voz, da pulsão invocante, é bastante complexa. Lembro aqui, apenas, a fala de Lacan no Seminário 11, p. 188: “a pulsão invocante tem esse privilégio de não poder se fechar” — muito difícil se pensarmos que é próprio do conceito de pulsão seu fechamento, em que aparece o sujeito -, “esse sujeito, que é propriamente o outro, aparece no que a pulsão pode fechar seu curso” (p. 169). Na estrutura de borda, localiza a “tensão que é sempre um fecho, e não pode ser dissolidarizada de ser retorno sobre a zona erógena” (idem) e, ainda, que “os ouvidos são, no campo do inconsciente, o único orifício que não se pode fechar” (p. 184).
14 Op. cit., p. 204.
15 Bergès, op. cit., p. 192.
16 Freud, S. Psicopatologia da vida cotidiana.
17 Bergès, op. cit., p. 198.
18 Balbo, op. Cit., p. 193.
19 Lacan, J. Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise, p. 31.
20 Melman, Novos estudos sobre o inconsciente, Seminário de 12 de fevereiro de 1985.