Para introduzir o cross cap
Este estranho objeto foi apresentado por Lacan pela primeira vez em 16 de maio de 1962 em seu seminário A Identificação, como suporte da estrutura da fantasia.
Mas sabemos que ele já estava pronto em 1959. Em uma nota redigida em 1966, no momento da publicação nos Escritos de seu artigo ‘Questão preliminar a todo tratamento da psicose’ (1959), Lacan já nos assinala que “este esquema R evidencia, é um plano projetivo”, isto é, um cross cap.
Esse esquema R mostra que o “campo da realidade só funciona se obturando com a tela da fantasia”. Em outras palavras, não temos acesso natural ao real, mas só pela mediação da fantasia.
A visão é sem dúvida o sentido que mais nos dá a ilusão de um acesso direto ao campo da realidade.
No entanto, é um campo bem achatado o que ela nos propõe. Ela projeta todos os pontos do espaço, situados numa mesma reta que passa pelo centro óptico do olho, num mesmo ponto da retina. Nosso espaço em três dimensões reduz-se assim a um pedaço de superfície esférica, a retina. A visão opera então uma redução dimensional.
Assim faz o pintor, que aplica as leis da perspectiva, e melhor ainda o aparelho fotográfico e a câmera.
Mas, enquanto o quadro ou a foto reconhecem seu limite, até mesmo o exaltam por uma moldura, o olho o apaga. Aliás, virando a cabeça ele vê tudo (exceto o que há na cabeça!).
Pela visão, o mundo se fechou numa esfera, ou seja, numa superfície, com a exceção notável do próprio olhar.
É aqui, com esse esquema projetivo alargado em todos os sentidos, que Freud estabelece sua representação topológica do eu:
“O eu, diz Freud em ‘O Ego e o Id’, é, antes de tudo, um eu corporal, não é somente uma superfície, mas é mesmo a projeção de uma superfície”. Em nota, ele precisa: “ou seja: o eu é afinal derivado de sensações corporais, principalmente daquelas que têm sua fonte na superfície do corpo, e, além disso, […] ele representa a superfície do aparelho mental”.
Nesta concepção, o aparelho psíquico e o corpo são como uma bola (3 dimensões) onde o eu seria a zona de contato com o mundo exterior (ou seja, segundo o esquema, um pedaço de esfera: 2 dimensões). Em conseqüência, esta topologia esférica induz a idéia de um eu-superfície separando um mundo “exterior” e um inconsciente “interior”, opaco, visceral. A psicanálise seria uma “psicologia das profundezas”.
Lacan dá um passo essencial
Lacan demonstra claramente que o inconsciente descoberto por Freud é estruturado como uma linguagem. Daí a noção de um sujeito suposto na origem das manifestações do inconsciente (lapsos, atos falhos, sonhos, sintomas). Para o sujeito, nem o corpo nem o mundo exterior serão dados imediatamente, mas somente através da linguagem. Aliás, apenas os sintomas que vão se revelar tendo uma estrutura de linguagem podem ser ditos sintomas do sujeito.
Esse sujeito, Lacan o define como o referente desconhecido de uma função: “o que representa um significante para um outro significante”. Invisível, mas apenas situável, não é no entanto um sujeito desencarnado: a linguagem, a ordem simbólica, só produzirá um sujeito se encontrar um corpo vivo para aí se incorporar.
A introdução do termo sujeito, pouco usual em Freud, é aqui exigida pela estrutura de linguagem. Quanto ao eu, ele guarda a função de imagem projetada do corpo, imagem que seduz o sujeito. Mas retomemos nossa realidade, senão visível, pelo menos pensável, da qual faz parte nosso eu. Podemos dizer: tudo que se vê (ou pode se ver), para um sujeito, é significante. A imagem esférica do mundo, para um sujeito, é feita de significantes.
Ora, a propriedade do significante é ser diferente de todos os outros e mesmo dele próprio. Diremos então, em primeira aproximação, que todo significante equivale a seu oposto, ou que todo objeto significante é ao mesmo tempo ele mesmo e seu contrário: a = – a.
Aliás essa é uma intuição de Freud, que ele expõe em seu artigo sobre o sentido oposto das palavras primitivas, de 1910 (Über den Gegensinn der Urworte).
Se aceitarmos essa equivalência do significante a seu contrário, podemos identificar cada ponto da esfera visual a seu oposto. O objeto produzido por esta operação chama-se plano projetivo, e sua imersão mais simples no espaço de três dimensões é o cross cap.
Fig. 2
O cross cap é então a forma topológica da fantasia fundamental que condiciona a realidade, ou seja, o real passado pelo crivo do significante. Mas essa forma que guarda o sujeito escapa a ele. Sua aptidão para sustentar a realidade tem a ver com o fato de que ela liga o sujeito ao objeto que causa seu desejo. Esse laço é recalcado desde a origem na própria estrutura do cross cap. É o recalque originário.
Com efeito, essa forma aparentemente homogênea é de fato um composto heterogêneo do sujeito e do objeto. Quando um significante faz corte nessa forma, o sujeito é o produto da operação, o objeto, seu resto, a moldura não percebida da realidade do sujeito. Retomaremos isto mais adiante ao estudar a estrutura do cross cap.
Façamos aqui uma pequena reserva: a conivência do cross cap com o campo escópico sugere que ele daria apenas uma visão (é o caso de dizê-lo) parcial do laço do sujeito com seu objeto. Poderíamos admitir a possibilidade de que a fantasia se forme a partir de outros modelos topológicos. Aliás Lacan sugeriu (em seu seminário ‘De um Outro ao outro’) que os objetos oral, anal, escópico, vocal tenham cada um sua própria maneira topológica de sustentar a realidade: esfera, toro, cross cap ou garrafa de Klein. A coisa se complica se reconhecemos que, fora da psicose e da perversão, na fantasia do neurótico, o objeto se apresenta comumente sob duas facetas ao mesmo tempo (escópico-anal, por exemplo).
Descrição do cross cap
Lacan chama de cross cap o conjunto do objeto conhecido em topologia sob o nome de esfera mitrada, feita de um pedaço de esfera completada por uma mitra (ou cross cap). O cross cap em topologia é apenas uma parte do cross cap de Lacan. Aqui nos conformaremos, no entanto, ao uso lacaniano.
Fig. 3 Cross cap mitre
Fig. 4
Vemos que o cross cap parece um pouco uma esfera (Lacan o chama também de a-sfera). Como ela, ele é uma superfície sem borda. A linha Φ-Ω não é uma borda. É uma linha de intersecção da superfície por ela mesma. De fato, cada ponto desta linha corresponde a dois pontos diferentes e distantes do cross cap. Para ir de um destes pontos até aquele que se encontra no mesmo lugar sobre a linha, é preciso fazer um percurso sobre a superfície (Fig. 5).
Se prolongarmos esse percurso, penetramos no « interior » do cross cap, para voltar a sair se ultrapassarmos novamente esta linha.
Conclusão: o cross cap, diferentementeda esfera, não divide o espaço em torno em um exterior e um interior. Suas duas faces estão em continuidade, de modo que podemos dizer que só há uma, como na banda de Möbius. (Fig. 6).
Se com Lacan (L’Étourdit) só se conta os trajetos que se fecham (pois uma frase só toma seu sentido com a última palavra), vemos que é possível traçar vários tipos de alças fechadas.
Alças simples de dois tipos:
Em primeiro lugar: pode-se circundar um ponto qualquer da superfície por uma alça circular situada em sua vizinhança. Se cortarmos o cross cap segundo este traçado, obtemos um disco comum e um outro pedaço que guarda a propriedade möbiana de só ter uma face. (Fig. 7)
Em segundo lugar : pode-se traçar uma alça que parta de um ponto da superfície e atravesse uma vez a linha de intersecção Φ-Ω antes de se fechar no avesso exato do ponto de partida. Um corte segundo este traçado não divide a superfície mas a reduz a um disco. Separando os lábios do corte vê-se desenhar-se na abertura uma banda de Möbius virtual. (Fig. 8)
Fig. 8
Pode-se traçar alças de duas voltas. Para isso, partindo de um ponto da superfície, atravessa-se a linha de intersecção e depois, como um planeta em gravitação em torno de seu astro, gira-se em torno do ponto Φ para atravessar uma segunda vez a linha Φ-Ω antes de reencontrar o ponto de partida, desta vez do lado direito. Um corte segundo este traçado divide a superfície em um disco contornado que se atravessa a si mesmo e uma banda de Möbius, ela também bastante deformada por sua auto-travessia. Pode-se verificar no entanto sua respectiva natureza colorindo cada um destes objetos até encontrar uma borda. Fazendo isso, no final da operação teremos colorido apenas uma face do disco, mas a totalidade da banda de Möbius.
A banda de Möbius é o sujeito, na medida em que esse corte o revela. O disco centrado pelo ponto Φ é o que resta, o não möbiano escondido no cross cap, o objeto a. O conjunto dá a fórmula da fantasia: S◊a. (Fig. 9)
Fig. 9
Consideremos agora a banda de Möbius: trata-se de uma superfície limitada por uma única borda fechada, portanto circular. Pode-se colar nesta borda a borda de um disco. A superfície fechada assim obtida é umcross cap.
Mas um disco é uma superfície retrátil. É possível, por uma transformação topológica (ou seja, sem furá-lo ou esgarçá-lo) reduzi-lo a um ponto. Do mesmo modo um cross cap é uma banda de Möbius cuja borda foi retraída até poder fecha-la por um ponto comum “não möbiano”. (Fig. 10)
Fig. 10
Um cross cap é então uma superfície heterogênea, é a união de um disco e de uma banda de Möbius. O disco é uma superfície orientável, ou seja, na qual direita e esquerda se distinguem. A banda de Möbius é não orientável, pois basta fazer deslizar o desenho de uma mão esquerda ao longo da banda para transformá-lo, ao final de um giro, no desenho de uma mão direita.
Disco e banda de Möbius são então dois tipos de espaço muito diferentes e uma heterogeneidade fundamental se esconde portanto no cerne da homogeneidade aparente do cross cap, ou seja, da realidade “esférica” construída na fantasia. “É a topologia esférica desse objeto dito a que se projeta sobre a outra do composto heterogêneo que o cross cap constitui.” (L’Étourdit).
Observação : se tivéssemos colado na borda da banda de Möbius a borda de uma outra banda de Möbius, no lugar da de um disco, teríamos obtido uma garrafa de Klein. (Fig. 11). Esta última – que, por outro lado, tem muitas propriedades comuns com o cross cap – não possui portanto essa mesma heterogeneidade.
Fig. 11
Significação clínica das propriedades do cross cap
- Na ausência de borda, todo circuito pode se fechar. “Em nossas asferas, o corte, o corte fechado, é o dito. Ele faz sujeito: o que quer que ele circunscreva… (L’Étourdit). Com efeito, uma frase só toma seu sentido com o enunciado de seu último termo. O “sujeito” desta frase é então um efeito retroativo de seu fechamento.
- É possível passar de uma face à outra sem ultrapassar nenhuma borda, o que dá conta da possibilidade do recalque e do retorno do recalcado.
- é possível traçar alças duplas, ou seja, significantes. A alça dupla simboliza com efeito a diferença do significante consigo mesmo. Ela produz sujeito.
- Sua construção implica, como vimos, a equivalência dos contrários e responde portanto à lei do significante a = não a.
Mas ao menos Um ponto escapa a esta lei e vai dar à fantasia sua “gravidade”. Esse ponto de exceção, o falo, constitui o ponto que dá sentido a todos os outros, mas onde o próprio sentido se anula, salvaguardando a possibilidade do não sentido.
Nota: Na figura do cross cap, o lugar do falo pode ser discutido (Boletim da ALI n°113, 114). Lacan o situa no nível do ponto Φ, singularidade no centro da figura. (Singularidade quer dizer lugar de ruptura da continuidade de uma função). Esse ponto singular não pode, no entanto, ser considerado como concentrando em si mesmo a propriedade möbiana do cross cap. O disco destacado pelo corte em alça dupla (Fig. 9) não possui essa propriedade möbiana embora possua o ponto Φ. Esse ponto não é então o ao menos Um ponto möbiano. Charles Melman pôde dizer que é a linha Φ-Ω que representa o falo. É mais exato, pois ela, com suas duas extremidades, concentra com efeito a propriedade möbiana. Se a retiramos, resta apenas um disco.
Enfim, é possível demonstrar (cf. M.Darmon no Boletim da ALI n° 114) que toda imersão do plano projetivo (há outras além do cross cap) não induz forçosamente uma singularidade forte como o ponto Φ pois ela não pode se fazer sem linha de interpenetração. Então, é esta linha principalmente que resulta da presença escondida do falo no cross cap.
A heterogeneidade da estrutura do cross cap mostra que o imaginário da fantasia (S◊a) é fundado numa alteridade radical (mas também numa reversibilidade) entre o sujeito e o objeto, diferentemente do imaginário do espelho, fundado numa simetria entre o eu e sua imagem, simetria que induz entre eles uma rivalidade sem dialética.
O plano projetivo é a única das quatro variedades simples de superfície (esfera, toro, cross cap, garrafa de Klein) que possui a um só tempo todas essas propriedades que aliás não são independentes.
Por que dar uma representação visual do plano projetivo ?
Lacan não se interessa apenas pelas propriedades intrínsecas dos objetos topológicos. Ele leva em consideração propriedades que só aparecem quando esses objetos são imersos em nosso espaço em três dimensões, “em presentificação”. Ele trabalha com “figuras (embora esses objetos possam ser descritos unicamente por escritas matemáticas). Seria uma concessão ao que ele chamou de “nossa debilidade mental”, nossa alienação imaginária?
Talvez, mas trata-se sobretudo de levar em conta uma outra de suas hipóteses fundamentais, a saber, que três dimensões são necessárias para dar conta do sujeito: real, simbólico e imaginário. Essas três dimensões do sujeito podem definir um espaço, semelhante, numa primeira abordagem, ao espaço que aloja nosso corpo.
No entanto, o plano projetivo é um objeto que não pode ser mergulhado em nosso espaço R3. É bastante surpreendente que um espaço em três dimensões não possa alojar uma superfície que só tem duas. E no entanto tudo se passa como se essa superfície fosse pesada demais para se alojar no espaço de nosso corpo.
Em topologia, a noção de imersão “resolve” a impossibilidade do mergulho. Ela o faz ao preço de aceitar que um único ponto do espaço R3 corresponda a vários pontos diferentes e não vizinhos do objeto imerso.
Hipótese: Para o sujeito, essa super-ocupação do corpo pela linguagem traduz-se pelo que se chama de afetos. A angústia de “castração” seria assim a tradução de um excesso do corpo-linguagem no corpo vivo, evocando essa operação dita castração (operação simbólica). Descompletando o corpo-linguagem de seu objeto ela o torna apto a habitar o corpo vivo. Na ausência de tal operação simbólica (na psicose especialmente), a tendência a abrir realmente o corpo ou a retirar uma parte dele para aliviá-lo não é rara.
Alguns cortes atípicos
Vimos que o corte em alça dupla em torno do ponto Φ dá a estrutura da fantasia, separando o sujeito (banda de Möbius) do objeto a (disco). Ele revela assim a heterogeneidade que apóia o sujeito, não numa imagem de si mas em algo irredutivelmente diferente que sustenta sua divisão.
Existe um tipo de corte que só passa uma vez pela linha de interpenetração. Esse corte “simples” abre ocross cap e o reduz inteiramente a um disco. Esse corte pode ser considerado como o caso limite de um corte duplo cujos dois giros se aproximaram de tal modo que chegaram a se confundir. Nesse caso há perda da auto-diferença do significante. (ver Fig. 8)
Hipótese : Essa disposição evoca uma tentativa para um sujeito de se fazer representar por um significante sem perda de gozo (sem perda do disco). Um tal significante, cujo caráter decisivo o sujeito recusaria, perde sua auto-diferença e portanto sua natureza de significante. Ele se impõe sem fazer sentido para o sujeito. É possível reconhecer aí a origem do efeito psicossomático. Esse efeito se explicaria pelo caráter de sinal que um significante tornado unívoco assumiria assim para o corpo vivo. Esse sinal poderia anexar a si uma função biológica e desviá-la de seu funcionamento, no modelo do condicionamento pavloviano. (cf. “Inscrit, montré, non articulé” em Le trimestre psychanalytique, 1988, n° 5).
Um outro tipo de corte a considerar é aquele que não “concluiria” no segundo giro. Percebe-se então que ocross cap não permite que esse corte possa se fechar mais além. Diferentemente do toro, o cross capimpõe uma coerção muito estrita quanto ao número inteiro de giros. Se a alça dupla é mesmo a estrutura do ato, na medida em que o ato é significante, a falta de realização do ato leva a uma repetição infinita dos giros em torno do falo. Esse trajeto descreve uma espiral em que uma de suas extremidades se enrola em torno do falo, envolvendo-o cada vez mais, sem jamais atingi-lo. Inversamente, a outra extremidade se afasta cada vez mais do ponto Φ tendendo a se aproximar de si mesma. No limite, todo o cross cap é reduzido a uma lamínula biface.
Hipótese: Reconhecemos aqui o mecanismo próprio à neurose obsessiva. Por mais longe que o corte vá, ele nunca vai separar o cross cap em duas partes, o objeto permanece ligado. Daí resulta uma hipocondria específica e a sensação de invasão por pensamentos sujos ou obscenos. Poderemos aproximar disso as verificações vãs de toda ação que visa a fechar ou a fazer alça. Conhecemos também a incidência dos números não inteiros nessa neurose, a falta de fechamento do ato original perturbando o cômputo por inteiros. A falta de separação do objeto a tem por efeito que o real, como impossível, nunca é atualizado, mas apenas sempre procrastinado (adiado para o dia seguinte) num giro suplementar ilusório. (cf. “Topologie de la névrose obsessionnelle” em Le trimestre psychanalytique, 1992, n° 2)
Consultar também :
os Seminários de Lacan, em especial A identificação, A angústia, A lógica da fantasia.
os Essais de topologie lacanienne de Marc Darmon (edições da ALI).
1 NT – Para ler o texto original, em francês:
http://www.freud-lacan.com/fr/44-categories-fr/site/1273-Le_cross_cap_de_Lacan_ou_asphere
Tradução: Sergio Rezende