Marcel Czermak
O que é um aluno? Pergunta perigosa tratando-se de psicanálise, sobretudo aquela à qual Lacan tentou nos introduzir, desembaraçada dos formalismos cegos, mas preocupada em destacar as estruturas formais de seu próprio encaminhamento em que estão incluídos o psicanalista como participante do conceito de inconsciente, o sintoma como tecido no endereçamento transferencial e incompleto sem o Outro desse endereçamento. Pergunta tanto mais perigosa uma vez que o verdadeiro patrão é o analisante, e isso no momento mesmo em que ele acentua sua queixa de estar sob o jugo de quem vem encarná-lo. Vale perguntar-se se um psicanalista pode realmente ser chamado de aluno de um outro, levando-se em conta as fantasias que traz comumente esse termo, que vão da criação à promoção e até mesmo ao negócio: todas fantasias comuns na relação do mestre com seu discípulo.
A que altura é preciso levar o diálogo para que haja psicanalista? Lacan não gostava nada da palavra “aluno”, embora a empregasse. Mas que outro termo encontrar? Em particular, tratando-se do plano doreconhecimento, em que vemos frequentemente operar esses termos, observamos que eles são especialmente utilizados em contextos em que se poderia esperar, justamente, desembaraçar-se deles. Se, hoje, eu devesse formular uma vontade, seria a de que aquilo que nos reúne fosse o modo de reconhecimento da dívida própria a cada um em relação a Lacan e, ao mesmo tempo, o modo de reconhecimento do efeito produzido sobre aqueles que o praticaram durante sua vida, como sobre aqueles que o praticam agora que ele está morto.
Lacan não hesitava, em suas preliminares, em seus exames, do mesmo modo que em sua prática do tratamento, em registrar de que maneira pode partir e avançar um sujeito: ele enquadrava a conjuntura, especificava as coordenadas, o ponto de partida, e fazia com que isso fosse constatado. Em suma, ele realizava o que poderíamos chamar um inventário. Ele cuidava, efetivamente, de apontar os degraus, as viradas, os lugares em que as problemáticas se redirecionam, se invertem, se interrompem… o que ele chamava uma primeira introdução do sujeito à sua demarcação no real; o que ele não cessava, contudo, de colocar em operação a todo momento oportuno. Nós não podemos, aqui, fazer menos, tornando nossa conduta pública solidária às exigências do tratamento, quer dizer, incluindo nela igualmente o desenvolvimento da transferência, assim como sua interpretação.
Uma vez que é evidente que, quanto mais se tenta mentir, mais a mentira manifesta sua tendência à verdade, eu gostaria de partir aqui da constatação da ausência de diferença entre privado e público. Constatação da qual não se pode dizer que, tendo-a feito, o movimento psicanalítico tenha tirado dela muitas consequências. Assim, por exemplo, conhecemos em demasia esta maneira comum que os psicanalistas têm de se conduzir publicamente de um modo idealizado de serenidade, de força tranquila. Modo de estatuficação daquele a quem nada tocaria, que estaria enfim livre da castração, aliviado de sua divisão e desencarregado da preocupação de ter iterativamente que repetir sua operação… Resumindo, encontramos em muitos de nossos colegas a vontade de serem cadaverizados. O que é, certamente, e por uma astúcia bastante habitual do inconsciente, apenas uma maneira de se oferecer como objeto a ao desejo do Outro, em uma recondução de vontades de inanimação masoquista em que o instinto de morte se junta à mineralização da prática, quer dizer, da teoria, pois a prática psicanalítica é teoria, seus instrumentos sendo os próprios sujeitos operados.
Em suma, anestesia da prática contra a qual Lacan se insurgiu ao ponto em que puderam frequentemente acusá-lo de levar ao pior, de soprar o fogo enquanto ele apenas ressaltava que, o fogo estando lá, era tempo de se despertar. Igualmente poderão tachar – o que muitas pessoas não se privaram – a prática de Lacan de inconveniente. Quem não ouviu piadinhas sobre a duração das sessões, a distribuição dos pacientes nos cômodos, os diálogos “portas abertas”, as interpretações no corredor ou no saguão, a janela aberta e logo fechada novamente, os encontros em táxis… eu me esqueço do resto. De fato, o impressionante é constatar a solidariedade de encaminhamento, de conduta, a unidade do estilo de Lacan, em seu consultório, em sua apresentação de pacientes, em supervisão, no restaurante, em uma festa ou em seu seminário, quer dizer, sua maneira de recusar todo esforço para “representar o psicanalista”, assim como de se inscrever no jogo social. A psicanálise, ele não a vestia!
Como escutar esta fórmula de Lacan, de que o desejo do analista é o de uma “diferença absoluta”?2 É, para o analista, uma posição incômoda, que não pode ser de artifício. Posição tão fixa quanto movediça e desconcertante ao extremo. Des-concerto que supõe estar em posição correta no que concerne a cada um, referenciado em sua própria estrutura, com as consequências diretas que podem disso decorrer, ou seja: a quem tratar com simpatia? A quem tratar com desdém? Com quem insistir e quem frear? A quem dar? De quem tomar?…
Essa maneira de proceder não podia deixar de ser igualmente penosa a partir do momento em que, ultrapassando o limiar de um consultório, onde ela já se exercia suficientemente, vinha se estender ao conjunto da vida do homem. Percebemos que aqueles com quem Lacan tinha relações autênticas e uma fraternidade discreta – mesmo se esta tomava, às vezes, um viés abrupto – eram seus pacientes, isto é, justamente aqueles que, mais do que ninguém, poderiam achar que deveriam se queixar de suas maneiras. Aí se compreenderá o aspecto verdadeiramente desligado que Lacan podia ter em certas circunstâncias, quando estas reproduziam para ele o emaranhado comum das relações humanas, quer dizer, quando elas o lançavam nesse emaranhado. Desligamento que vinha, imediatamente, em contraste com sua extraordinária precisão, sua fineza imperceptível, sua delicadeza extrema no manejo de sua palavra, uma vez que ele operava no campo autêntico da linguagem, ao ponto mesmo de poder conduzir uma ação invisível. Da mesma forma, essas modalidades na troca, em que ele não produzia, às vezes, resposta audível senão àquele que interrogava, os outros ouvintes permanecendo perplexos quanto ao motivo de uma réplica que lhes parecia eventualmente inadequada, estranha, ambígua ou embaraçosa. Essas eram as maneiras que também se exerciam em sua apresentação de pacientes e da qual ele podia dizer que o que se desenrolava aí passava despercebido à maioria dos participantes, mas igualmente em seu seminário, que era alimentado por sua prática, onde as ocorrências eram numerosas, para seus analisantes, de encontrar resposta à pergunta feita na mesma semana durante a análise. Em suma, maneira de responder de outro lugar, diferente daquele onde se é esperado, seja porque a resposta seria inoportuna, ou de alcance inadequado, mas que permanece necessária e a faz produzir em um lugar especial: aquele onde se pode indicar que há lição e lição, onde se exerce o estilo indireto. Para falar como convém ao sujeito do inconsciente, para conversar com ele diretamente, é preciso esse equívoco da in-direção, que é o lugar mesmo de onde Lacan operava. Ele dizia a respei-to das pessoas que ele recebia: “Naturalmente eu não estou lá, em face dos candidatos, para ensinar a doutrina, a teoria, para retificar ou discutir, eu estou lá para registrar de que pé eles partem”3. Mas pode-se ver nisso também uma lição e, aliás, a respeito de sua apresentação de pacientes, Lacan evocava:
Não se pode dizer que eu possa registrar todo benefício da operação, pois eu estou na condição de quem examina, e são antes terceiros que estão aí que podem registrar esse benefício, desde que eles estejam aí comigo, na mesma condição, em relação à psicanálise. Quer dizer, em uma transferência de trabalho enodada à transferência de quem vem se confiar a mim.4
É, então, uma dimensão que participa ao extremo da necessária não-mestria daquele que se expõe quando ele o faz aos olhos, aos ouvidos de quem ele analisa. Maneira, em suma, de tentar que a pessoa faça obstáculo ao que a transferência supõe à função.
É possível permanecer insensível a esse modo de interpelação, de aparição, de palavras, de contestações, praticadas com seus pacientes em diversos lugares aparentemente heterogêneos, e até mesmo heteróclitos? Essa maneira de fazer solidária de uma prática – marcada pelo tempo e pelo espaço – dos limiares, das bordas, utilizados como tais em um manejo da intervenção e da interpretação, do olhar e da voz é totalmente impregnada da topologia que a linguagem implica e introduz às bandas de Mœbius, garrafas de Klein e outros cross-cap, às diversas cirurgias. Portanto, prática coerente com a topologia que Lacan desenvolveu, em seu aspecto de aparente falta de direção quanto às orientações recebidas e que não pode, no mundo em que estamos, senão ser julgada pejorativamente ao ponto de causar escândalo e principalmente junto àqueles que são os mais interessados nisso, pois cada um sempre se agarra à fixidez de seu lugar. Quando, efetivamente, se trata do objeto a em sua relação com a superfície que ele parasita, assim como de sua queda a ser produzida para que um sujeito faça emergência, estamos então, em cheio, em uma revisão da ética que perturba a significação atribuída ao amor (desculpa ao pior), em sua relação ao assassinato (o amor não valendo mais como desculpa) e à lei (pois ela não pode mais se fazer indulgente ao amor do qual ela procede em regra geral). Resumindo, relação do amor e do assassinato com a lei, na relação ao tempo e ao espaço enquanto sobredeterminados pelo significante. Muitos não veem em tudo isso senão pequenos esboços ilustrando um pensamento, sem que tenham necessidade na estrutura, enquanto eles não têm nenhum valor metafórico, mas testemunham, de preferência, um real que precisamente nos é barrado por causa do recalque. Há aí um aspecto crucial e não há razões o bastante para que aquele que não se apercebe dessa topologia possa apreender seja o que for da prática que lhe é homogênea, na medida em que uma prática se desenvolve em um espaço específico. E, quan-do é uma prática linguageira, deve-se lembrar que a língua não é “linguisteria”5 simples, pois ela comporta estruturações espaço-temporais próprias. Lacan, aliás, chegou mesmo a dizer: “A topologia é o tempo”6.
O inconsciente é, certamente, “estruturado como uma lingua-gem”7, mas, nesse caso, ele tem sua própria estruturação tempo-espacial, uma vez que são as sobredeterminações significantes que a produzem. É o que a psicose indica com uma crueza particular e é o que tentei mostrar estudando a síndrome de Cotard, pela qual o sujeito atingido nos diz não mais conhecer o tempo.8 Até o presente, poucos se interessaram analiticamente pelas relações do tempo e do espaço e por sua determinação. Contudo, como ritmar o tratamento para que um sujeito se reconheça como efeito de ritmo?9 Como medir o tempo para que ele adquira valor lógico, desembaraçado das cronologias que o camuflam? Como lhes dar, por sua operação prática, seu verdadeiro alcance significante, quer dizer, manifestar sua solidariedade na palavra do sujeito? Como apontar a proximidade da numeração, do cômputo, da contagem com o que vetoriza uma temporalidade organizada em um espaço fundamentalmente não métrico e não euclidiano, onde, no entanto, é preciso passar pela alienação contável e métrica a fim de não produzir uma alienação maior ainda?10
A partir daí, parece-me difícil não considerar que Lacan nos deu uma lição, talvez a mais difícil de todas, pois ele fazia o que dizia. Lição a mais difícil, pois a mais inapreensível, já que é traçada na própria superfície temporal onde ele se deslocava, cada vez diferentemente, com aquele com quem ele falava. É o que se poderia chamar falar verdadeiramente ao outro; pelo que, aliás, seus analisantes, eventualmente, o reprovavam. Em que se pode sentir que, a posição do analisante, é antes ele que a mantinha, e sabe-se o que foi sua extraordinária atenção, como igualmente o que foi sua preocupação com um bem-dizer partilhado. Há, portanto, do que rir ao se ler, por exemplo, sob a pluma daquele que estabelece seu seminário, que “não há obra oral”11, portanto, só a obra escrita seria uma obra. Reescrever a obra oral como ela é, quer dizer, por garantia legal, volatiza precisamente todo o agenciamento espaço-temporal, os ritmos, os atrasos, as precipitações, as discordâncias e reviramentos, as rupturas e continuidades, as aporias próprias à topologia autêntica daquele que ensinava. Eu só posso me espantar que alguns digam “os seminários não são dignos de fé” (de que então? Além disso, tratando-se de fé, será que eles não despertariam fé o suficiente?). Os seminários seriam, portanto, muito contraditórios, muito sinuosos. Apenas os escritos seriam dignos de fé.12 Para o analista, essa posição só pode ser falsa. Certamente, entre o escrito e o oral, as exigências são distintas. É precisamente a extirpação do que sustenta a função oral – agenciamento de palavras nascentes, virtualidades imaginárias… – que produz o escrito, seus encaminhamentos e suas vozes: “Que se diga fica esquecido atrás do que se diz no que se ouve”13.
No final da Ética, Lacan se perguntava em que daria o Livro quando ele fosse completamente comido14. Em relação a isso, podemos dizer que nós estamos aí, pois, quanto ao que vem de Lacan, seu ensino é refabricado em livro por quem não o emitiu de forma alguma – é o que se chama ter status de co-autor15– e vendido em porções com exercícios minuciosos dos direitos de alimentação. Esquecem-se simplesmente que, se se aferram tanto a empanturrar-se com o livro, é antes em razão daquilo que o próprio Lacan insistia em recordar a propósito do monstro Chapalu de “L’enchanteur pourrissant”16, de Apollinaire: “Aquele que come não está mais só”17.
Lacan não se empanturrava com o Livro, apesar de suas imensas leituras, e é talvez uma das coisas que o tornavam insuportável a seus próximos, ao ponto de que, atualmente, para não se sentir só, é preciso acomodá-lo na comilança. Nós vamos fazer uso dele da mesma forma? Apontando esse medo da solidão contra o qual cada um luta incorporando o autor do livro, Lacan fixava seu próprio des-apego da incorporação e sua passagem para essa solidão específica que o des-apego do Pai ordena. Ele encontrava aí, se podemos dizer, sua base própria: passagem da oralidade a um equilíbrio sem canibalismo, lugar onde se indica a solidão assumida de uma rota sem assistência no Outro, do qual, no entanto, se mantém a remanência, sem a qual nenhuma troca mais se organizaria.
E o preço a pagar? Se o único diálogo verídico permanece o diálogo analítico, é o paciente que possui a melhor parte, pois ele pode dizer tudo, deve dizer tudo, enquanto esse não pode ser o caso para o analista. Em outros termos, designei Lacan como esse analisante especial, pois, em sua expectativa do dizer do outro e na solidão assumida de um desaparecimento da incorporação do outro, indica que a crueldade da psicanálise se exerce antes de tudo sobre o psicanalista, que a castração é antes de tudo e sobretudo para ele, que é apenas daí que ele pode, como convém, proceder em sua operação
Temos aí, então, uma posição subjetiva verídica, espontânea, não forçada, sem afetação. Ela se liga ao lugar mesmo em que um homem vem se alojar na estrutura do diálogo e permite analisar, para além de todo artifício técnico, apenas servindo como guia aproximativo para aquele que nele não está. É uma posição, em seu limite, de extrema proximidade e de afastamento último, de uma diferença irredutível. Ela pôde, no que concerne a Lacan, dar esse sentimento de que ele operava numa bolha de vidro, mesmo conduzindo seu ofício em uma proximidade perturbadora. É uma posição de uma dissimetria radical com quem chega ao campo da análise.
Maneira, igualmente, de dar conta do caráter de orientação aguda de um modo de ação, simultâneo ao caráter de desligamento aparente que pode a ele se associar. E, nesse movimento que leva o desejo do psicanalista em direção à diferença absoluta, em que se indica o que é a castração na medida em que ela é subtração ao que correntemente ordena a vida de trocas e sustenta cada ser humano, aparece então a dimensão cruel da figura do psicanalista. Mas a crueldade sem maldade, exercida, primeiramente, em relação a si próprio e que, quando assim ela é expe-rimentada pelos mais próximos como uma crueldade indevida, leva a esquecer sobre quem ela se exerce, antes de tudo, uma vez que seu exer-cício não é nem de artifício nem de forçagem. Crueldade sem sadismo e sem masoquismo, em que o sofrimento – o verdadeiro sofrimento – emerge, para indicar o jugo imbecil ao qual se submetem os seres humanos, que mantêm a reivindicação dirigida a um Outro, cujo bel-prazer os faria servos. O verdadeiro chicote é o do significante e é aí que jaz o verdadeiro sofrimento. O psicanalista é uma figura tanto mais cruel quanto ele atualiza, no que pode ser sua dor sem pena, o caminho, o verdadeiro, aquele que espera quem quer se engajar. Sem isso não há escolha senão a idiotice.
A castração própria ao psicanalista, Lacan a presentificava ao psicanalisante como sendo o que o esperava no caminho. Ele a atualizava sem vergonha e pouco ligando para toda justiça distributiva, pois é o inconsciente que não liga para ela. O que é que é uma castração que não porta mais nenhuma queixa, mesmo se ela supõe sua própria dor, significada sem que dela se aperceba, pela colocação a meio mastro da bandeira que a consagraria a fazer alarde do Outro? Para dizê-lo de outra maneira: guardar suas lágrimas no registro do objeto a ou ainda deixá-las ao imenso leito que faz o rio dos sofrimentos humanos. Quer dizer: não mais se empanturrar com o Livro, não mais se aliviar nessas águas. O psicanalista come “nada”.
Nesse processo que vai em direção à retificação das relações do su-jeito com o mundo, como podemos adotar, atualmente, uma posição justa, se nos limitamos a repetir o que é do ensino de Lacan, ou seja, por exemplo: “um significante é o que representa o sujeito para um outro significante”18, “o sintoma só se interpreta na ordem do significante”19, “o sintoma é a verdade na medida em que ele só se instaura na cadeia significante”20? Efetivamente vemos que, quanto mais esses aforismos soam – incluindo “o inconsciente seria estruturado como uma linguagem” –, mais eles adquirem valor sintomático do refrão. Há aí uma nova maneira mais camuflada de pedir socorro ao Outro. Efetivamente, se, no momento em que se convocam essas fórmulas mais pertinentes, utilizando-as como proteção, alojamento, até mesmo como alimento, elas só reconduzem à problemática contra a qual estavam destinadas a operar.
Lacan zombava, em “Variantes do tratamento-padrão”, do “forma-lismo prático: seja do que se faz ou, antes, do que não se faz”21. O que vale igualmente para a cantilena de suas fórmulas e para os mimetismos de sua prática, fazendo esquecer que uma ética não tem variante, pois, como se trata da psicanálise, ela opera de maneira homogênea à estrutura em causa. Isso não impede que – mesmo se, sempre nesse mesmo texto, Lacan escreveu que nos psicanalistas “a manutenção das normas cai cada vez mais na esfera dos interesses do grupo”22, “trata-se menos então de um standard que de standing”23 –, por um reviramento que deveria merecer todo o nosso interesse, sua oposição aostanding pôde, às vezes, conduzir ao standing de um não-standard. O que se pode chamar: maneira nova de arbitrar as elegâncias, em que a reiteração dos interesses de grupo recomeça a prevalecer sobre a manutenção de normas próprias à psicanálise, que não têm nada a ver com o formalismo prático. Em um dos primeiros números de Scilicet, Lacan lembrava que, a partir do momento em que o fio autêntico da práxis se perde, os homens tornam a cair na tentativa de exercer um imaginário poder – como é, na história dos homens, habitual. E pode-se medir esse fato atualmente – pois aí ainda a história se repete – pela maneira pela qual Lacan vale hoje – quer dizer, se mostra negociável –, tendo sido ele mesmo degradado, tanto em sua vida quanto agora em sua morte, a um objeto com valor comercial, protegido juridicamente, com cofre-forte e interdição de uso, dos quais participam, aliás, as ofertas públicas àqueles que se quer seduzir.
Se a psicanálise ensina que o sujeito ex-siste a seu sexo, como à sua vida de ser vivo, é propriamente essa dimensão que tende a ser apagada pelo mundo moderno, que instala na promessa, sobre o modo de bens a adquirir, de uma resolução das inadequações. Concebe-se, então, que a neurose só pode se ampliar constatando como os procedimentos que nós acabamos de lembrar infiltram a própria psicanálise. Então permanece intacta a pergunta: de onde vem que em seu final a operação de Lacan tenha levado alguns ao ponto mesmo que seu ensino tentava desmontar? Certamente, essa é a consequência do declínio da função do Nome-do-Pai, inclusive na psicanálise. A vontade de ser “nomeado para”, que substitui a função do Nome-do-Pai, cria círculos de ferro que continuam a nos estrangular.
Lacan, ao situar a maneira pela qual o encarceramento do objeto a
na vida psíquica de cada um operava seus efeitos de submissão, tinha uma prática de desincorporaçãodo objeto. Colocando quem se endereçava a ele em postura de ter que manifestar até que ponto extremo ele mantinha seus modos de submissão, ele o levava a saber se queria, verdadeiramente, mantê-los ou largá-los. E um dos efeitos de sua prática foi, então, em alguns, o de uma recepção de sua teoria do objeto a sob o modo de uma positivação própria à perversão, próxima da troca dos bens na economia de mercado, fornecedora de mais-valia identificada ao mais-de-gozar, e reiteradora, sob o modo camuflado, das próprias alienações que a prática mais desalienante possível visava a fazer cair.
Então, como é habitual, operaram-se adiamentos e acting-out diversos, escarros ou regurgitações do Nome-do-Pai, vômitos do objeto a identificado ao pai como nome, ou ainda retenções inconfessáveis… Em resumo, questões de esburacamento. Como encontrar uma saída que não seja uma forçagem do real? A psicanálise é menos uma prática ou uma teoria que uma ascese e uma ética em operação. Ela coloca o ato no cerne da política do psicanalista, uma vez que aí se conjugam a transferência, a identificação, a interpretação, a castração. E permanece, sem dúvida, a razão, precisa, dessa sucessão de seminários, que vão de O desejo e sua interpretação24 a A identificação, passando por A ética da psicanálise e A transferência25.
Evocando o que o havia conduzido a falar da beleza em A transferência e A ética da psicanálise, Lacan diz que nesse último seminário ele “abordou exatamente a função dessa barreira da beleza sob a forma da agonia que exige de nós a coisa para que nos juntemos a ela”26. A prática de Lacan jamais levou à identificação e ainda menos à unificação à coisa, mas antes ao inverso, enquanto a beleza só emerge como última barreira antes da morte do sujeito, preludiando a sua unificação à coisa. Nessa mesma medida, podemos ressaltar que a prática de Lacan não era certamente preocupada com a beleza, nem dirigia para a cultura dos sentimentos do belo: ela não tinha nada de estética. E, curiosamente, é essa radicalidade mesma que pôde fascinar, ser considerada bela, incluída no horrível: horrivelmente bela, na medida em que era desconhecido que não é porque um homem circula no “entre-duas-mortes”27 que ele desapareceu como sujeito e que ele se juntou ao objeto. Desconhecimento de que se possa circular no “entre-duas-mortes” ao preço da castração, que é, pois, uma circulação no inferno, sem junção nenhuma com a coisa inominável. Para dizê-lo de outra forma, a coragem sem queixa e sem forçagem, da qual Lacan deu prova em seu próprio movimento, pôde produzir um efeito verdadeiramente estético sobre alguns, que aí viram a promessa da coisa enfim capturada, lá onde se tratava de seu inverso, a coisa enfim abandonada, como o medo que acompanha sua busca. Que um tal sujeito possa produzir esse efeito estético se sustenta no fato de que circular na mesma zona onde circulam os loucos, mas sem ser um deles, leva, facilmente, a ser tomado pela coisa inominável, o a. Lacan podia, então, aparecer para alguns como um zumbi, um morto-vivo, um perdido nesse mundo, enquanto ele foi um dos homens mais vivos possíveis. É uma indicação, finalmente, bastante encorajadora, para um grande número, da discordância a que pode trazer a psicanálise com o mundo que nos rodeia. Um sujeito se engaja na psicanálise em razão de sua discordância manifesta em seus sintomas, e em seu final o que ele encontra? Uma discordância maior. Ela abre mão dos sintomas, incluídos os sociais, em que ela se mascara comumente, e vem fazer barulho no concerto homogêneo de vozes falsamente supostas estar em desacordo, que são aquelas mesmas que agitam o discurso comum. “Paixão da ignorância” oposta à paixão do objeto28, enquanto uma esclarece e a outra obscurece, mas é daí mesmo que nosso século de obscurantismo vem normatizar o lugar de onde a psicanálise se enraíza. Compreende-se, talvez, por que, na própria psicanálise, é atualmente o século que tende a uma revanche. Tarefa, para aqueles que acham seu discurso intragável, de reformulá-lo, quer dizer, de se tornarem novamente esses porta-vozes que devem ser os psicanalistas. A menos que eles julguem essa tarefa excessiva, que eles vomitem sua própria ascese, compreendida aí sob a forma: “eu não decido nada, eu não tenho nenhuma certeza”. Modo de fuga habitual ao psicanalista. Ora, Lacan insistia em dizer:
O inconsciente se fecha (…) na medida em que o analista não porta mais a palavra (…). É por isso que o analista deve aspirar a tal domínio de sua palavra, que ela seja idêntica ao seu ser (…). O ser do analista (…) está em ação mesmo em seu silêncio, e é na estiagem da verdade que o sustenta que o sujeito pronunciará sua palavra.29
A palavra do psicanalista deve ser desinteressada para poder portar a palavra. Mas essa palavra só pode ser desinteressada sob a condição do despojamento extremo imposto pelo desejo da diferença absoluta, que é o de uma castração reiterada incessantemente. É, então, somente assim, que o analista circula sem muito medo, sem ódio, sem culpabilidade – para retomar o título do artigo célebre de Ernest Jones30 – na zona do “entre-duas-mortes”. Ao funcionar aí, o psicanalista recorda – e Lacan o manifestava em seu estilo impaciente, em seus vaivéns, em suas insistências, em suas recusas de levar em consideração a diferença entre o dia e a noite, entre os feriados e os dias comuns – que nós somos contadores de um tempo que nos é contado, quando nós circulamos no próprio lugar da gelificação do tempo, em que nossos sentimentos, dizia ele, têm apenas um lugar possível nesse jogo, o do morto, e que, ao reanimá-lo, o jogo continua sem que se saiba quem o conduz. Eis por que o analista é menos livre em sua estratégia que em sua tática: ou seja, sua política em que ele faria melhor em se orientar por sua falta a ser de que por seu ser.
É, portanto, uma prática a-sentimental em que os sentimentos têm o lugar do morto. Mas, igualmente, o que há de mais fascinante – e as perversões o demonstram – do que aquele que é capaz de fazê-los calar para agir na separação do que ele sente, e até mesmo contra isso? Pressente-se facilmente a recondução da fantasia de dominação infatigável para quem não apreendeu que o verdadeiro mestre é a morte31, que não é nenhum objeto e, certamente, não é este objeto a que é o morto, mesmo se ele encarnasse em um vivo muito vivo.
É aí que eu volto ao início deste artigo, em que eu evocava a prática desconcertante de Lacan, ou seja, o que era a verdadeira mola de sua ação e sem a qual todo o resto é apenas depósito, confiado à necessidade dos depositários legais. Maneira, afinal, que teve Lacan de nos prestar o mais eminente dos serviços: aquele de nos obrigar a retomar por nossa conta a interrogação sobre a mola verídica de nossa prática. Sabemos como ele se conduzia de um modo a fazer obstáculo ao sonho maior do amor – fazer um com o outro –, assim como a desmontar a fantasia da comunicação. Ele sustentava uma fundamental posição de incompreensão. Ele ironizava mesmo: “Eu não sou um homem compreensivo”. Sua prática, assim como seu ensino, tinha – e como poderia sê-lo de outra forma? – o traço de suas feridas: homem ironizado, rejeitado, não reconhecido, querendo vencer a IPA, empreendendo uma relação ambígua com a universidade, com lamentos imensos no momento mesmo em que ele denunciava seus discursos e suas práticas, querendo subverter o campo das psicoses, portanto, da psiquiatria – que até hoje não tem cura para elas! –, modificar o curso das disciplinas afins, revisar a ética a partir do objeto a. Essas feridas, tanto mais vivamente percebidas quanto mais eram veladas, levavam numerosos entre nós a querer, como é comum, preencher completamente sua falha tomada por sua demanda, a tentar reduzir uma solidão, no entanto, inerente ao próprio caminho do psicanalista, a procurar reparar o que podia parecer uma injustiça passível de lhe ser feita, esquecendo-se de que somente desses lugares poderia surgir o discurso psicanalítico.
Nós assistimos, então, à reiteração do que Lacan evocava em “Do sujeito enfim em questão”: “Talvez se veja mais claramente ao purificar o dito sujeito das preocupações que resume o termo de propaganda: o efetivo a estender, a fé a propagar, o standard a proteger.”32
Reiteração das religiões de propaganda em seus temas de salvação e onde, sobre o modo gnóstico do reviramento dos termos revelados, se pode fazer religião de propaganda invocando o “não há salvação” que, em sua própria denegação, porta traço da afirmação que ele quer recobrir.
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* In: CZERMAK, M. PATRONIMIAS – Questões da clínica lacaniana das psicoses. Rio de Janeiro: Tempo Freudiano, 2012, p. 283.
1 Esquisses Psychanalytiques, nº 15, nota 1, 1991. Artigo modificado e condensado a partir de um texto anterior: “La pratique raisonnée de Jacques Lacan”. In: Le Discours Psychanalytique nº 1, fevereiro de 1989. Agradecemos a Claude Dorgeuille e a Le Discours Psychanalytique pela concessão que foi dada a esta publicação.
2 “O desejo do analista não é um desejo puro. É um desejo de obter a diferença absoluta, a que intervém quando, confrontado com o significante primordial, o sujeito vem, pela primeira vez, à posição de aí se assujeitar” (grifo meu). LACAN, J. O seminário, livro 11 – Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985, p. 260.
3 Id. “Pétit discours aux psychiatres” (10/11/1967). Transcrição do Cercle Psychiatrique H. Ey de Sainte-Anne.
4 Id. Notas pessoais. Cf. também LACAN, J. “Contribuição da psicanálise à semiologia psiquiátrica”. In: CZERMAK, M. & JESUÍNO, A. (Orgs.). Fenômenos elementares e automatismo mental. Rio de Janeiro: Tempo Freudiano, 2009, p. 34. (Ver a citação de Lacan no final deste artigo)
5 Cf. Id. “A Terceira. In: Cadernos Lacan vol. 2. Porto Alegre: APPOA, 2002.
6 Id. La topologie c’est le temps (1978-9). Inédito.
7 Aforismo lacaniano frequentemente posto em equivalência com “o inconsciente é o discurso do Outro”. Cf. Id. “O engano do sujeito suposto saber”. In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003, onde eles estão correlacionados, pois para “reencontrar o inconsciente”, é preciso “forçá-lo” (grifo do autor).
8 Cf. CZERMAK, M.“A significação psicanalítica da síndrome de Cotard”. In: Paixões do objeto. Porto Alegre: Artmed, 1991.
9 Lacan insiste muito sobre a função abertura/fechamento do inconsciente. LACAN, J. O seminário, livro 11 – Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise, op. cit, p. 46. (Ver a citação de Lacan ao final.)
10 Quem não se lembra da interrogação de Lacan no seminário R.S.I. (lição de 14/1/75)? (Ver a citação de Lacan ao final.)
11 Cf. MILLER, J.-A. “Entretien à propos de l’établissement du Séminaire de Jacques Lacan”. In: Le Bloc-Notes de la Psychanalyse nº 4, 1984, p. 12.
12 Cf. Ibid. Aquele que estabelece o seminário de Lacan escreve que a contorção de seu pensamento foi para Lacan uma verdadeira maldição. Nós sabemos, ao contrário, baseados em nossa experiência psicanalítica, que não há psicanálise sem essa mesma contorção… Conclusão: a psicanálise seria, portanto, uma verdadeira maldição?
13 LACAN, J. “O aturdito”. In: Outros escritos, op. cit.
14 Id. O seminário, livro 7: A ética da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997, pp. 385-6 e 390. (Ver as citações de Lacan ao final.)
15 “Tenho juridicamente o status de co-autor”. MILLER, J.-A. “Entretien à propos de l’établissement du Séminaire de Jacques Lacan”. In: Le Bloc-Notes de la Psychanalyse, op. cit.
16 APOLLINAIRE, G. “L’enchanteur pourrissant”. In: Oeuvres en prose I. Paris: Pléiade, 1977.
17 Ibid, pp. 38-9. Lacan faz esta referência a Apollinaire, que eu saiba, duas vezes: O seminário, livro 3 – As psicoses, Rio de Janeiro: Jorge Zahar, p. 362; L’identification – séminaire 1961-62, lição de 29/11/61.
18 LACAN, J. “Subversão do sujeito e dialética do desejo no inconsciente freudiano”. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998, p. 833.
19 Id. “Do sujeito enfim em questão”. In: Escritos, op. cit, p. 235.
20 Como a própria verdade. “O sintoma (…) é verdade, por ser talhado na mesma madeira de que ela é feita, se afirmarmos materialis-ticamente que a verdade é o que se instaura a partir da cadeia significante”. Ibid.
21 Id. “Variantes do tratamento-padrão”. In: Escritos, op. cit, p. 326.
22 Ibid, p. 329.
23 Ibid.
24 Id. Le désir et son interprétation – séminaire 1958-59. Edição não comercial da Association Lacanienne Internationale.
25 Id. O seminário, livro 8: A transferência. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1992.
26 Id. L’identification – séminaire 1961-62. Edição não comercial da Association Lacanienne Internationale. Lição de 15/11/61 (grifo meu).
27 Ou seja, esse lugar “balizado em uma topologia (…) sadiana”, onde se desenrola o “destino trágico”. Id. O seminário, livro 8: A transferência, op. cit.
28 Na medida em que ela é da ordem da “paixão do ser”. Cf. LACAN, J. “Variantes do tratamento-padrão”. In: Escritos, op. cit, p. 360. (Ver a citação de Lacan no final deste artigo.)
29 Ibid, p. 361.
30 JONES, E. “O medo, a culpabilidade e o ódio”. In: Théorie et pratique de la psychanalyse. Paris: Payot, 1969.
31 Lacan qualifica a morte de mestre absoluto. Cf. LACAN, J. “Variantes do tratamento-padrão”. In:Escritos, op. cit, p. 350.
32 Id. “Do sujeito enfim em questão”. In: Escritos, op. cit, p. 230.
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NOTAS (CITAÇÕES COMPLETAS)
NOTA 4: “Num certo momento, Lemoine tomava notas sobre tudo o que se contava nessas apresentações. […] Não vejo por que não se instauraria isso como um certo método de exploração e de interesse por essas coisas. Penso que é profundamente motivado na estrutura que isso possa ter esse relevo, que, no fim das contas, aquele que poderia inscrever o benefício semiológico da coisa não seja nem mesmo forçosamente idêntico àquele que conduz o exame, mas que não pode conduzi-lo de outra maneira por estar ele mesmo numa certa posição que é a do psicanalista”. LACAN, J. “Contribuição da psicanálise à semiologia psiquiátrica”. In: CZERMAK, M. & JESUÍNO, A. (Orgs.). Fenômenos elementares e automatismo mental. Rio de Janeiro: Tempo Freudiano, 2009, p. 34.
NOTA 9: “Não cessei de acentuar em minhas exposições […] a função de algum modo pulsativa do inconsciente, a necessidade de desvanecimento que lhe parece ser de algum modo inerente – tudo que, por um instante aparece em sua fenda, parecendo ser destinado, por uma espécie de preempção, a se cicatrizar […], a escapulir, a desaparecer” (grifo do autor). LACAN, J. O seminário, livro 11 – Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise, op. cit, p. 46.
NOTA 10: “A ciência conta. Ela conta a matéria […]. O que o inconsciente tem de contável nele? Não digo algo que não possa contar, falo do contável, esse personagem que vocês conhecem, ‘escrevinha’ em algarismos, e eu pergunto – há algo de contável no inconsciente? É realmente evidente que – sim.Cada inconsciente é contável. E um contável que sabe fazer as adições, as multiplicações, ele não está ainda nelas, é o que o embaraça. Mas contar os cortes, eu sei que ele sabe fazer isso? Ele é extremamente desajeitado – mas ele deve contar no gênero desses nós. É daí que procede esse famoso sentimento de culpabilidade, que faz as contas e não se encontra nelas, jamais se encontra nelas. Ele se perde em suas contas.” LACAN, J. R.S.I. – séminaire 1974-75. Edição não comercial da Association Lacanienne Internationale. Lição de 14 de janeiro de 1975 (grifos meus).
NOTA 14: “Comer o livro é onde tocamos com o dedo o que quer dizer Freud quando ele fala da sublimação como uma mudança não de objeto mas de objetivo […] A fome de que se trata, a fome sublimada, cai no intervalo entre os dois, porque não é o livro que nos enche o estômago. Quando eu comi o livro eu não me tornei, no entanto, livro, o livro também não se tornou carne. O livro me torna, se me permitem. Mas para que essa operação possa se produzir […] é preciso antes que eu pague algo […]. Sublimem tudo o que vocês quiserem, é preciso pagar com alguma coisa. Esse algo se chama gozo. Essa operação mística, eu a pago com uma libra de carne.” E ele encerra a Ética com esta interrogação: “Daquele que comeu o livro […] pode-se […] fazer a pergunta – ele é bom, ele é mau? […] O importante não é saber se o homem é bom ou mau em sua origem, o importante é saber em que dará o livro quando ele for totalmente comido”. LACAN, J. O seminário, livro 7 – A ética da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997, pp. 385-6 e 390.
NOTA 28: “A ignorância efetivamente não deve ser entendida aqui como uma ausência de saber, mas igual ao amor e ao ódio como uma paixão do ser; pois ela pode ser, à sua maneira, uma via onde o ser se forma.” LACAN, J. “Variantes do tratamento-padrão”. In: Escritos, op. cit, p. 360 (grifo meu).