Ana Cristina Manfroni
A palavra felicidade é apresentada em quase todas as línguas, diz Lacan1, em termos de reencontro. Em francês2 ela joga com o termo bonheur e sua decomposição em bon (boa) heur (sorte, fortuna) – assim, felicidade é também um bom presságio, um bom reencontro, tem a dimensão de augúrio. No inglês, em happiness há happen que é um acontecimento, um encontro, marcando o caráter feliz da coisa3 . O que se acentua, principalmente, como vindo da própria palavra, é essa condição de reencontro, de sorte, presságio, algo por advir.
Lacan diz da felicidade que, na verdade, ninguém sabe o que ela é. Só lhe damos um saber se a definimos de um modo que é bastante triste, isto é, a felicidade é ser como todo mundo. Reduzimos o sujeito ao autonomus Ego, ao ego ao abrigo de conflitos. 4
Ser como todo mundo – essa identidade da coletividade e da igualdade – nos coloca então a questão daquilo que poderíamos chamar de “uma felicidade de direito”, do direito ao bem-estar de todos, a uma felicidade positivada nessa redução ao eu autônomo. Esse é um anseio constitutivo, me parece, do homem moderno.
Não é pelo fato de que a escravidão em nossa sociedade não seja reconhecida, que ela está abolida, diz Lacan5. No interior de cada participante de nossa sociedade, Lacan encontra uma servidão básica, generalizada, atrás da qual se evidenciaria a presença de um discurso secreto, uma mensagem de liberação que subsiste sob a forma de recalcado. Um discurso que, para ele, provocou uma profunda modificação social e que chama de ‘a mensagem da fraternidade’. Algo novo, portador de uma moral fundada nos esforços e intenções do bem e da virtude.
Na mensagem da fraternidade humana Lacan, numa articulação com o mito do assassinato do pai, reconhece somente uma origem que fundamenta e organiza toda a sociedade e em primeiro lugar a própria fraternidade, que é a segregação6 . Mas, se ao discurso da fraternidade se encontra vinculado um recalcado discurso de liberdade, quando esse discurso de liberdade não é mais secreto e se apresenta patente, ele revela, na revolução moderna, o fato de que é, na verdade, um discurso profundamente alienado tanto em relação ao seu fim quanto ao seu objeto 7. Para Lacan tudo o que a ele se liga é o inimigo mesmo de todo progresso, no sentido de alguma liberdade, e nos condena a um tipo de determinação muito específico.
É um discurso que se articula na representação de um certo direito do indivíduo à autonomia: o homem moderno é aquele que necessita se instalar no campo de onde possa afirmar sua independência tanto em relação a qualquer senhor, quanto a todo deus. É o campo de sua irredutível autonomia, de sua existência individual. Um discurso delirante, diz Lacan.
Os direitos do homem, o direito à liberdade e o direito à felicidade indicam, em cada um de nós, homens modernos, um discurso íntimo, pessoal, que nos impõe a questão da problemática de sua conciliação com o discurso do outro, com a conduta do outro, de nosso próximo. Eis que, para Lacan, todo homem moderno o é nessa duplicidade discursiva do sujeito que é o seu eu, ao qual a experiência analítica está profundamente ligada. O eu de todo homem moderno é discordante e derrisório e sua “felicidade” é triste, posto que autômata, autônoma, anônima, é como a de todo mundo.
O pacto simbólico, um pacto que não é propriamente livre posto que se funda na palavra dada, nos coloca a questão mesma da emergência do sujeito. Poderíamos dizer que aquilo que o direito estabelece, se antecipa – e com isso elimina – o pacto. Preestabelece um campo de ação já dado, discursivamente marcado, um campo de ação para o eu do homem moderno, para o Sem-Nome8, colocando uma segunda barra sobre o sujeito.
Manter o pacto simbólico, o fundamento da palavra, nos leva necessariamente à grande dificuldade que encontramos com o constrangimento que as leis da linguagem nos impõem, um espaço que não é propriamente iluminado. Lacan9 já alertou para o peso obscurantista da palavra, mas esse obscurantismo, se é um defeito – nos impede o entendimento, a compreensão, nos leva aos equívocos -, é também seu benefício mais evidente. Em seu ensino, Lacan diz que vem indicando sempre, no trilhamento do simbólico, a funçãodessas luzezinhas chamadas estrelas, luzes através das quais os homens se iluminam. Foi isso que lhes permitiu, diz ele, manifestarem uma felicidade experimentada na noite transparente. Mas quando, ao obscurantismo da palavra, se junta a religião – “na crença da Revelação que atribui a Deus o ‘faça-se a luz’”, ele se duplica. E quando se acrescenta aí a filantropia, poderíamos tomá-la como um dos efeitos da fraternidade – ele se triplica. Alcança seu auge num obscurantismo quadruplicado pelo progressismo – aí, diz ele, já é a noite negra.
E a experiência analítica se liga aí, profundamente, renunciando à tendência de uníssono com o discurso corrente, comum, renunciando à condenação da decadência dos costumes e da perda do essencial do homem, renunciando às elaborações de todos os aspectos sociais que sejam de ordem moral ou pedagógica. Como sua matéria é ética, ela parte justamente do mal-estar como sintoma, daquilo que nessa duplicidade discursiva revela o que mais escapa ao homem moderno: a inscrição do próprio sofrimento do ser e suas determinações de estrutura. Ela faz sua entrada visando um efeito discursivo na topologia do sujeito já que “o eu está indissoluvelmente ligado a esse tipo de mão morta, de parte enigmática e insustentável, que constitui em parte o discurso do homem real com que lidamos em nossa experiência, esse discurso estranho no seio de cada um enquanto ele se concebe como indivíduo autônomo.”10
A mão morta não seria, então, passível de ser amputada, nem mesmo de ser reabilitada ou negada – ela também constitui o discurso do homem real. Se é parte integrante desse discurso está justamente no ponto fundamental dessa estrutura onde o sintoma, evidência dessa injunção, não pode ser abolido. Cada um, convocado como sujeito, carrega em seu movimento de aparição e evanescência, essa mão morta à qual, por um lado, tende a se reduzir para escapar dos constrangimentos que a ética do seu desejo enquanto desejo do Outro lhe impõe e, por outro, é o que faz com que, na consistência desse peso morto que carrega, possa seguir seu trabalho de ser apenas representado na cadeia significante. Se o sujeito e a mão morta são tributários do que nos fez modernos, é na própria oscilação embaraçosa entre a vontade de desaparecer, de virar um nada, de nos reduzirmos à anonimía da mão morta enquanto um corpo e a vontade de sermos grandioso objeto fálico, inofuscável mão ereta, que tentamos escapar das convocações da ordem significante.
Mas então o que é a felicidade? Freud em Mal-estar na cultura aponta a busca da felicidade como fim último do homem e como sua demanda fundamental. Lacan11 lê aí que esse fim último deve ser proposto, para nós, como fim último de nossa investigação, na dimensão mesma da ética. O que isso significa é que não se pode operar fora da dimensão do impossível. Freud, em todo o trabalho que vai fazendo na tentativa de buscar o sentido mais estrito para essa palavra felicidade, o relaciona à visada da experiência de intensos sentimentos de prazer. O princípio do prazer domina o funcionamento do aparelho psíquico desde o início e não deixa dúvida sobre sua eficácia. No entanto não há, diz ele, para isso, nada marcado nem no macro nem no microcosmo12. É um programa em desacordo com o mundo, onde todas as normas do universo lhe são contrárias, sendo, portanto, impossível de ser executado.
A questão que se coloca, então, é a da relação com a ética. Lacan a encaminha, em 1959, a partir de Aristóteles – Ética a Nicômaco -, posto que, diz ele, é Aristóteles quem leva o prazer para o centro do campo da ética e pergunta: “O que é a felicidade se ela não comporta a flor do prazer?” Se em Freud o princípio do prazer é um princípio de inércia, a verdadeira função do prazer em Aristóteles, diz Lacan, faz dele um estado que não é simplesmente passivo: é uma atividade comparada a uma flor que se depreende da atividade da juventude, é sua irradiação, é sinal de desabrochamento de uma ação. Assim nada que venha de outro modo – uma herança, uma dádiva, por exemplo –, que não da atividade, pode nos fazer feliz. Mas nós analistas, se pergunta Lacan, como devemos abordar as coisas nesse nível que é diferente do de Aristóteles? Estamos absolutamente longe de toda e qualquer formulação sobre uma disciplina da felicidade. Se em Aristóteles há uma disciplina da felicidade, diz Lacan, nada há de parecido na análise. Não temos nem disciplina, nem comunhão.
Na triste felicidade que declara a identidade do coletivo, podemos ver que aí também não é fácil determinar o que apontaria para uma sustentação do desejo ou o que evidenciaria uma anulação de sua função. Lacan fala13 das ‘sublimações coletivas’, aquelas que são recebidas socialmente, elas são formações imaginárias, algo também próprio ao campo da sublimação onde o objeto é inseparável de elaborações imaginárias e muito especialmente culturais. Não devemos ser simplistas, diz ele, e supor que as sublimações coletivas acontecem somente porque a sociedade encontra uma certa felicidade nas miragens que lhes fornecem os criadores das formas imaginárias – os moralista, os artistas, os artesãos ou os fabricantes de vestidos –– mas porque, nesse espelhismo, se vê a função imaginária a propósito da qual a simbolização da fantasia nos servirá – a forma na qual o desejo do sujeito se apoia. É também aqui, algo constitutivo do discurso do homem real, constitutivo de sua fantasia, suporte de seu desejo.
Na noção de sublimação, onde há a única alusão a uma possibilidade feliz de satisfação da tendência, Freud faz, segundo Lacan, uma formulação das mais exóticas, quando ele a representa para nós como eminentemente realizada pela atividade do artista, literalmente a possibilidade para o homem de comercializar seus desejos14, vendáveis sobre a forma de produtos.
Assim, as funções imaginárias, constitutivas do homem real tanto são seu anseio à autonomia, a uma felicidade fetichizada, quanto parte integrante de sua possibilidade de ex-sistência como sujeito desejante.
Mas o que os homens querem? O que os homens querem é a felicidade, diz Freud. É isso o que nos pedem na análise, diz Lacan15. Demanda de felicidade, demanda de reencontro, de boa fortuna.
É nesse contexto onde o homem passa a pedir a felicidade que a psicanálise aparece. E o que mantém a psicanálise? Ela se mantém da demanda de análise que surge no social a partir da oferta que faz o analista. O analista se oferece para receber – e ele recebe, isto é um fato – esse pedido de felicidade. Mas o que é pedir felicidade?
Isso ancestralmente coloca para o homem a questão do Bem Supremo, aquele bem que não só o analista não o tem, mas que não existe. Quando o analista se encontra em posição de responder a quem pede a felicidade, responde, diz Lacan16, levando a análise a seu termo. O que nada mais é do que fazer encontrar esse limite onde toda a problemática do desejo se coloca. E é assim que o desejo do analista coloca a questão do que ele tem e do que ele dá. O que ele tem nada mais é do que seu desejo, como o do analisando, só que um desejo prevenido, que não pode ser escamoteado17 posto que tomou o lugar do sintoma que o mascarava. E o que ele dá? Nem mesmo o nada, diz Lacan18.
Lembro aqui a frase de Oscar Wilde19: “Quando os deuses querem nos punir eles atendem às nossas preces”.
Assim, o homem moderno pede algo que ninguém sabe o que é, algo que todo homem quer, mas que se lhe é dado, se lhe é oferecido um saber, uma resposta sempre enganosa, um objeto positivado, se lhe é oferecido um lugar como o de todo mundo, se desfaz sua possibilidade não só de uma alegria, mas também de um pedido realmente a serviço do desejo do Outro, se desfaz o paradoxo ético fundamental que deve ser sustentado.
É assim, diz Lacan, que a felicidade se tornou um fator de política20. É na medida, como afirma Saint-Just21, que a felicidade se tornou um fator de política, que ela não apresenta, como possível para nós, a solução aristotélica. Não é possível que não haja essa etapa anterior necessária, primordial à satisfação das necessidades de todos os homens. Lacan diz que Aristóteles faz uma escolha entre os bens que ele oferece ao mestre e ao senhor e lhe afirma que apenas alguns desses bens são dignos de sua devoção, de contemplação. Essa dialética é por nós desvalorizada, por razões históricas, cuja expressão é: não pode haver satisfação de ninguém sem a satisfação de todos.
A satisfação de todos é algo que coloca diretamente em questão a problemática da insatisfação. Podemos pensar numa insatisfação também compartilhada. Esse espelhismo é complementar. Não há um impossível quando as coisas são tratadas no campo da satisfação. Não é um campo que componha com a topologia. Ninguém e todos se equivalem na dissolução da divisão discursiva do sujeito: assegura a autonomia e o individualismo, garante “a mensagem fraterna/fratricida”.
O que o fator de política traz? Traz a idéia imaginária do todo, de que o saber possa vir a constituir totalidade, de que possa haver um todo-saber/tudo-saber. Lacan dá aí, à boa forma da satisfação, a dimensão da esfera.
“A colusão dessa imagem com a idéia da satisfação, eis contra o quê temos que lutar cada vez que encontramos alguma coisa que faz nó no trabalho de que se trata, o do descobrimento pelas vias do inconsciente. É o obstáculo, o limite, ou melhor, é a névoa na qual perdemos a direção e onde nos vemos obstruídos.” 22
A poética que não é um fator de política, abrindo para nós a dimensão do não-todo, nos lembra a pergunta que faz, em versos, Fernando Pessoa, “porque é que, para ser feliz, é preciso não sabê-lo?” “A vida que se vive é um desentendimento fluido, uma média alegre entre a grandeza que não há e a felicidade que não pode haver.”23
O que Lacan diz24 é que, para se dar corpo a essa noção de que a felicidade se tornou um fator da política, pode-se enunciar algo que é central na teoria freudiana: não há felicidade a não ser do falo. “Só o falo pode ser feliz – não o portador do dito cujo”. Aqui a dimensão do todo se compõe na ordem fálica, não na coletividade, mas naquilo que lhe é central. Mas esse gozo, por ser o único que daria felicidade, por estar referido a um Bem Supremo – justamente por isso – ele é perdido. Se o falo é o que está sempre presente, sempre compondo o todo, a dimensão lógica que a psicanálise traz, como a da poesia, do não-todo, é uma abertura que está para além do falo. Há um real mais além do simbólico que deixa a felicidade do reencontro à própria sorte.
O que se opõe à tristeza, à triste felicidade? pergunta Lacan. Responde com uma virtude: o gay sçavoir25, a partir do que define que aquilo que traz a boa sorte, a felicidade está em toda parte. Como na técnica do amor cortês, se deixa em suspenso o limite do campo do gozo. É na medida em que o gozo, e não o prazer, está subtraído do campo do amor cortês que se instaura, a partir de uma certa configuração, o equilíbrio da verdade e do saber. Esse é o gaio saber.26 Há aí uma dependência à estrutura:
“Onde está, em tudo isso, o que traz felicidade, a boa sorte? Exatamente em toda parte O sujeito é feliz. Eis justamente sua definição dado que ele só pode tudo dever à sorte, à fortuna, dizendo de outro modo, e que toda sorte lhe é boa para o que o mantém, ou seja, para que ele se repita””27.
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1 LACAN, Sem A ética da psicanálise, lição de novembro de 1959
2 LACAN, Télévision, 1974
3 LACAN, Sem A ética da psicanálise, idem
4 LACAN, Sem O avesso da psicanálise, lição de 11 de fevereiro de 1970
5 LACAN, Sem As psicoses, lição de 8 de fevereiro de 1956
6 LACAN, Sem O avesso da psicanálise, lição de 11 de março de 1970
7 LACAN, Sem As psicoses, lição de 8 de fevereiro de 1956
8 LACAN, Escritos, A subversão do sujeito, pg. 841 – “o neurótico é, no fundo, um Sem-Nome”; assim aprece na tradução em português, mas é importante lembrar que nome, em francês, é nome de família, assim “um Sem-Sobrenome”.
9 LACAN, Luz, 15 de abril de 1980
10 LACAN, Sem As psicoses, lição de 8 de fevereiro de 1956
11 LACAN, Sem As psicoses, lição de 8 de fevereiro de 1956;
12 LACAN, Sem A ética da psicanálise, lição de 18 de novembro de 1950;
13 LACAN, Sem A ética da psicanálise, lição de 13 janeiro de 1960;
14 LACAN, Sem A angústia , lição de 20/03/63: “o desejo tem algo de mercantil“;
15 LACAN, Sem A ética, lição de 22 de junho de 1960;
16 LACAN, Escritos, “A direção do Tratamento”, 1958;
17 LACAN, Preâmbulo, 1971;
18 LACAN, Escritos, “A direção do Tratamento”, 1958;
19 WILDE, O., na peça “O marido ideal”;
20 LACAN, Sem A ética da psicanálise, lição de 22 de junho de 1960;
21 SAINT-JUST, Louis-Antoine de, (1767-1794) “Le bonherur est une idée neuvelle en Europe”.Convention nationale, 3 de março de 1794;
22 LACAN, Sem O avesso da psicanálise, lição de 17 de dezembro de 1969;
23 PESSOA, F., Livro do desassossego, p.251.
24 LACAN, Sem O avesso da psicanálise, lição de 11 de fevereiro de 1970
25 Em referência trovadoresca, la gaie science, le gai savoir são os nomes pelos quais era designada a poesia dos trovadores.
26 LACA, Sem O objeto da psicanálise, lição de 19 de janeiro de 1965;
27 LACAN, Télévision, 1974