Luiz Romão
Lacan no seminário XVII (1) , diz sobre a questão do gozo com relação a Freud:
“É também o que constitui o mérito do discurso de Freud. Ele está à altura. Está à altura de um discurso que se mantém tão próximo quanto possível do que se refere ao gozo (2) – tão próximo dele quanto possível. Isto não é cômodo. Não é cômodo situar-se nesse ponto onde o discurso emerge, e mesmo quando a ele retorna, tropeça nos arredores do gozo.”
O que seria esse tão próximo quanto possível em Freud? Pensei, então, que o ponto de partida seria tentar encontrar no próprio texto de Lacan a direção que pudesse encaminhar a questão. No final deste mesmo seminário XVII (3), ele diz que “é efetivamente como ligado à própria origem da entrada em ação do significante que se pode falar de gozo. Com que goza a ostra ou o castor, ninguém jamais saberá nada disso porque, faltando significante, não há distância entre o gozo e o corpo.”
Partimos então disso, que a distância entre o gozo e o corpo é efetuada pelo significante. Tomo a assertiva como a direção a ser tomada. Podemos dizer então que há gozo quando há significante, pelo menos de um gozo do qual se pode aproximar. Claro que, nesse ponto, aproximar seria quanto ao que é possível, pois só o abordamos por seu limite, dado que é irredutível. No entanto, não podemos desconhecer que esse caminho só pode ser trilhado via significante.
Lacan nos ensinou a ler o significante em Freud e ele o faz em duas vertentes: afirma abundantemente que encontra o significante no escrito de Freud e para isso nos mostra como pôde fazê-lo através de todas as passagens de seu texto. Outra abordagem é quando diz que, de uma única vez, Freud tratou do significante, como ele próprio, Lacan, o toma: é quando ele diz sobre o traço mnêmico: “(…) a essesWahrnehnungszeichen(traços mnêmicos) seu verdadeiro nome de significante.” (4) Assim, Lacan lê o significante em Freud e, a partir de sua leitura, penetramos no seu texto com esse balizamento, de que se trata de significantes e, portanto, é por isso que aponta também ali suas leis. Afirma que o modo como Freud conceitualiza o traço mnêmico ele o faz “cinqüenta anos antes dos lingüistas.” (5) Lembremos da aproximação que com Lacan podemos fazer entre as leis do significante e a conceitualização freudiana sobre as “leis psicológicas” que seguem a inscrição e tramitação dos traços mnêmicos: “Disposição por contigüidades, semelhanças, simultaneidade etc. etc”. (6) Freud chamou essas relações de “classes de encontro.” (7) Elas estão articuladas como significantes em operações que ele nomeou “processo primário, processo secundário, deslocamento e condensação”. (8)
Assim, aprendemos com Lacan que, nos escritos de Freud, ele tratava do significante, do significante em sua erosão, desmoronamento por efeito do recalque, seja no sonho, no ato falho, no chiste ou nosintoma. O extraordinário e laborioso exemplo da leitura que Freud faz de Signorelli (9) só faz ressaltar que aquela desconstrução luxuriosa – mortífera — foi ali recolhida pelas razões que Freud o justificou, nos caminhos que o recalque impõe à palavra. Mas sabemos que cada caso clínico, cada um de seus escritos em que faz ressaltar o universo da linguagem, contém em potência a mesma montagem que, a partir do recalcado, ele pôde revelar. Nesse sentido, creio que se pode dizer que é uma leitura estrutural. Ainda que com todas as limitações a que estava imposto, pois ele não tinha o simbólico para manejar e seu viés não poderia deixar de sê-lo, de outro modo, senão do registro imaginário.
Não creio que uma descrição cronológica histórica sobre o significante, em Freud, seja válida. Lacan sempre nos ensinou do equívoco da noção de desenvolvimento, de progresso em psicanálise. Quanto ao campo conceitual, no entanto, este compreende passagens de um ponto a outro e, nesse sentido, podemos marcar certas escansões no seu texto e elas, de fato, têm um avanço no sentido conceitual. Talvez pudéssemos dizer, quanto à relação significante e gozo, em lugar de avanço, aproximação, para usarmos a expressão de Lacan?
Freud nomeou pulsão aquilo que faz trânsito entre o real do corpo e a linguagem. Descreveu-a na sua condição de incitação à satisfação, representada pela fala e sobre a qual, ele nos revelou, incidem operadores: recalque, recalcado, retorno do recalcado, formações substitutivas, denegação etc. São modos de abordar o impossível de ser revelado, aproximação, ao que é da ordem do gozo.
Mas de onde Freud partiu? Ele partiu do sintoma neurótico, o sintoma era nesse momento um sinal e, mesmo em sua condição inicial milagrosa de desmontagem, já era resistente a reduzir-se a um saber todo e por este fato ele dizia que as histéricas não gozavam da simpatia dos médicos. Vemos então de partida o sintoma como encenação de um impossível a desvendar-se.
Naquele momento o sintoma tendia a ser desfeito pela catarse, porém resvalando para um mais além em sua incógnita preservada. Mais além, anunciado no Das Ding, (10) mais além que conduziu Freud àcompulsão à repetição (11) , ou seja, à pulsão de morte (12) e mais tarde à denegação (13) .
Interessante notar que é concomitante a essa primeira apreensão do sintoma, no seu ilusório desvanecimento e engendramento de seu mais além, a noção de Juízo, isto é, Das Ding. Ou seja, no mesmo momento em que Freud demarca o sintoma ao qual pretendia eliminar pela simbolização, teoriza um irredutível à simbolização, que é Das Ding.
Como Freud marca essa concomitância?
O sintoma é para Freud um encontro com o real, o qual ele não conseguiu submeter ao Juízo. Poderíamos dizer, encontro com o que diz respeito ao que é da ordem do gozo. Seu fracasso, que suportou com o desejo que o animava, é que preservou o cavo aberto pelo real. Pois, como dissemos, é contemporâneo desse encontro com o sintoma o que evidenciou como o processo do pensar e, portanto, como a formação do juízo sobre a natureza de Das Ding.
Em termos bastante gerais, qual é o núcleo dessa formação? Ela se alça na divisão entre as notícias do corpo próprio enunciadas pelos traços mnêmicos e uma outra parte não compreendida, não assimilada, que é Das Ding. Resta ao movimento desse impossível de ser reduzido à palavra ter sua fronteira delimitada por predicados, que se aproximam de seu núcleo, sem jamais reduzi-lo a um saber. Talvez pudéssemos dizer que, em Freud, Das Ding é o nome do gozo. Das Ding é a emergência do real.
A predicação, o trabalho do significante, afasta para o mais exterior aquilo que na verdade lhe é o maisinterior. Sua condição de interior mais exteriorizado se apresentou na compulsão de repetição, que, como nos diz Freud, “emerge com finalidade não desejada (…) na transferência.” (14)
Lacan diz sobre a repetição, no seminário XVII, como esse “algo que é defeito, fracasso” e é esse “fracasso” (15) que Freud encontrou na compulsão à repetição, na pulsão de morte.
A dualidade pulsional em suas vicissitudes e o “além do princípio do prazer” levaram Freud, à compulsão à repetição, ou seja, ao núcleo do sintoma, ao sintoma desvelado de sua condição primeira: a de sinal.
Freud, quando constatou o fenômeno estrutural da repetição — dessa compulsão à repetição — viu nele a quebra da homeostase prometida no Princípio do prazer. Prova de que este não é um império. Claro que o sujeito repudia essa emergência e coloca todo o seu saber a serviço de evitá-lo, mas não há conhecimento que o impeça de ser submetido a essa “necessidade da repetição” (16) , que é como Lacan a nomeia. Freud chama a essa experiência de um prazer que não cessa jamais de insistir e que não alcança um término, um fim, no sentido da saciação. Trata-se do prazer naquilo que causa dor (17) e é como ele diz do homem dos ratos na sua torturante narrativa do suplício: “deixava entrever numa expressão de seu rosto o gozo que acompanhava o relato que ele tinha como doloroso.” (18)
Lacan, ainda no seminário XVII, diz: “A repetição, o que é? Leiamos o texto de Freud, e vamos ver o que ele articula. É o gozo, termo designado em sentido próprio, que necessita da repetição. Na medida em que há busca do gozo como repetição que se produz, o que está em jogo no franqueamento freudiano – o que nos interessa como repetição, e se inscreve em uma dialética do gozo, é propriamente aquilo que se dirige contra a vida. É no nível da repetição que Freud se vê de algum modo obrigado, pela própria estrutura do discurso, a articular o instinto de morte.” (19)
Lacan articula então que “a repetição se funda em um retorno do gozo. E o que a esse respeito é propriamente articulado pelo próprio Freud é que, nessa mesma repetição, produz-se algo que é defeito, fracasso.” (20)
Nesse percurso da aproximação com o gozo: sintoma,Das Ding,compulsão àrepetição… qual seria o lugar da denegação?
Melman diz que a denegação é o próprio nascimento do símbolo. Para Freud, a plena vigência do significante não se faria sem a denegação. Sua contraprova é o negativismo dos psicóticos, pois com eles a plena vigência do significante é abalada, é estruturalmente abalada. Freud o explica dizendo que, sem a denegação, não é possível a inteligência, isto é, o “livre” trânsito do significante.
Ele diz que, no começo da vida anímica, não há outro processo, isto é, não há outros processos senão o primário, modo organizado que orienta as marcas originais de memórias, isto é, significantes. Como ele poderia colocar tão primitivamente a repetição e sustentar aí sua constituição? É porque, para Freud, já havia aí o Princípio do Prazer a ser transposto não na cronologia, mas num tempo, numa antecipaçãotemporal, em que sua incidência era então sobrepujada nessa oscilação. Pois, como diz ele, “se o Princípio do Prazer não atuasse desde já, neles, nunca poderia ter acontecido de instaurar-se os posteriores (isto é, os processos secundários).” (21)
Freud diz que a repetição é mais originária, mais elementar, mais pulsional (triebhaft) (22) que o Princípio do Prazer que ela destrona.
Então Freud coloca a repetição como engendrada no processo primário que para ele é mais primitivo notempo que o Princípio do Prazer. O primitivo no tempo em Freud não tem nenhuma referência à cronologia, parece tratar-se do que chamaríamos em Lacan de uma relação de anterioridade, que é lógica, isto é, não-cronológica. Para Freud, o Princípio do Prazer está de partida na constituição do campo que diz respeito ao aparato anímico. A repetição, então, se antecipa ao domínio do Princípio do Prazer. Freud fala de um possível império do Princípio do Prazer somente numa perspectiva intervalar num tempo em que seu domínio se exerce.
Lacan, diz “que o Princípio do Prazer tende a reduzir o sujeito, ao mínimo de gozo”. (23) Freud diz que a compulsão à repetição antecede e ultrapassa o trabalho do Princípio do Prazer. Acompanhando Lacan, veremos então como a manifestação da pulsão de morte presentifica o gozo. Essa aproximação coloca o sujeito, quero dizer, confronta-o com o gozo. Aprendemos com Lacan, nesse seminário XVII, que ou o sujeito responde pela tentativa de recuperar a perda de gozo e, portanto, da reorganização pelo Princípio do Prazer, ou ele suporta tal perda, realizando-a no ato e que é contemporâneo à emergência do objetoa. No último caso, então, justifica-se pensar que a mudança de posição do sujeito é pavimentada por aquilo que o sujeito mais teme, por aquilo que lhe é mais íntimo-exterior, por aquilo que é antecedido pelo que Freud diz, “emerge com finalidade não desejada”, a pulsão de morte. Então, com Lacan, repensamos um outro estatuto para esse algo que em Freud: “é defeito, fracasso”.
No seminário II, Lacan, em resposta a um de seus alunos sobre a possibilidade de se pensar a pulsão de morte como justamente aquilo que conduz ao progresso, faz ressaltar a dúvida se podemos usar essa expressão — “progresso” — em relação ao sujeito, mas ele preserva, é claro, a possibilidade da mudança de posição subjetiva, de fato advinda no campo aberto pela pulsão de morte, que é o campo do gozo tal como Freud, o formulou, tal como lhe foi possível e onde mais se aproximou do conceito.
_____________________________________
1. LACAN, Jacques. O avesso da psicanálise. Seminário XVII. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1992.
2. Idem. Grifo meu.
3. Ibidem, p.168.4. LACAN, Jacques. Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Seminário XI. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1985, p.48.
5. Idem.
6. FREUD, Sigmund. Obras completas. Buenos Aires: Amorrortu Editores 1975, vol. V, pp. 527-42.
7. Idem.
8. Ibidem, pp. 578-97.
9. FREUD, Sigmund. Op. cit., vol. VI, pp.10-15.
10. FREUD, Sigmund. Op. cit., vol. I, p. 373.
11. FREUD, Sig mund. “Mas allá del principio de placer”. In: Obras completas. Buenos Aires: Amorrortu Editores 1975, vol. XVIII.
12. Idem.
13. FREUD, Sigmund. “La negación”. In: Obras completas. Buenos Aires: Amorrortu Editores 1975, vol. XIX.
14. FREUD, Sigmund. “Mas allá del principio de placer”. In: Obras completas. Buenos Aires: Amorrortu Editores 1975, vol. XVIII, p.18.
15. LACAN, Jacques. O avesso da psicanálise. Seminário XVII. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1992.
16. Idem, p. 43.
17. Dor, para Freud, é desprazer, no sentido de angústia.
18. FREUD, Sigmund. “A propósito de un caso de neurosis obsesiva”. In: Obras completas. Buenos Aires: Amorrortu Editores 1975, vol. X, p.133.
19. LACAN, Jacques. O avesso da psicanálise. Seminário XVII. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1992, p. 43.
20. Idem.
21. FREUD, Sigmund. “Mas allá del principio de placer”. In: Obras completas. Buenos Aires: Amorrortu Editores 1975, vol. XVIII, p. 61.
22. Traduz o que é impulsivo, apaixonado, irreflexivo, o oposto à conduta racional e esclarecida.
23. LACAN, Jacques. O avesso da psicanálise. Seminário XVII. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1992.