ANOTAÇÕES À MARGEM DO SEMINÁRIO A ANGÚSTIA
Antonio Carlos Rocha
Se aos lógicos Lacan contrapõe que não há metalinguagem, é em seu próprio domínio que ele vai levar isso às últimas conseqüências. Neste sentido, pergunta, a propósito do ensino da psicanálise: como ensinar àquele que não sabe, e que, por definição, não pode saber? É a questão que está sempre presente para nós: como elaborar um saber que é definido como aquilo que nos sabe? Como falar do inconsciente se é o inconsciente quem diz? Marcado pelo malogro da experiência de Freud em transmitir a psicanálise, Lacan vai em outra direção, não se dobra ao modelo científico de ensino. Ele não recua diante da aporia do inconsciente. Ao contrário, parte daí, de que aquilo de que se fala opera, sempre, no próprio ato de falar. Ele não fez disso um obstáculo e sim um operador de estilo, que, aliás, assume explicitamente quando sustenta que o método em seu ensino “não se distingue, em sua essência, do objeto”, do próprio objeto que é por ele abordado. É o que demonstra neste Seminário A angústia. O que ele aponta aí, onde se tratava de circunscrever o conceito de angústia, como limite obrigatório da compreensão de seus alunos? Ele diz “na transmissão dos conceitos psicanalíticos sempre nos defrontamos com o mesmo obstáculo da clínica, a angústia de castração”. Ou seja, para tentar transmitir o conceito da angústia, o que ele suscita e encontra – e ele não se desvia dela – é a própria angústia.
Ora, isso situa de cara o ponto de vista psicanalítico, quanto ao ensino, num pólo oposto ao da visão que dele tem o pedagogo nas disciplinas científicas.
A ciência se pretende um discurso sem sujeito. Por isso poderíamos dizer que sua transmissão é, deve ser, em certo sentido, contínua, integral. Os conceitos da matemática são, por definição, sempre transmissíveis, pois se reduzem a letras, àquilo que é idêntico a si mesmo. O que aí pode aparecer como obstáculo ao ensino é exterior à operação e, portanto, estruturalmente eliminável. Isso é evidente em qualquer ensino básico da ciência constituída, lembra Lacan, mesmo que aí se incluam as questões mais complexas e difíceis, como a das grandes mutações de sua história, a passagem de New-ton a Einstein, por exemplo. A tarefa do professor, neste caso, pode até ser um pouco mais difícil, mas é só uma questão de mais esforço, tudo é uma questão de tempo, de um tempo que é exterior ao campo conceitual. E isso por uma razão muito simples e precisa: é que a ciência, como estrutura de saber, incorpora sempre, em seu enunciado, a própria enunciação que o produziu. Diz Lacan: conceitos impossíveis de serem pensados numa etapa anterior do desenvolvimento da ciência são apreendidos com grande facilidade por qualquer criança em sua etapa subseqüente. Dizer, então, que esse ensino pode se dispensar de nova enunciação é apenas outra maneira de falar de um discurso que é sem sujeito: a matemática seria capaz de ser ensinada integralmente pelos matemas, que se transmitem por si mesmos. É por causa desse ideal científico de uma certa linguagem – uma metalingua-gem –, e de seus efeitos sobre a cultura, que as várias correntes da psicologia e da pedagogia, no fundo, acabam convergindo para uma concepção do ensino de tal modo voltada para eliminar o sujeito da operação, que, no limite, é esse próprio ensino que, a rigor, pode acabar por se tornar dispensável.
É por isso – e contra isso – que Lacan faz questão de afirmar que “o ensino existe”. É a partir deste pressuposto e só a partir daí que ele pode, então, pensar de outro modo a transmissão, seus limites, suas condições. A partir daí foi possível levantar, como ele fez – e na contramão do pedagogo –, a questão do desejo daquele que ensina, referência que, evidentemente, é mais do que analógica à clínica psicanalítica, àquilo que opera no tratamento, o desejo do analista. Assim, à angústia de castração, aquela com a qual, como vimos, nos defrontamos no encontro com os conceitos analíticos, Lacan contrapõe um operador muito preciso, o desejo daquele que se oferece como agente no ensino. O paradigma da clínica fica assim configurado nos seus dois pólos: de um lado, a angústia do sujeito visado na operação e que se constitui como obstáculo na clínica e no ensino; de outro, o desejo daquele que opera seja no tratamento, seja na transmissão. Essa é a articulação que se impõe e que me parece esclarecer mutuamente essas duas formulações de Lacan, certamente surpreendentes para o universitário, sobre a presença inevitável da angústia e do desejo no espaço que é delimitado pelo exercício do ensino.
A ANGÚSTIA DO SUJEITO
Comecemos pela questão do sujeito, da angústia do sujeito, daquele a quem se destina a operação. Afinal do que se trata aí, nessa angústia que o ensino da psicanálise poderia desencadear? Por que Lacan diz que a transmissão de seus conceitos seria geradora dessa angústia? Vale sublinhar, deste postulado – isso o conota de modo específico –, o fato de ele ter sido feito, justamente, aqui neste Seminário sobre A angústia. Isso nos situa muito precisamente, porque somos remetidos, de imediato, ao que aí se demonstra – que a angústia não é sem objeto – e ao que aí se produz – justamente o conceito desse objeto, então denominado objeto a e que se propõe como o nome da causa, daquilo que causa o desejo. Vamos partir, então, daí, de uma referência de Lacan a esse conceito e uma referência que não deixa de ser surpreendente. É no contexto em que ele discute o problema do desenvolvimento da inteligência: referindo-se a Piaget – que fala de maturação, de uma passagem, na puberdade, de um pensamento infantil ao pensamento científico –, Lacan diz, numa fórmula que não deixa de ser surpreendente, “a maturação de que se trata é a maturação do objeto a”. Vemos, assim, que o fato de ter sempre descartado a ideologia genética e o psicologismo desenvolvimentista não torna menos necessária, para ele, a busca da genealogia dos elementos articulados na estrutura e que têm de estar referidos a uma certa temporalidade. Por isso fala de maturação do objeto, o que é a mesma coisa que falar de maturação da angústia, pois o que se delimita aí é um certo tempo, configurado como tal, o tempo específico da entrada em cena do real, do Outro como real. Na verdade seria talvez melhor falar de contra-cena, pois é esse real, justamente, que vem situar, no só depois, qualquer cena enquanto tal. Aquilo de que se trata aí é do advento do sujeito no campo do desejo ou, invertendo – mas, ainda assim, dizendo a mesma coisa –, da emergência do desejo, do desejo sexual em sua plenitude, aquele que vem então situar o sujeito barrado como tal. E é na puberdade, efetivamente, que isso se dá, que há a entrada irreversível do sujeito no campo do Outro. É aí que terá de levar, até as últimas conseqüências, os efeitos da escansão simbólica, submetendo-se, assim, definitivamente, ao registro da descontinuidade. É só então que se dimensionam para o sujeito, sempre só depois, a cena e a inocência que ele acaba de perder, o corte com a dimensão imaginária, esférica, lúdica de seu mundo infantil. Se, num certo sentido, o sujeito já tem conhecimento da castração na infância – pois fala, tem acesso à linguagem – é somente na puberdade, nessa hora em que ele é chamado a assumir a responsabilidade plena pelo seu sexo, que essa castração é plenamente enfrentada como sua. Melman diz que ela é assumida na primeira pessoa. É só então que efetivamente se coloca para ele, como condição para sua ex-sistência, a questão do objeto como causa. Pois é aí que ele se encontra, de forma irreversível – sempre dentro da temporalidade freudiana das duas escansões – com sua causa, ou seja, com o real da cessão do objeto: o sujeito tem de ceder seu mundo, tem de perder aquilo que o sustenta, e, nesta perdição, constituir-se como causado, experiência cujo único substrato subjetivo é essa suspensão da subjetividade, essa divisão do sujeito, que chamamos angústia. Do que se trata aí, é claro, é da relação do objeto a com o falo. É deste reencontro definitivo com o registro fálico, que as pulsões, por assim dizer, se produzem como tais, ou seja, se re-significam, é aí que elas ficam referidas a um sujeito a advir e a dividir.
Esse advento, essa invenção é o que cada sujeito engendra, engendrando com isso a questão do lugar e da causa. É a isso que Lacan deu o nome de objeto a. Definido como causa primordial e substância dessa função mental da causa, o objeto a é, portanto, anterior a toda fenomenologia. É advindo como causado que um sujeito acede à dimensão mental da causa. É advindo aí, diante da causa do desejo, que ele pode situar um a priori que é ético, de onde a extensão e o espaço podem se colocar para ele como efeitos do olhar. Sem essa dimensão, sem esse corte, ele não se demarca de nenhum espaço nem de nenhum tempo como categorias. O espaço não é de modo algum uma categoria a priori da intuição sensível, diz Lacan, que, à estética transcendental de Kant, contrapõe uma ética transcendental.
É por tudo isso, portanto, por esta incidência, realmente datada e definida na história sexual do sujeito, que se pode definir um tempo dito da puberdade, esse tempo em que Piaget virá encontrar, naquilo que ele chama a evolução do pensamento, o tal ponto de maturação que marcaria a passagem do pensamento infantil ao pensamento conceitual. Esse corte, que efetivamente se estabelece aí, nessa maturação do objeto a, como a requalificou Lacan, é um corte agora absolutamente inaugural, mesmo que re-inaugural, pois se trata de um segundo tempo, passamos antes pela castração infantil. Deste corte, não poderíamos dizer propriamente que é um começo absoluto, porque não se trata de extensão. Mas sem dúvida podemos dizer que ele inaugura a questão do começo absoluto, do ex-nihil, que marcará o sujeito para sempre. Porque este corte não é um corte na extensão, é um corte com a extensão, com a pura extensão definida no espaço geométrico. O que ele inaugura não é nenhum depois, concebível na homogeneidade. Ele é um corte definitivo com o mundo infantil, onde o que prevalecia era a coalescência entre o ponto de angústia e o ponto do desejo, propiciada sobretudo pelo campo escópico. A partir daí, o que se instala é uma série, justamente a série dos cortes, a única em que o sujeito pode se contar e, assim, se contando, ex-sistir como sujeito.
Mas se a fase fálica propicia, assim, outro estatuto para o objeto – o sujeito terá de se situar na barra –, nem por isso, é claro, a ordem especular desaparece. Ela se constitui como registro regressivo e é o que vai marcar definitivamente o estatuto de nosso saber que, neste sentido, será sempre, em última instância, um saber infantil defensivo, destinado a se contrapor à emergência da angústia. Por isso Lacan qualificou nosso saber de paranóico, esse saber que dá estofo a nossos fantasmas identificatórios – porque ele é um saber que nos olha, que sempre nos situa no mundo. Assim, é para sempre que viveremos divididos entre um saber que se perde, que pode nos perder, e a angústia que se atravessa, que suspende. Uma vez que a descontinuidade foi introduzida, poderíamos dizer que ela se torna permanente. Mas, justamente, não é possível dizer isso, pois não podemos falar de descontinuidade permanente. A dificuldade, que aparece na forma, revela a questão de fundo. Porque é a cada vez, que o sujeito, barrado, está diante da castração. Há sempre esse saber fantasmático que instala e reinstala o chão confortável de um espaço especular e um tempo espacializado e reversível. Mas é aí mesmo que a ruptura, o furo, o descontínuo, o parcial mostram o vão desse saber. Aqui, a sabedoria da língua oferece o duplo sentido, para indicar a aporia em que se encontra o ser falante, entre um saber que é vão e esse vão em que se perde. Enquanto sujeito, cada um está – e a cada vez – confrontado com esse vão, entre seu mundo, esse mundo com o qual faz o um da totalidade, e o objeto perdido que constitui o oco, o “imundo” que é investido pela pulsão. A cada vez, a cada escansão, a cada corte, ele não será mais o mesmo, porque o que retorna, de seu ato, é o Outro, como pura diferença. Marcado pelo um, portanto, mas, agora, um um do qual não pode fazer completude, não pode constituir nenhum saber.
É por tudo isso, por essa função estrutural do saber na constituição do sujeito humano – representado pelo significante ele está sempre referido a esse saber que é do Outro – é por isso que o ensino, se verdadeiro, se introduz o novo, se faz ruptura naquilo que sustenta o imaginário do sujeito, terá necessariamente que desencadear a angústia. E nesse sentido, é claro, a questão não é privativa do ensino psicanalítico. Em qualquer domínio, não importa em que atividade, desde que o sujeito se exerça, desde que ele tenha de romper suas amarras, perder seu saber constituído e que é constituinte para a cena em que se espelha – em outras palavras, desde que haja sujeito e, portanto, significante – haverá, aí, sempre, o preço a pagar da angústia. A história da própria matemática, que é a mais asséptica das disciplinas, nos mostra isso, e de forma às vezes até trágica, como sabemos, no caso dos grandes saltos epistemológicos, para tomar uma expressão de Bachelard, sempre que se tratou de fazer rupturas absolutas. Por isso, é preciso entender que, se é verdade que no seu ensino stricto sensu se pode sustentar, como vimos antes, o ideal de uma transmissão escrita, de certo modo fora do sujeito, no desenvolvimento da ciência propriamente dita, tudo é muito diferente. Ou seja, é verdade que, no limite, um aluno pode passar de Newton a Einstein por um mero aprendizado conceitual. Mas Einstein não passou de Newton a Einstein sem angústia, sem o ato de seu dizer. Tratou-se, aí, de pura invenção, onde há de se supor, necessariamente, o sujeito. Por isso, mesmo diante do matema, o que deve operar no ensino, se se pretender que ele não se reduza a uma simples divulgação, mas possa ainda induzir ao ato criativo, terá de ser sempre também alguma coisa que venha forçar a economia subjetiva. O verdadeiro ensino, qualquer que seja seu domínio, é aquele que cria as condições para a invenção. Entre nós, dizemos que cada psicanalista deve reinventar a psicanálise. Mas sabemos também a diferença entre saber aplicar fórmulas matemáticas e a capacidade de pensar matematicamente. Um ensino da ciência que se limite a seus enunciados esgota-se em si mesmo, sem abrir a possibilidade para o novo. Ele precisa, não apenas ensinar a letra, mas transmitir as condições de suas possibilidades, ou seja, o sistema de diferenças que a produziu como letra, bem como o resto necessário que dela se impõe como impossível. Sem isso, sem esta exigência do sujeito e ao sujeito, nenhuma mutação futura, nenhum corte será jamais possível. É preciso, é claro, introduzir o sujeito à disciplina absoluta que a letra exige, mas não se pode esquecer que, por trás desta disciplina, há sempre um sujeito, que, mesmo que reduzido a este efeito minimal de funcionar apenas para que as letras se articulem, ainda assim, permanece um sujeito. É o que lhe garantirá, na invenção, este mínimo de ancoragem em que precisa se sustentar, para não se confundir com as letras e se perder, ele mesmo, como letra e acabar na errância, à procura do deus obscuro que terá escrito esse alfabeto insensato. Atrás do dito, mesmo que este dito seja matemático, há sempre um dizer. Não há livro de matemática, feito apenas de fórmulas matemáticas, lembra Lacan.
Nenhum ensino, desde que levado a seu exercício mais radical, pode fazer a economia do sujeito. Na verdade, aliás, a questão é até mais geral, porque o que está em causa é a função e o lugar do sujeito na cultura. Os últimos desdobramentos da modernidade estão indo justamente na contramão do que seriam os objetivos de uma verdadeira transmissão e que não deveriam ser outra coisa senão a preservação do sujeito e com ele da cultura com suas virtualidades, seu gênio, seu espírito. E aí a psicanálise e seu ensino, talvez, estejam destinados a ser o lugar por excelência de onde a questão se suscita de forma mais clara, justamente porque seu objeto – e, portanto, o objeto de seu ensino – não é outro senão o próprio sujeito, nesta sua expressão mais pura e reduzida, a dimensão objetal por onde encontrará algum acesso ao ser.
O DESEJO DE QUEM ENSINA
À angústia de castração Lacan contrapõe, no tratamento, o desejo do analista. Da mesma forma, dizíamos antes, diante desta angústia do sujeito, que encontramos na transmissão dos conceitos analíticos, haverá de intervir o desejo daquele que ensina. Mas como se articula então, aí, o lugar desse desejo como operador? Vimos que sempre que o sujeito esbarra com os efeitos do significante e perde a sustentação imaginária de seu saber, encontra inevitavelmente a angústia. Ora, ele precisa dar um destino a essa angústia. As soluções e defesas que constrói para se amparar aí, foi isso o que a psicanálise descobriu, na clínica, e pôde conceituar. Ameaçado, no tratamento, pela emergência da angústia, vale dizer pela presença do objeto, pelo esvaziamento das sustentações identificatórias que lhe dão contorno, o que o sujeito faz? Foi o que Freud entendeu e diante do que não recuou: no vazio ameaçador, disruptivo, que se delineia no horizonte da rememoração, o sujeito se defende e aí instala a pessoa do analista. É o amor de transferência. Apenas representado pelo significante, o sujeito só pode se constituir alternativamente, e em antinomia com o saber. “Onde ele pensa, não é – é isso o Inconsciente – e onde é, deriva”, dirá Lacan mais tarde. E disso – que o saber está depositado no campo do Outro, que é apenas um lugar –, disso o sujeito nada quer saber. Assim, da evidência de que por trás do significante há um sujeito, ele desliza e faz a suposição de que sob o saber há de haver alguém. É, então, nesse outro que ele se aliena, para aí moldar e garantir sua própria imagem, seu eu; pois eu é igualmente aquele que supõe saber. Que isso se traduz em oferta amorosa é o que a clínica nos mostra, todo dia, e é o que Lacan conceituou, mostrando como a transferência está dirigida ao outro suposto saber. O sujeito responde com o amor, com o amor do um. Para a clínica, este movimento, que aparece para Freud inicialmente como defensivo, obstáculo ao tratamento, acaba se constituindo, como sabemos, no verdadeiro motor da cura. Mas para isso é preciso que ele encon-tre uma certa resposta, que não lhe seja simétrica, essa resposta cujo conceito Lacan produziu, o desejo do analista. Ou seja, à demanda do sujeito o que se vai contrapor são os procedimentos de corte que comandam a cura e que visam a sustentar o objeto a como agente da operação. É assim que esse amor se transforma e se constitui na transferência propriamente dita, com os efeitos que daí advêm – e que são os próprios objetivos do trabalho – a produção pelo sujeito dos significantes que o comandam.
Ora, se no ensino nos defrontamos com o mesmo obstáculo da clínica – a angústia de castração –, é lícito supor que esbarraremos, aí também, com o amor de transferência, a solução que o sujeito encontra para lidar com aquela angústia. A simetria, é claro, se impõe e é um ponto fundamental, divisor de águas para a concepção que possamos ter da transmissão. A referência direta à clínica não é, portanto, meramente analógica, é estrutural naquilo que opera na transmissão e no ensino da psicanálise e, no limite, na transmissão de qualquer saber.
É preciso, é claro, não deixar de assinalar e articular nuances e diferenças entre as duas operações. Se na clínica a experiência se sustenta aí mesmo, no nó da transferência, é aí que exerce sua eficácia e obtém seus efeitos, no ensino, evidentemente, a operação tem de ser desdobrada, posto que ela não se esgota em si mesma, ela deve servir a uma finalidade exterior ao processo transferencial propriamente dito. O psicanalista que ensina tem conceitos a ensinar. Há, portanto, outra complexidade na resposta que dará ao amor, à suposição de saber de que está investido. Porque, no caso, ele não apenas é suposto, mas de certa forma efetivamente sabe alguma coisa, algo que justamente ele tem de transmitir em sua função: uma letra, um conceito, que visam a estabelecer a lógica de uma prática, uma ordem do matema. Há certamente, portanto, importantes diferenças a serem consideradas. Mas são diferenças que, como tais, só fazem acentuar o fato de que a questão estrutural é a mesma. O ensino não visa, é claro, a desencadear os efeitos analíticos que produzem a histeria experimental. Mas por outro lado, não há dúvida, também, como vimos, de que aquele que o agencia não pode se impedir de funcionar como causa para o sujeito. Isso não pode estar fora de seu cálculo e é daí que deve se originar seu ato. Não se pode desconhecer a função e o lugar do objeto na operação, pois não há ensino da psicanálise que não passe pela transferência. Daí o lugar da instituição analítica, como o dispositivo específico que propicia o quadro necessário para o acolhimento desta transferência e para o exercício deste ensino. O desejo do analista não está de fora quando este assume uma função didática. É isso que funda o efeito de sua palavra e pode fazer, desta, transmissão. E é nesta transmissão como resultado e como resto que veremos, sem-pre depois, que efetivamente o desejo operou.
São questões, é claro, que não interessaram ao pedagogo. A questão do amor pode até se colocar para ele, a princípio, mas apenas no sentido estrito em que se fala de uma boa relação do aluno com o professor. É o amor do mestre, de que sempre se falou. Mas, estabelecida esta boa relação, deve-se eliminar o resto, a influência do pathos – vale dizer, zerar a questão do sujeito. É isso que tornaria possível, tornaria mais fácil, o ensino do conceito, a passagem da letra, que se caracteriza, justamente, pela articulação escrita, em que é a consistência interna que sustenta o que se formula e onde, por definição, se deve prescindir do amparo problemático do dizer e da subjetividade. Mas, nesse caso, a questão de fundo, a questão maior do ensino, ficaria, então, praticamente eludida.
É contra essa simplificação que Lacan se insurge, para introduzir a questão do desejo daquele que ensina, daquele que se propõe como agente da transmissão. E o faz naturalmente a partir de sua experiência. É claro que no nosso domínio as coisas são bem diferentes. Há uma especificidade da transmissão da psicanálise. Há o fato de que nosso campo se constitui em pura perda, se funda nessa aporia de pretender, justamente, se organizar, enquanto campo, como um campo que se perde. É o que o marca, como obstáculo, como limite à lógica, pelo menos à lógica que sustenta a ciência. É por isso que, para nós, não há como separar o ensino, como forma, daquilo que constitui o seu próprio conteúdo. É claro que não faltam pedagogos à psicanálise, psicanalistas cujo entendimento do que fazem está muito aquém das premissas fundamentais que a psicanálise produziu e que sustentam sua ação. E eu não falo apenas daqueles que Lacan já descartou, circunscrevendo aquilo que ele chamou a psicologia do ego. A questão é mais geral. Porque o desafio é para todos e permanente. É sempre difícil não sucumbir, no aprendizado e no ensino dos textos, a uma certa economia daquilo de que se trata no ato da enunciação. Mas sabemos que há uma enorme distância entre conhecer conceitos analíticos e a possibilidade de fazer operar analiticamente e de sustentar uma prática do inconsciente capaz de produzir e suportar efeitos no real. Portanto, é preciso ir além do saber constituído de que o conceito daria conta. Trata-se de uma passagem de nível, de uma descontinuidade, em que apenas o só depois do ato ilumina e dá, a cada vez, o verdadeiro lugar de um saber que havia sido. Essa é a experiência de todo analista, em seu percurso de formação, em que sempre terá de se defrontar com o preço a pagar – e a moeda aqui evidentemente é a angústia – para que, de um saber adquirido e de uma formação buscada, resulte a possibilidade de ato que o discurso analítico exige e engendra. O inconsciente funda um campo onde não há intervalo. Aquilo que sobra como excesso, como obstáculo ao ensino da letra, não poderá ser descartado numa assepsia pedagógica. Porque aqui, se por um lado há efetivamente uma letra a ensinar, por outro há algo muito mais importante, há uma transmissão a garantir, uma transmissão significante, que só se dá no real, só se produz se o sujeito puder se confrontar com aquilo que o causa. E esta transmissão, assim, só se faz justamente com os restos que o ideal do pedagogo exclui. É por isso, por esta singularidade, por esta posição limite que o ensino da psicanálise pode iluminar de outro modo a questão do ensino tout court.
Porque a partir dessas premissas, a questão muda radicalmente. Suas exigências tomam evidentemente outra dimensão e não podem ser mais pensadas, em qualquer que seja o domínio do saber, senão no contexto disso que estamos tentando analisar aqui e que Lacan chamou o desejo daquele que ensina. É o outro pólo, a outra entrada, que se impõe a nós para abordar o problema da transmissão, em contraponto à angústia que ela suscita do lado do sujeito, do lado daquele que é seu destinatário. Na cura, o desejo do analista, como já dissemos, é aquilo que tem a função de se contrapor à oferta do amor, à função idealizante – ali onde o amor de transferência sobrepõe o objeto ao ideal, o desejo do analista deve separar. O desejo daquele que ensina não poderia ser pensado senão como algo que aponta na mesma direção. Ele tem de se situar de tal modo em relação à demanda de saber, que isso não permita, àquele que demanda, o conforto da plena satisfação, do ideal e do gozo do mesmo, da completude dos enunciados. Se ele pode e deve suportar a suposição de saber que lhe é atribuída, não pode de modo algum dar consistência a esta suposição.
E para isso, é claro, não vale, não é possível aceitar aquele tipo de manobra tão difundido em que aquele que deveria sustentar o ensino opta pelo sofisma e diz: “eu não falo de um lugar de saber, eu não sou mestre”. Pois isso só faz reduplicar o efeito de que tenta se demarcar, ao propor, na verdade, uma mestria que se sabe e que, embora se auto-denuncie, para salvar a boa consciência, não pode esconder que esta denúncia se faz de dentro do mesmo saber oferecido. O que nos faria, numa segunda volta, recair novamente na oferta da imagem idealizável, mais idealizável ainda. Em sofismas desse tipo, a denegação encobridora que aí se evidencia só torna as conseqüências para o ensino mais devastadoras ainda. Sem dúvida, esse será o mais perigoso dos mestres – não importa muito quais sejam suas intenções – porque, disfarçado, se propondo como atópico, não deixa ao sujeito nenhuma chance de referência e defesa. O muro da linguagem, que implica a alteridade absoluta do Outro, fica aí eludido em favor de um perigoso e imaginário jogo do espelho.
O que fazer então para escapar dessa armadilha? O agente do ensino, ele também, não pode ceder em seu desejo, não pode escamotear aquilo a que está submetido como um fato de estrutura. A dupla contingência em que se encontra: de um lado, aquilo que ele não pode negar – que está constituído por um certo saber que o situa e limita e que ele tem de sustentar – e, de outro, o fato de que esse saber é do Outro. É enquanto sujeito barrado que ele tem de se pôr a serviço da articulação significante, onde, para além daquilo que Lacan chamará, mais tarde, o discurso universitário, ele não se limite a funcionar, a ser um mero funcionário de um saber constituído. Ao contrário, que ele seja o elo de um saber constituinte onde, mesmo para ensinar os conceitos, terá de situar-se do lado de alguma enunciação. A mestria é do significante e aí é o sujeito que se perde. Essa perdição é justamente o que poderá operar com a função de corte, contra o movimento idealizante daquele a quem se destina o ensino. Lacan diz que o analista é aquele que deve ensinar nada. Ele está falando da clínica, mas isso é válido também para o ensino e a transmissão, onde igualmente se deve operar em pura perda e a partir de um dizer. É, portanto, neste duplo movimento – reduzindo-se como sujeito a zero, para que a letra se ensine, mas, ao mesmo tempo, expondo-se como sujeito, para que o significante circule e que seus atos operem – é neste duplo movimento que ele propiciará a emergência do objeto como tal, este objeto que sobra de seu ato, de seu dizer e que vai causar aqueles que estão concernidos na transmissão. O que ele oferece, então, nada mais tem a ver com a plenitude do um especularizável. Ao contrário, como resto, o que se produzirá aí, para aquele a quem se dirige, é o esvaziamento de suas imagens de sustentação, de sua suposição, de suas certezas e a inevitável angústia que isso suscita. É aí, como vimos antes, neste corte, no que aí se perde de ser, que se engendra, sempre como defe-sa, a tentativa ontológica da transferência. O movimento dos sujeitos será sempre, é claro, o de tentar restabelecer o um do amor, do saber, o um da totalidade. O que é fundamental, portanto, é que o desejo não vacile do lado daquele que se responsabilize pela transmissão. A cada vez que o sujeito tentar reconstituir aí uma consistência, ele deverá oferecer, tal como no tratamento, o corte, a barra no saber que deve suspender e causar.
O desejo do psicanalista não é puro, nos diz Lacan, mas sua visada, no tratamento, é a diferença absoluta, aquela com a qual o sujeito se defronta quando encontra o significante primordial. O desejo daquele que ensina é menos puro ainda porque ele tem uma letra a transmitir. Mas ainda assim, como vimos, é esse desejo que será operante. A transferência que ele produz – corolário de estrutura, ela é aquilo que sustenta o sujeito no momento da cessão do objeto –, como vimos, é a condição inevitável para o ensino. É por isso que ela tem de ser reconhecida, levada em consideração, pois, do contrário, ela pode se tornar, também, como na cura, um obstáculo. E aqui realmente apenas um mero obstáculo, pois impedirá efetivamente a circulação do significante, ou seja, a enunciação de algum sujeito. Aquele que se envolve com a transmissão, portanto, deve estar disposto a responder à verdadeira dimensão do que aí se engaja, deve estar decidido a pagar aí com seu desejo.
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1. In: Revista Tempo Freudiano Vol. 2 O Seminário de Lacan: travessia A angústia – Rio de Janeiro: Tempo Freudiano, 2003, p.115