Angela Jesuino Ferreto
Gérard Haddad abriu estas jornadas citando um índio das Américas que dizia: “aqui, cada um se chama como quer”.
Não poderia esperar uma melhor introdução para o que vou dizer, pois o que me interessa aqui é a questão de saber se nos países que, como o Brasil, foram colonizados, podemos pensar a função do nome próprio do mesmo modo que em outros lugares.
De qualquer forma, no que diz respeito a esse “aqui cada um se chama como quer”, eu diria desde já que isso não me parece simplificar as coisas para um sujeito, nem excluir uma relação de propriedade para com o nome, muito pelo contrário. Espero poder sustentar esta hipótese a partir da análise da composição do nome de família e sua transmissão no Brasil.
Uma primeira observação se impõe: ao longo desta conferência, empregarei pouco ou muito pouco o termo patronímico, pois no que diz respeito ao Brasil, parece-me mais pertinente falar em termos de nome de família. Explico-me: se procurarmos num dicionário de língua portuguesa o termo ‘patronímico’, encontraremos de fato as mesmas raízes etimológicas greco-latinas (patronymikos et patronymicus) do termo atual na língua francesa, por exemplo, sem, no entanto, encontrarmos a equivalência entre patronímico e nome de família que essa língua estabelece. O próprio exemplo citado no dicionário português é suficientemente esclarecedor: “O Oliveira de seu nome é patronímico”.
No Brasil, de fato, o nome de família é composto pelo sobrenome do pai da mãe (avô materno) e pelo sobrenome do pai, logo dois sobrenomes patronímicos. Tomemos o seguinte exemplo: Maria Martins Pereira casa-se com João Carvalho Silva. Com o casamento, ela poderá: manter seu nome de família tal e qual ou guardar seu nome patronímico e acrescentar agora o do seu marido. Neste segundo caso (que é o mais freqüente), ela passaria a chamar-se: Maria Pereira Silva. Quanto às crianças do casal, elas chamar-se-iam tal como a mãe depois do casamento: Pereira Silva. Logo, cada um dos pais deve transmitir um sobrenome à criança, que será, em suma, o seu patronímico, único transmissível a cada geração. Note-se também a importância da ordem, pois o último sobrenome será sempre o do pai, aquele que se guarda e se transmite; resultando inevitavelmente desta operação a queda de um sobrenome, o do pai da mãe. Isso que acabo de descrever é o que podemos chamar de esquema “clássico” de transmissão, o qual pode ser e é, freqüentemente, alterado.
Na verdade, a partir desses dois sobrenomes, várias outras combinações tornar-se-ão possíveis, sem que haja aparentemente uma lei que venha regulamentar a transmissão do sobrenome. O nosso Código Civil parece, quanto a isso, particularmente silencioso. Apenas dois artigos fazem referência ao sobrenome: o primeiro diz respeito ao casamento e divórcio da mulher, e o segundo rege o estabelecimento da certidão de nascimento. Esta lei nos ensina que devem ser inscritos (entre outros) “o nome e sobrenome que foram dados à criança” e que “caso o sobrenome não tenha sido indicado, o oficial do estado civil deverá inscrever após o nome, o sobrenome do pai e caso falte o da mãe…” Lei n°6.015 do 31 de dezembro de 1973, art. 54 e 55. Assim, nenhum artigo do Código Civil brasileiro dirá explicitamente que a criança deve ter o patronímico da mãe seguido do do pai. Este silêncio jurídico permite que se passe da transmissão à “escolha”. O sobrenome será, então, aquele que os pais decidiram transmitir na hora de estabelecer a certidão de nascimento.
A possibilidade de escolher aquilo que se deve transmitir não deixa de ter conseqüências. Tomemos, mais uma vez, um exemplo: Maria Santos Reis casa com José Fontes Barros de Menezes. Se o primogênito é um menino, ele poderá se chamar tal como seu pai, acrescentando-se, porém, o termo Filho. Teremos assim, um primeiro descendente cujo sobrenome será: Barros de Menezes Filho. Se o segundo filho for uma menina, pode-se atribuir-lhe o patronímico da mãe e uma parte do sobrenome do pai, o que dará: Reis Menezes. A uma terceira criança, de sexo masculino, por exemplo, pode-se decidir que ele ficará apenas com o sobrenome do pai, isto é: Barros de Menezes. Assim, numa mesma irmandade, encontraríamos três crianças com três sobrenomes diferentes, em conseqüência de critérios os mais variados. Se ainda, nessa mesma família, a descendência do pai da mãe ameaçar desaparecer, na falta de um filho que transmita o sobrenome pode-se, então, decidir chamar uma das crianças: Reis Neto. Noutras circunstâncias, o critério poderia ser a distribuição do sobrenome da mãe ou do pai segundo o sexo da criança: as meninas chamar-se-iam Santos Reis, e os meninos, Fontes Barros de Menezes.
Se pensarmos que esta modalidade de transmissão não é estabelecida pela lei, resta-nos presumir que o seja pelos costumes. Mas os costumes, de onde eles nos vêm?
A escuta de pacientes portugueses permitiu-me constatar um certo número de similitudes entre o modo de transmissão do sobrenome em Portugal e no Brasil. Especialmente o fato de que a mulher, em certas regiões do país, não tomando o nome do pai de seu marido ao casar-se, venha a transmitir seu nome de família às filhas, enquanto o pai transmite o seu aos filhos. Isto, aliás, pode causar certas dificuldades quando da passagem da fronteira e o estabelecimento do emigrante na França, quando se trata de provar seus laços de parentesco.
Talvez um trecho de sessão nos permita observar o que este modo de transmissão e o malabarismo com os sobrenomes, leva a pôr em prática. Este paciente português (que me fala em francês), chega um dia à consulta dizendo: “Bom dia, senhora Perretto”, seu próprio sobrenome começa de fato pela letra P, a qual aqui se substituiu pelo F do meu. Este lapso abriu então, a seguinte cadeia associativa: “o sobrenome de meu pai morreu comigo. Transmiti o sobrenome de minha mãe à minha mulher e aos meus filhos. Pareço-me com omeu tio, o irmão da minha mãe, ele chamava-se Manuel assim como eu. Há quem diga que até podíamos ser gêmeos. Desde os meus dez anos de idade, já sabia que nãodaria o sobrenome do meu pai à minha mulher e aos meus filhos. Minha mãe me deu uma lição de moral. Ela me disse: mas tu não tens vergonha? E eu disse a ela: não, tenho orgulho”.
Neste caso, o malabarismo com os sobrenomes parece permitir a atuação de uma filiação imaginária, completamente situada do lado materno. Reencontraremos, mais adiante, as questões relativas à filiação e a seu estatuto, que esta modalidade de transmissão nos deixa entrever. Trata-se, por enquanto, de mostrar que o modelo brasileiro provém visivelmente de seu antecessor português, mas não só, pois aqui vêm também enxertar-se as conseqüências da colonização.
Seria necessário lembrar, ao menos, dois aspectos da colonização no Brasil: por um lado a escravidão, e por outro a fratura étnica, social e religiosa entre cristãos e cristãos-novos, que conhecera também o Novo Mundo. Estes dois aspectos não são alheios ao que, por ora, nos ocupa.
Vejamos alguns elementos acerca da nominação e transmissão do sobrenome dos escravos africanos no Brasil. Ao chegarem à nossa costa, estes eram na maior parte batizados à força, fossem eles muçulmanos. Graças a isto passavam a se chamar: Bruno, Felicidade, Julio, Guilhermina, etc… Não há indicações de que um nome de família tenha sido então atribuído. Nos anúncios de jornal da época, quem quisesse nomear um escravo marcava o nome, seguido da nação africana à qual ele pertencia. Veja-se o extrato dum desses anúncios: “(J.B., 19/04/1859): Desaparecimento de escravo. No dia 18 Janeiro do corrente desappareceo da Estrada Pública, nas inmediações das terras do engenho Querente com as da fazenda denominada Quintanda, proprietário o coronel Joaquim Ignácio Bulcão, o escravo de nome Liberato, nação nagô, ainda moço… etc (1) Segundo esta mesma fonte de informação, os nomes de família apenas aparecerão mais tarde quando os escravos serão alforriados ou comprarão eles mesmos sua liberdade. E nestes casos ainda, o ex-escravo guardará geralmente o sobrenome de seu próprio senhor. Encontramos, assim entre outros, “Luis Raimundo Nunes de Barros, alforriado da nação ussá […] Ele foi comprado por Raimundo Nunes de Barros, ao qual serviu durante vários anos” (2) ; num único caso se veio a conhecer o nome africano do antepassado: “Manoel Nascimento do Santo Silva, chamado Gibirilu (Gabriel) do lado muçulmano, filho de José Maria do Santo Silva, nascido em Ifé, na Nigéria, conhecido sob o nome de Alufá Salu…” (3) .
Como se isso fosse um acaso, encontramos hoje em dia, no candomblé, uma cerimônia belíssima e de prima importância, a da “saída do nome”, pela qual o iniciado vem conhecer seu “verdadeiro” nome, isto é, seu nome africano. Esta nova nominação será pronunciada pelos lábios do próprio Deus, isto é, do Orixá encarnado no corpo de um dos fiéis que se torna então “cavalo do Santo”, oraculum vivens…
Pierre Verger salientava, a propósito da integração social dos mestiços, que “alguns dentre eles, filhos naturais ou filhos de padres, adotam nomes de famílias ilustres por conveniência puramente estética. Muitos deles não se contentam com esses belos ou aristocráticos nomes do país e vão buscar na história de Portugal e da Espanha nomes mais gloriosos e bem soantes. Os mais refinados não esquecem de acrescentar um “de” que sugere a nobreza” (4) Veremos que este artifício não é apenas apanágio de negros e mestiços.
No que diz respeito aos cristãos-novos, numa sociedade colonial apavorada pela inquisição em Portugal e intimada a provar a pureza de seu sangue, fraude genealógica e transformação do sobrenome não faltaram. Chamarei a atenção sobre uma das modalidades utilizadas na ocultação da origem judaica nesse Brasil do século XVII, pois ao que parece ela chegou intacta até nossos dias, ainda que aquele contexto histórico tenha perdido sua atualidade. Tratava-se, então, de tomar o sobrenome de um dos pais que tivesse o sangue mais puro e abandonar o do outro, herético, visto que naquele tempo, o sobrenome do pai ou da mãe eram atribuídos em alternância aos diferentes filhos de um mesmo casal. Na verdade, parece-me que guardamos este hábito, como se ainda hoje fosse necessário embaralhar as cartas e esconder nossas origens. Podemos inclusive perguntar-nos se não será essa questão das origens que, por vezes, torna tão incômodo perguntar o nome de família a alguém no Brasil. Pois se até aqui tentamos mostrar a flexibilidade reinante na transmissão do nome de família no Brasil, será agora necessário evocar o que pode ser sua contrapartida, isto é, a importância do nome.
Para tal, retornaremos aos textos de lei, onde essa importância se faz sentir. Trata-se de um artigo do nosso Código Civil, relativo ao estabelecimento da certidão de nascimento de gêmeos (mas esse artigo diz igualmente respeito a outros irmãos que se encontrem com o mesmo nome): “Os gêmeos que tiverem o mesmo nome devem ser inscritos com um duplo nome ou então com sobrenome completo diferente” (5) . Assistimos, na sociedade brasileira, a um apagamento do sobrenome em benefício do nome. Certos sociólogos põem este fato em relação com a tradição portuguesa, a que também o privilegia, argumentando que os nomes de família somente começaram a preponderar na Europa cristã medieval a partir do século XII. Será que este argumento se sustenta?
Preferimos referir-nos à língua e ao seu saber. Acontece que a palavra apelido, em português, de Portugal, significa tanto sobrenome quanto alcunha, ambigüidade da língua que será mais ou menos resolvida após a travessia do Atlântico. Se o termo, em Portugal, guardou este duplo sentido, a língua popular brasileira, no seu uso, vai privilegiar um só deles: o de alcunha. Este deslizamento semântico traduz a passagem feita do sobrenome ao apelido. E isto é tanto mais interessante que, etimologicamente, apelidar significa convocar. Talvez fosse preciso chegar a dizer que o sobrenome, no Brasil tende a perder seu poder de convocar o sujeito, cedendo lugar ao nome com a conseqüência de que a convocação se faria, então, sem inscrever o sujeito numa linhagem, sem implicá-lo numa relação de filiação.
Antes de formular algumas hipóteses acerca da função do nome de família no Brasil, gostaria de recorrer mais uma vez a dois exemplos, agora extraídos da literatura. O primeiro concerne a um personagem do romance de João Ubaldo Ribeiro, Viva o Povo Brasileiro (6) , que traça um painel fabuloso do Brasil dos meados do século XVII ate hoje. Nesse romance, encontramos o personagem de um mestiço “guarda-livros” na casa de um grande senhor, isto lá pelos anos de 1827. Quando questionado acerca de seu nome, eis o que ele diz:
“__ Como disseste que te chamas?
— Amleto Ferreira, para servir ao Monsenhor.
— É nome cristão? Amleto, nunca ouvi.
— Tem origem numa lenda inglesa, segundo sei, num poema ou tragédia inglesa.
— Numa tragédia inglesa, num poema? Temos aqui coisa, então, temos coisa!
A Inglaterra é excessivamente benévola para com os poetas e as artes frívolas. Se também tivesse músicos, estaria perdida. Então teus pais são leitores de livros profanos ingleses, é assim? Que livros são esses?
— Não sei bem, Monsenhor, o meu pai é inglês.
— O teu pai é inglês? Mas temos coisa, temos mesmo coisa! Mas és pardo, não és? Não mais vigoram as ordenações que vedaram aos pardos as funções públicas, podes falar sem susto, que, depois de bem servires ao Senhor Barão, poderá arrumar-te ele um bom cargo de meirinho ou, quem sabe, almocreve da freguesia, para que passes a velhice à farta e sem nada fazer, ha-ha! E onde está esse teu pai inglês, que faz ele?
— Vive na Inglaterra, não temos notícias há muitos anos.
— Na companhia da senhora tua mãe, naturalmente. Diz-me Iá.
— Não, Monsenhor, minha mãe vive cá na Bahia, com a graça de Deus, e é professora das primeiras letras.
— Sem dúvida. É liberta. Pois. E o senhor teu pai inglês?
— Era embarcado, aportou à Bahia embarcado.
— Corsário? E não o enforcaram os soldados de El-Rei? Ha-ha!
— Não, Monsenhor, era embarcado num vaso mercante.
— E criou-te alguma Ordem Terceira de pardos? Hão de ter-te criado bem, já se vê que és versado e no falar não cometes solecismos abusivos, como os que aqui tanto se escutam. Saberás contas bem, igualmente, do contrário não estarias como guarda-livros do Senhor Barão.
— Criou-me a minha mãe, coma ajuda de Deus. Há aulas públicas na cidade onde nasci, pude estudar..” (p. 65 – 6)
Alguns anos mais tarde, em 1839, encontramos Amleto numa situação financeira bastante favorável, graças a tudo quanto pôde desviar da fortuna de seu ex-senhor, que já tinha tresmalhado para o outro mundo. Amleto já estava casado, tinha filhos e preocupava-se com sua posição social, então, tanto quanto com esconder sua mãe preta e suas origens. Eis aqui um Amleto perdido em seus pensamentos:
“Pensou gulosamente no primeiro almoço. Tivera dificuldade em acostumar as negras da cozinha e a própria Teolina a essa refeição, que não impunha a ninguém mas exigia para si, e revelava freqüente desgosto por não ser imitado pela mulher e pelos filhos, pelo menos a mais velha, Carlota Borroméia Martinha Nobre dos Reis Ferreira-Dutton, que educava como uma inglesa, mas que não aceitava seu desjejum de rins grelhados, arenques defumados, mingau com passas, pãezinhos fofos, chá e torrada com geléia. Havia saído tão branquinha, tão alemoada, com sua tez diáfana, seus cabelos claros e finos, seu porte esbelto e frágil como devia ser o de uma jovem senhora da Corte de São Tiago, era tão dócil de maneiras, mas se rebelava contra aquilo, tinha náusea, ia escondido pedir broas, cuscuz, mingau de tapioca, bolinhos de carimã e café com leite às negras. Um dia, porém, haveria de aprender, afinal não era mentira, tratava-se de uma inglesa de origem, uma Dutton. Recordou com prazer a dia em que o padre-adjutor do Vigário Geral o procurou no escritório, enfiando com nervosismo a mão pelas dobras do sotaina para sacar a certidão de batismo falsa, tão meandrosamente obtida.
— Aqui a tem Vossa Excelência! — Dissera o padreco, um desses velhos que não conseguem rir mesmo quando têm vontade, fazendo apenas uma caretinha débil e fibrilante, os lábios tremelicando como se temessem afastar-se um do outro durante mais que um segundo.
— Reverendíssimo! — respondera Amleto, que, poucos minutos antes, tinha relido, no topo da lista das providências: ‘certidão Dutton’. Tomou o papel, chegou a fazer-lhe um pequeno rasgão numa das margens, tal a avidez com que o desenrolou, leu em voz a/ta. – Amleto Henrique Nobre Ferreira-Dutton! Ferreira-Dutton! Não acha Vossa Reverendíssima que soa bem, soa muitíssimo bem?
O padre não respondeu, tentou sorrir outra vez, bateu delicadamente a bainha da manga direita contra os cantos da boca, para enxugar os filetinhos de baba que nâo paravam de lhe correr das comissuras dos lábios. Mas percebeu que o momento requeria um comentário menos desentusiasmado.
— Sim, sim, tem um belo som. Ferreira-Dupom!
— Não, não, Ferreira-Dutton. Dutton, Dutton, é um nome inglês, não sabe? Do meu pai, John Dutton, John Malcolm Dutton.
— Ah, sim, queira Vossa Excelência desculpar-me, julguei tratar-se de um apelido francês.
— Não, não, inglês. Meu pai era inglês, acho até que parente distante de uns ingleses que ainda têm negócios aqui. E minha mãe era Ferreira, dos Ferreiras de Viana do Castelo.
— De Viana do Castelo?
— Sim, sim. Vossa Reverendíssima também é de lá?
— Não, não, sou ribatejano.
— Ribatejano, hem? Fica distante, fica bem distante.
— Pois. Pois, se bem percebo, Vossa Excelência, antes desta correção, chamava-se tão-somente Amleto Ferreira.
— Sim, pois, vicissitudes, coisas das questões religiosas do tempo de Dom João, incúria talvez dos padrinhos, as guerras napoleônicas,… Eram tempos conturbados, estas coisas não eram de tão perfeita organização quanto o são hoje.
— Sim, pois.
— Mas a correção é necessária, de há muito que se faz necessária e, graças à compreensão de Vossa Reverendíssima e do Excelentíssimo Senhor Vigário… Vossa Reverendíssima compreende, em primeiro lugar era preciso restaurar a verdade dos fatos, a herança histórica de nossa família — afinal, nossa linhagem perde-se no tempo, tanto em Inglaterra como em Portugal —, que se espelha tão bem no nome. E, em segundo lugar, costumo emprestar grande significado ao nome, grande relevância. Não se deve escolher um nome ao capricho, ao acaso. Meu nome, por exemplo, é Amleto, escolhido por minha mãe em homenagem a meu pai; Henrique é pela velha tradição das casas reais de Inglaterra —Henrique, Jorge, Carlos, Guilherme, Eduardo e assim por diante —; Nobre porque este é sempre o terceiro apelido de nossa família portuguesa e, finalmente, Ferreira-Dutton, que é o nome correto da nova família, resultado da união anglo-portuguesa.
— Sim, pois.
— No caso de meus filhos, que, graças também à compreensão que sempre mereci da Igreja, já pude batizar com seus verdadeiros nomes… — Releu a certidão, beijou-a. — Sim, meus filhos não têm nomes escolhidos ao deus-dará. Nomen est omen, não concorda Vossa Reverendíssima?”(p.232-4)
Última seqüência. Após um grande salto no tempo vamos encontrar um dos descendentes de Amleto em São Paulo, em l972. Homem de negócios, rico advogado, ele deve receber um tio a propósito de negócios familiares e deixa-se levar pelas seguintes reflexões:
“Sim, mas, por outro lado, existem obrigações afetivas, obrigações de família mesmo. Énecessário manter o senso de família, o senso de estirpe. Pegou de novo o estudo sobre os Ferreira-Duttons feito pelo British-American Institute for Genealogical Research, que estivera mostrando ao Chagas Borges, na esperança vã de que ele calasse a boca. Os gringos sabem fazer as coisas, nunca que uma coisa dessas ia poder ser feita, com esta categoria, no Brasil. Era somente parte do estudo encomendado pelo tio Bonifácio Vicente, que lhe emprestara um dos dois exemplares recebidos. O resto ainda estava sendo completado, mas a conhecida impaciência do tio Bonifácio fez com que ele pedisse que organizassem num álbum o material de que já dispunham e ali estava o resultado. Uma pequena história da família escrita em inglês muito elegante, retratos de ancestrais e pessoas ligadas à casa, diagramas mostrando relações de parentesco.
Abriu na página onde se estampava o retrato do primeiro dos Ferreira-Duttons, Amleto Henrique Nore Ferreira-Dutton. Extensa biografia. O nome Dutton, na verdade, devia ter sido originalmente Hutton,atribuindo-se a discrepância à grafia confusa das letras maiúsculas na época e ao mau estado de conservação dos documentos pesquisados. Admitindo-se isto como o mais provável, pode-se traçar a linhagem a George Hutton, mais tarde Sir George Hutton, de uma família aparentada com a casa de Windsor por via da Duquesa de Kent, que veio ao Brasil porque desejava, por espírito de aventura, ter uma fazenda nos trópicos. Aqui conheceu uma moça, possivelmente Ana Teresa Rawlings Ferreira, filha de mãe inglesa católica, descendente de landed gentry, e pai brasileiro, herdeiro primogênito do Visconde de Casa Alta. Essa parte da história foi a mais difícil de verificar, dadas as circunstâncias em que se passou, pois a verdade é que Ana Teresa engravidou de George Hutton sem estar casada, o que, diante dos preconceitos da época, foi considerado uma verdadeira calamidade, abafada apenas pelo grande prestígio da família dela. Uma carta encontrada pelos pesquisadores, de leitura difícil porque a escrita está apagada em vários pedaços, dá razões para crer que, pouco antes do parto, George Hutton, que não sabia da gravidez por encontrar-se em viagem ao Grão-Pará, casou-se com Ana Teresa, que morreu ao dar à luz o menino Amleto criado amorosamente pelos avós depois que o pai foi convocado ao serviço de Sua Majestade, na Inglaterra. Daí para a sociedade com o Barão de Pirapuama, o talento que salvou os negócios semi-arruinados do barão, a casa bancária, ta-ta-ta, ta-ta-ta, tudo história já conhecida.
Olhou para o retrato do trisavô, sisudo, colarinho alto, pescoço empertigado, sobrancelhas cerradas. Branco que parecia leitoso, o cabelo ralo e muito liso escorrendo pelos lados da cabeça, podia perfeitamente ser um inglês, como, aliás, quase era, só faltou nascer na Inglaterra. Traços nórdicos visíveis. Como seria ele no trato, que voz teria? Evidente que era desses velhos caturras, poços de honestidade e austeridade, o que, se tinha aspectos positivos, certamente o atrapalhou muitas vezes nos negócios, porque gente como ele, excessivamente apegada a princípios e escrúpulos, tende a agir dentro de uma linha de conduta muito rígida, preferindo perder dinheiro a violar seus padrões éticos. Sim, devia ser um velho chatíssimo, mas uma figura interessante, um homem que não podia deixar de fascinar.”(p.641-3)
Eis como, em três gerações, fabrica-se um ascendente nobre e uma genealogia, como ao prevalecer-se de uma aristocracia imaginária chega-se a apagar suas origens. Veremos, mais adiante, de que modo este procedimento, algo caricatural, pode esclarecer-nos sobre a função do nome de família no Brasil.
O outro exemplo vem de um texto de Lima Barreto chamado Os Bruzundangas (7) , onde ele pinta o retrato de um país de mesmo nome que se parece como irmão gêmeo ao Brasil.
Um cidadão dessa República de Bruzundanga chama-se, por exemplo, Ricardo Silva da Conceição. Assim é eleconhecido em todos os recenseamentos oficiais, durante sua infância e sua adolescência. Ora, acontece que um belo dia, por uma série de felizes especulações, ele fica rico. Mas não sendo doutor, acha seu sobrenome algo vulgar. Decide, então, mudá-lo para ganhar um ar mais nobre, passando a se chamar Ricardo Silva de la Conception, novidade que ele logo publica no Jornal do Comércio local, encontrando-se, desta feita, o homem o mais feliz do mundo.
Esses dois exemplos merecem nossa atenção, pois se no fundo revelam a mesma busca imaginária, tomam caminhos distintos. Digamos que no caso de Amleto, ele se inventa um nome, enquanto que no outro trata-se de uma tradução. Mas então, o que se produz nessa operação de tradução? Talvez uma recusa do arbitrário da letra e de sua fonação, em favor de uma dimensão exclusivamente imaginária do nome. Lacan lembrou-nos o bastante que o nome próprio não se traduz, para que esta passagem de “da Conceição” a “de la Conception” nos interrogue. Sobretudo quanto à questão de saber em que essa tradução pode causar a felicidade de nosso personagem. Será que a simples tradução do nome seria, para este sujeito, uma garantia de ser melhor acolhido no lugar do Outro?
Talvez me tenha estendido demais nos meus exemplos, mas queria sensibilizá-los ao fato de que, no Brasil, um nome escolhe-se, traduz-se, inventa-se, recorta-se, transmite-se uma metade e mesmo nada. A que esta aparente anarquia pode estar ligada? O que isso encobre?
Temos elementos para pensar que a transmissão do nome de família, ou simplesmente a nominação, não obedece a coordenadas simbólicas. A prevalência do nome e sua pregnância imaginária podem confortar-nos nesta hipótese.
A operação simbólica que vai inscrever o pai e o filho numa mesma linhagem parece aqui não se suster convenientemente, como se o nome não fosse garantia desta filiação simbólica. Poderíamos pensar que o sobrenome ao qual se juntou a partícula Filho ou Neto fosse um exemplo de filiação garantida pelo nome. Mas podemos também pensar que se o sobrenome fosse suficiente, não teria sido necessário reforçá-lo com esse acréscimo, que vem precisar o lugar na linhagem.
Se o nome próprio não é mais garantia de uma inscrição, de uma filiação simbólica, isso leva a que ele perca seu poder de evocação da origem, e que cada sujeito tenha que inventar uma auto paternidade, como se cada nascimento fosse um ato de fundação em si.
Creio não me enganar ao formular a hipótese de que, no Brasil, a dimensão simbólica do nome próprio parece pelo menos fragilizada. É a dimensão imaginária que toma a frente, deixando o sujeito num desamparo indubitável. Mas como justificar esta ênfase imaginária do nome próprio?
Ligarei este fato aos efeitos da colonização. A minha questão é a seguinte: se a colonização instaura um modo específico de relação entre o Simbólico e o Real, tal como nos indicou Charles Melman, se ela veio intervir neste enodamento a ponto de que a única tomada possível do Real pelo Simbólico se faça pela violência (o que revela a falta de pacto simbólico), como pensar então a articulação entre Simbólico e Real que o traço unário supõe? Enfim, como poderia o nome próprio vir a funcionar como inscrição, localização, fixação de um sujeito?
Isso vem colocar, para tais sujeitos, a questão do Heim no Outro. Ter um Heim, como nos indicou igualmente C. Melman, é encontrar-se no Outro num lugar que se estima de pleno direito, pois esse lugar teria sido acomodado pelo antepassado, por aquele que lá estava anteriormente. Mas de que modo pensar, nos países que conheceram a colonização, a acomodação desse lugar no Outro pelo antepassado, se se supõe que não houve pacto simbólico, se este antepassado se mostrou ser, pelo menos no que diz respeito ao Brasil, antes de mais nada um puro gozador? Dito de outra maneira, como poderia o nome próprio guardar sua definição de puro traço, sua função de vir simbolizar este buraco no Outro que é fundador do Heim?
Parece-me que, no Brasil, o nome próprio perde esta função de indicar um lugar originário do sujeito, de garantir-lhe simbolicamente um lugar no Outro. Teria então vontade de dizer que no Brasil estamos face ao Outro como filhos ilegítimos que não teriam sido adotados no decorrer de uma operação simbólica de nomeação. Desde logo, o apelo a um pai imaginário só pode ser ainda mais gritante.
É então que nos damos conta que o “aqui cada um se chama como quer” tem pesadas conseqüências e vem indicar que numa “escolha” o sujeito passa a ser mais proprietário de seu nome do que justamente o contrário.
Mas, enfim, ao se tentar mostrar tudo quanto o nome próprio não opera do lado simbólico, deixa-se inteira a questão de saber o que estaria então em causa, o que viria suprir o nome próprio na prescrição do sintoma, por exemplo.
Diria simplesmente, para concluir, que esta instauração do nome próprio que privilegia sua vertente imaginária ou esta recusa particular da nomeação com o que isso comporta, não é sem conseqüências quanto à instituição do uma relação específica ao objeto, que vem determinar um laço social onde a regra do gozar sem limites encontra sua plena expressão.
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*. Artigo publicado originalmente no livro “Um Inconsciente Pós-Colonial, se é que ele existe” da Association Freudienne Internationale. – Artes e Ofícios Editora: Porto Alegre, 2000
1. Verger, P.. Fluxo e Refluxo de Escravos entre o Golfo do Benin e a Bahia de Todos os Santos, São Paulo, Corrupio. 1987, p.494.
2. ibid. p.491.
3. ibid, p.518.
4. Verger, P., Notícias da Bahia de 1850, Salvador, Corrupio, 1981, p.58.
5. Lei n°6.015 do 31 dezembro 1973. art. 63.
6. Ribeiro, João Ubaldo, Viva o povo brasileiro, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1984.
7. Barreto L., Os Bruzundangas, São Paulo, Brasiliense, 1956.