Denise Saint-Faire Garnot
Eu abordarei, na seqüência, dois pontos, o pomo-de-adão e as leis naturais, que extraí da longa observação de um paciente apresentado em Sainte-Anne durante sua hospitalização em 1983. Na exposição referente a ele, intitulada “A propósito da impressão de ser imortal”, que Marcel Czermark me deu a honra de reproduzir e de criticar em seu livro Paixões do objeto, eu me detive, além das manifestações da entrada na psicose, nos sintomas que angustiavam esse paciente – sua imortalidade e sua indefinição — sintomas que assinalavam uma síndrome de Cotard que, da minha parte, encontrava pela primeira vez. Terei, necessariamente, a oportunidade de voltar a esses sintomas, mas por uma outra via.
Em 1985, dois anos após a primeira apresentação, Areski fala de um fenômeno que ele não havia mencionado anteriormente: seu pomo-de-adão.
1- O pomo-de-adão
Algumas de suas falas permitirão situar o que perturba esse paciente:
Eu queria chamar a atenção da senhora para um órgão, o que se chama o pomo-de-adão, quer dizer, eu queria lhe dizer que ele é relativo à consciência do ser…
A senhora tem diante de si um sujeito, quer dizer eu, ele não é saliente e simétrico em relação ao queixo, ele está tombado para a esquerda.
É uma deficiência natural, eu não posso lhe explicar isso. É uma descoberta que eu fiz, porque antes eu incorporava os homens, eu incorporava seu espírito. Eu entro no interior deles… Eu olho os homens, quer dizer que eu me ponho no interior dos homens, eu incorporo o corpo deles e a alma deles, mas só que eu não posso segui-los. Se eu incorporo um homem, eu não posso segui-lo, então eu o largo para incorporar um outro.
Isso me ajudou verdadeiramente, mas não adianta nada…
Eu acredito que o pomo-de-adão é o único órgão que nos diferencia das mulheres. Então o meu é tombado para a esquerda, quer dizer que meu espírito é instável. É verdade porque eu mesmo o digo… e o instinto de morte também, é o que define o ser, é o que define o homem; ele traz consigo o instinto de morte, ele é definido.
O que me faz, possivelmente, incorporar os homens é porque eu sou indefinido… Dessa indefinição, dela decorre a imortalidade. Será necessário, antes de tudo, que eu me defina com as leis naturais que me rodeiam, que eu me defina para que eu tenha esse instinto de morte, para que eu tenha um espírito estável. Eu sei que não se pode torná-lo saliente nem simétrico em relação ao queixo, mas eu não me oporei a esse pomo-de-adão, mas eu me oporei, unicamente, ao cérebro, à consciência… porque eu sei, eu vivi um momento normal voltando da Argélia e quando eu pensei nessas idéias de suicídio eu as achei absurdas e nesse momento eu apalpei um pouquinho o pomo-de-adão, eu vi que ele tinha tendência a voltar a ser simétrico… Para que eu estabilize o espírito é preciso que eu tenha um pomo-de-adão normal.
Este texto é de uma inteligência magnífica e de uma angústia impressionante. Tudo nele poderia ser analisado: cada palavra, os encadeamentos, os tempos dos verbos etc.
Eu me detenho nesse “pomo-de-adão que não é saliente nem simétrico em relação ao queixo” que se apresenta como uma holófrase: o — pomo – de – adão – que – não – é – saliente — nem — simétrico — em relação – ao — queixo, uma vez que a primeira palavra arrasta consigo todas as outras. Ele não detalha as palavras. É um todo. De algum modo é por aí que ele se caracteriza. O significante Adão não parece, de forma alguma, ser capaz de evocar para ele o primeiro homem, o que poderia inscrevê-lo em uma linhagem, ainda que fosse mítica, mas ele não parece portador de nenhuma referência; é verdade que a questão não foi colocada; Adão se escuta, de preferência, como um nome comum que, imediatamente, se escreveria com um a, lembrando que Lacan fala de Adão dizendo que ele é uma “Adama”. É, antes, a questão do feminino que está presente aqui – tornar-se uma dama, uma mulher, é o que ele teme em razão mesmo disso que ele chama sua “queda para a feminilidade”. O pomo-de-adão é para ele um órgão essencial. Órgão que se vê como todo mundo sabe, situado na frente da laringe, na frente do cruzamento por onde passa o alimentar, o vocal, o respiratório. Órgão que o informa sobre seu sexo. Seu emprego do termo órgão me questionou sobre a noção freudiana de “linguagem do órgão” que Bernard Mary recorda em seu recente livro O saber da psicose. Mas trata-se, propriamente falando, de linguagem? Areski não atribui uma linguagem ao seu pomo-de-adão, é por vê-lo e por situá-lo imaginariamente que ele causa sua preocupação mórbida, melancólica; de tal modo que o termo de hipocondria pareça preferível, mesmo se a etimologia desse termo e o fato de o pomo-de-adão não estar “sob as costelas” poderiam fazê-lo descartar.
Voltemos, ainda, à maneira pela qual Areski liga os fenômenos: “é uma deficiência natural. É uma descoberta que eu fiz porque antes eu incorporava os homens, eu incorporava o espírito deles. Eu entro no interior deles”. Onde ele exprime um duplo movimento: ele incorpora, quer dizer, ele faz entrar nele, ele come, ele devora e, ao mesmo tempo, ele penetra no interior do outro pelo olhar, misturando pulsão oral e pulsão escópica, nessa dupla tensão que deveria assegurar-lhe a virilidade à qual ele aspira.
Qual é a ligação dessa incorporação dos homens que ele vê passar e desse pomo-de-adão (a-dama), esses homens permaneceriam atravessados na garganta? Ou, antes, se temendo mulher ele pensaria em uma gravidez por incorporação, freqüentemente alegada na psicose? Mas, também, quem são esses pequenos outros, desconhecidos, todos parecidos, que ele não escolhe — não importa qual, ele só pode penetrá-los de frente ou de perfil, jamais de costas —, ele insiste, seguro de que eles são portadores dessa potência de fazê-lo se tornar homem. Ele diz não se identificar com eles e ele não se toma verdadeiramente pelo outro que ele incorpora, mas ele quer lhe tomar o que imagina estar dentro do outro — do Outro ? —, seu ser de homem.
A dificuldade que ele encontra é de não poder seguir aquele que ele quer incorporar e de ter que largá-lo por um outro. O que o arrasta em uma busca bulímica, imaginária e infinita.
“Isso verdadeiramente me ajudou. Isso verdadeiramente me ajudou”, ele retifica, “mas apenas isso não adianta nada”.
O que é, então, para ele, esse pomo-de-adão? Ele é essencial já que é “relativo à consciência de ser”, de ser homem ou mulher, o que ele não chega a determinar e que ele chama sua indefinição. Pois a coisa é incerta para ele, já que, como vimos, seu pomo-de-adão não é como nos outros homens, saliente e simétrico em relação ao queixo, ele é tombado para a esquerda; a esquerda é la sinistra, o mau lado, o lado das mulheres. Entre sua tendência masculina e sua tendência feminina, ele é separado em dois, como ele o diz.
Quando Marcel Czermak o interroga sobre a relação entre o pomo-de-adão e a consciência de ser, ele responde: “é o único órgão que nos diferencia das mulheres”. Não é que ele ignore seu pênis, o pomo-de-adão é uma metonímia dele, um deslocamento para o alto. É ao seu pomo-de-adão deslocado que ele atribui sua impotência e o fato de não se casar porque as mulheres não vêm até ele (e também ao Survector que o priva de esperma).
Por causa da repetição dessa holófrase e, na medida em que ela é a expressão de sua angústia, o objeto de seu olhar (porque ele se olha no espelho para vê-lo, ele não apenas o “apalpa”), enquanto ele o tem na mão, enquanto esse pomo-de-adão é tomado no próprio corpo, enquanto ele busca aí a verdade de seu ser e que ele polariza sua reflexão, que tipo de objeto ele é? Poderíamos considerá-lo como objeto a?Ou apenas objeto da pulsão? É quase de uma fascinação que se trata. Sabemos que, na psicose — Marcel Czermak, várias vezes, nos explicou —, o sujeito equivale ao seu objeto S = a, e essa fórmula dá bem conta dessa captura de Areski por seu pomo-de-adão, se ousamos dizê-lo, e do fato de que ele está completamente incluído em seu pomo-de-adão.
Veremos se as leis naturais podem nos esclarecer sobre esse ponto.
2 As leis naturais
O que são essas leis naturais?
Após ter dito que ele tem “tendências para a feminilidade assim como tendências para a masculinidade”, ele acrescenta: “Escute, doutora, é que um homem compreende o homem, reconhece o homem e uma mulher igualmente, mas eu sou separado em dois, eu não posso conhecer o homem da mulher, é impossível. Será necessário que um dia eu me descubra completamente e me defina. Não cabe a mim me definir, cabe às leis naturais que me rodeiam, como nessa manhã, elas tiveram que me derrubar.” Ele fala, então, de um “coma” no qual ele teria caído e que lhe permitiria ver as coisas realmente.
A natureza é o que define o ser humano enquanto homem ou mulher e é, portanto, a natureza que não fez para ele o seu trabalho. Em outro momento, ele dirá (e vemos bem a posição de exceção que isso lhe dá e da qual ele não deixa de gozar ao mesmo tempo que ela o horroriza): “Eu sou um defeito da natureza”, expressão cotardiana, indiscutivelmente melancólica. Onde podemos ainda nos interrogar: é seu pomo-de-adão que é defeituoso, que é esse defeito? É ele que se veria inteiramente como defeito, como dejeto, como objeto a?
Revendo esse paciente, posteriormente, várias vezes em 1986, frente a frente, ele me contou de novo que tinha tido, durante uma hospitalização anterior, tendência a desmaiar, a ficar em um estado comatoso e a despertar em uma outra forma bem definida, definida enquanto homem.
Eu falei para o paciente que, nesse caso, valia a pena desmaiar, e ele respondeu:
“Sim, mas eu fico muito angustiado nesse momento, porque imagine a senhora que alguém que se sente imortal durante um certo tempo e que a morte, esse instinto de morte, se aproxima dele para incorporar sua alma a fim de defini-lo, é angustiante, é muito angustiante. E, aliás, há inconvenientes também, ou seja, eu me tornaria completamente idiota ou louco.”
Diante de meu espanto, ele acrescenta: “isso é a divisa da natureza”, uma vez que é essa natureza também que dá o instinto de morte e que, não o tendo “recebido”, ele se sente imortal, mas “por ser imortal, às vezes, eu me tomo por um deus”.
Ele pressente, então, com muita precisão, um encadeamento lógico: ele é imortal, quer dizer, ele não tem instinto de morte, na falta do qual ele vai se suicidar, quer dizer, introduzirá um corte real para se tornar morto na falta de ter sido mortal; do mesmo modo que ele é homem, mas não o suficiente.
No final de uma dessas entrevistas, ele interroga, ainda, essa noção de natureza: “Às vezes, eu me pergunto se é o destino, eu tomo aspectos femininos.” “Há algo que se impõe como se tivessem cortado meu sexo. Eu não o imagino, mas isso se impõe como se houvesse tesouras que cortassem meu sexo.” No instante seguinte, ele fala de sentir seios que crescem. Ele não imagina, mas isso se impõe a ele, distinguindo, desde então, imaginário e real.
A indefinição homem-mulher cede, portanto, progressivamente, lugar a uma transexualização, mas o dilema para ele é um pouco diferente daquele de Schreber, que se consola com ela porque ele se torna “a mulher de Deus”. Para Areski, o que está em jogo é passar de homem imortal, um pouco louco, para se tornar mulher, mortal, portanto, desonrada, a seus olhos, por causa do estatuto da mulher árabe, mas escapar à loucura. No entanto, no decorrer das entrevistas, progressivamente, vemo-lo consentir em sua transexualização por medo da loucura.
Um mês antes, quando me falava de sua angústia de se tornar mortal, ele aborda sem rodeios o que segue: “Atualmente, eu sou guiado, eu não sou independente. Quando eu saio lá fora, é preciso que eu atravesse, é preciso que eu pare diante de um carro verde, atrás dos carros cinza, senão me aconteceria uma desgraça”.
É uma voz que o guia. A voz de quem? A voz da natureza. Pois o cinza é a tristeza, o branco e o verde, a ecologia. Ele se submete à lei da natureza que o informa, mas não o suficiente: “Eu não sou veiculado pela natureza. Eu perdi o instinto de morte. Ao nascer, eu não tive o inato”. “O inato são os dados naturais. Eu não os tive ao nascer. Eu era superficial. É muita injustiça.” Por esse termo superficial, ele dá conta de sua indefinição.
Esse “eu não tenho o inato”, cuja injustiça ele denuncia, me parece essencial. Areski avalia com muita lógica que algo, de saída, lhe faltou. Nós podemos aí apontar a falta inata da Bejahung. Esse consentimento, primeiro, não existiu. Essa falha do inato aparece como falta primordial, como ausência de significante primeiro; ele coloca o dedo, como raramente se ouve, na forclusão aí inscrita, de saída, e causa de seu estado.
Conclusão
Como o Adão de seu pomo, a natureza que ele aqui invoca ou convoca não tem, evidentemente, nada de simbólico. Trata-se, antes, do Outro real cujas vozes lhe falam, cuja visada é de torná-lo louco, é esse real monstruoso, ao qual ele está submetido na angústia e na revolta.
Para Areski, o encontro com o Outro, é esse real da natureza que o priva, de saída, do inato que ele estima ter tido direito como todo mundo, que está em operação desde a infância (encontram-se marcas de psicose em sua infância). Outro real que o faz vacilar na direção da mulher desprezada e isso, apesar de seu prenome, pois Areski quer dizer, segundo ele, o Bem de Deus.
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Tradução de Luíza Ribeiro
Revisão de Sérgio Rezende