Francisco Leonel Fernandes
O título soa pretensioso, mas os objetivos desse trabalho são bem modestos: trata-se de precisar certos termos da clínica lacaniana para abordar-se de uma forma mais precisa o que seria uma psicopatologia psicanalítica. Entre esses termos, o termo chave, aquele que consta no título, “traço” – fala-se tanto de traço, mas o que é um traço? – mas há outros termos e expressões bordões, como por exemplo, “clínica do caso a caso”, “singular”, etc. São termos e expressões que não tenho a impressão de estarem sendo bem empregados, eles acionam muito mais consensos que dificultam as discussões do que permitem estas desdobrarem-se.
Uma situação exemplar: “singular” e “clínica do caso a caso”. A “clínica do caso a caso” permitiria o acesso ao singular do caso. Isso, mais do que absurdo é um erro de categoria. Não é possível nenhum saber sobre o singular, talvez tenhamos acesso a algo que toca ao singular num lampejo na “experiência” – se pudermos definir o que é “experiência”. De qualquer modo, não é possível que Lacan, alguém tão atento à lógica, tenha cometido a temeridade de falar seriamente de um saber do singular. Toda a questão do objeto a diz respeito justamente a esse ponto, o singular é o que é perdido, ele é da ordem da perda. E que pese, a profusão de enunciados dizendo o oposto, não há “sujeito singular”! É isso mesmo! Só há um sujeito, o sujeito da ciência e este não é singular! Ao contrário, ele é universal, articulável pela função universal da linguagem. Então não somos criaturas singulares? Somos singularíssimos, mas esta não está alojada simplesmente do lado do sujeito, ela está situada na relaçãocomplexa desse sujeito, que é um universal, com aquilo que se perde, relação que remaneja esse sujeito da ciência universal em sujeito dividido, como sujeito em relação a seu sintoma. Esse erro de categoria é comum entre os lacanianos, e é até provável que Lacan tenha formulado algo nessa direção, assim como Freud falava freqüentemente em “sentimento inconsciente de culpa”. Mas bem entendido, é um erro de categoria promovido por uma questão de economia discursiva. Era mais simples falar em “sentimentos inconscientes de culpa” do que nas complexas relações entre as representações, estas sim, inconscientes. Como é mais simples falar em “sujeito singular” do que situar a complicadíssima relação entre este e aquilo que se perde na operação que o constitui enquanto referido a um ponto de gozo sintomático que o “singulariza”.
Ora, a “clínica do caso a caso” é, na verdade, o modo específico, próprio da psicanálise, de negar a singularidade, de ultrapassar a singularidade da experiência e de um laço analítico específico com este ou aquele paciente. A psicanálise através do “caso a caso” nega o singular permanecendo, contudo, próxima a ele. É isso que significa caso a caso. Ultrapassar o caso, um caso, não por sua tipificação, sua diluição no categorial nosográfico advindo da psiquiatria, mas “entendê-lo” através do reenvio a outro caso, depois a outro, assim por diante. Vale dizer, a “clínica do caso a caso” introduz uma mediação que nos afasta da singularidade vívida da experiência: a categoria de seqüência. “Caso a caso” significa uma exigência posta ao psicanalista de dispor sua experiência clínica numa seqüenciação dada, fraca é certo, mas ainda assim uma seqüenciação. Um caso…, a unicidade com a qual ele se fixa para o analista, deve ser temperada, interrogada, pelo reenvio a um outro caso, depois a outro, assim por diante.
Desculpem se sou tão repetitivo e insistente, mas é que a questão tem uma importância prática enorme, sobretudo institucional. A “clínica do caso a caso” implica em muito mais do que uma defesa da singularidade vis a vis a atitude classificatória, entendida como generalizante, da psiquiatria e da medicina. Ela implica em um remanejamento e numa dinâmica própria da função do diagnóstico. Por quê se diagnostica? Para se ajustar meios a fins de uma maneira correta. Mas no caso da clínica, e isso não é uma questão apenas para a psicanálise ou a saúde mental, temos aí uma questão mais ampla que diz respeito à idéia mesmo de clínica. Então, no que diz respeito à clínica, tem-se de ajustar ordens distintas nessa articulação de meios e fins: sobretudo tem-se de ajustar o particular ao singular e vive versa. Mas como realizar essa articulação de ordens diversas, se justamente estamos a ver que elas não se compatibilizam? Isto é, o particular, o âmbito geral, não apanha, não detecta o singular como tal. Na medida em que o particular é da ordem do saber ele, por definição, já aboliu o singular, já se distanciou infinitamente dele.
Algumas palavras a mais são necessárias aqui. Em primeiro lugar, a confusão que se faz entre particular e singular. Trata-se de um erro “clássico”. O exemplo maior é o silogismo, “Todo Homem é mortal, Sócrates é Homem, logo, Sócrates é mortal”, que não é válido (a distinguir de falso) justamente porque nele figura um termo singular – o nome próprio “Sócrates”. Ele não é válido precisamente porque a lógica clássica não trabalha com entidades singulares. Para que o silogismo acima fosse válido seria necessário que, no lugar do nome próprio “Sócrates”, figurasse ao menos o nome de uma entidade particular. O particular é classe, ou melhor, subclasse, espécie em relação a algo mais amplo que a contem. E singular diz respeito ao que é único, o que faz a coisidade própria e específica desta o daquela coisa. Por exemplo, dizemos “eis um cisne preto”, em que sentido estamos falando de um cisne preto singular? O que rege a inteligibilidade dessa experiência tão banal? Não é a cor preta deste cisne, já que existem outros cisnes pretos, e então, ele é apenas um exemplar dessa subclasse de cisne que é a subclasse dos cisnes pretos. A discussão é bastante sofisticada, um indivíduo é um exemplar da classe e, a esse título, ele não tem nada de singular, ao contrário, ele é apenas a realização cabal do tipo que ela, classe, reúne. A singularidade do cisne então estaria muito mais no pronome “este” presente na frase “este cisne preto”. Mas em que sentido um pronome pode dizer em quê alguma coisa é singular? O pronome “este” se refere a qualquer coisa. Observem então como o tema é complexo, e como o singular esta sempre se perdendo e se desfazendo ou no particular ou no universal. Está aí a razão da confusão entre um e outro registro? Talvez.
Será que é possível uma fala singular? É difícil conceber tal coisa. Sempre que falamos tomamos posição pelo menos em um contexto já problematizado, de tal sorte que somos muito mais representantes desta ou daquela idéia, deste ou daquele argumento, elementos de uma subclasse de idéias e argumentos já constituída, do que propriamente falantes de nossa própria posição singular. Isso significa que o singular não incide no discurso? Não. Significa apenas que ele é raro e breve, sendo logo absorvido na trama particularizante ou universalizante do discurso. Tomemos, por exemplo, a incidência de uma obra de arte revolucionária, ela o será muito brevemente, posto que logo será reconhecida como exemplar e se incorporará à história da arte. Mas temos sua incidência breve, numinosa, capaz de reorientar o curso das coisas, e que podemos então inscrever no campo da singularidade. Enfim, é isso, o singular oscila entre o traumático de certos acontecimentos e o incomunicável da experiência. De um lado o acontecimento abrupto, fazendo suas incidências, deixando suas marcas e de outro, nossa experiência íntima, nosso vivido – neste fazemos naturalmente a experiência de nossa singularidade, mas aí o singular é incomunicável. Uma outra ilustração banal, mas didática. Duas cadeiras de um mesmo conjunto mobiliário. Como distinguir uma da outra? Será inevitável perseguirmos o traço que a distingue da outra, por exemplo, uma pequena marca, quem sabe um pequeno rasgo. Ou ainda, o que nos atrai num autor? A história que ele conta ou a maneira como a conta? É por isso que se deve situar o singular na ordem do que faz presença em perda: ele é da ordem do traço e do estilo.
Mas, retornemos à clínica, à questão do diagnóstico. Disse que o saber clínico, qualquer clínica, é sempre da ordem do particular. Faltou dizer que a clínica, qualquer uma também, tem por exigência atingir e se deixar retificar pelo singular. Trata-se, como vimos, de uma exigência exorbitante, qual seja, a de que toda clínica tem de transpor um impossível, franquear uma barreira impossível de transpor: do particular ao singular e vice versa, sendo dado que entre uma e outra não há continuidade. O médico tem de propor um tratamento para aquele camarada ali, não é para um sujeito em geral que pertence a esta ou aquela classe de sujeitos, é aquele ali, se a intervenção não ocorrer ele pode morrer… Daí porque ser tão agudo o tema do ato médico, posto que para se transpor esse impossível entre o particular e o singular se faz necessário ato – suspensão da operação do saber e queda no real com o conseqüente enfretamento da morte daí decorrente. Essa é uma conjuntura estrutural da clínica, não importando nesse contexto as manobras que este ou aquele médico faz, os absurdos que a institucionalização dos cuidados médicos promovem para diluí-la, para escamotear sua incidência na prática clínica. Vale dizer, qualquer saber clínico, embora particular, genérico visa aproximar-se do real singular daquele caso, daquela conjuntura específica, para, nesse limite, abrir para um ato clínico, lançar-se em tal ato. Trata-se então de ato, de algo que vai atingir o real, e que pese toda prudência, não se garante no saber. O ato clínico não é cego, ao contrário, ele se deixou guiar pelo saber, mas este não pode garanti-lo. Todo ato clínico gera como conseqüência um efeito que é heterogêneo ao saber que o orientou em seu ponto de partida, e é este mesmo efeito que, agora como causa, deve retroativamente retificar este saber inicial. Mesmo que o ato pareça ratificar esse saber inicial, nos casos em que tudo vai bem e tudo corre em acordo com o que foi antecipado, mesmo aí, o efeito não é uma mera dedução do saber inicial. Mesmo aí, o efeito é heterogêneo ao saber inicial, posto ele só ter sido possível, enquanto efeito, após o impossível franqueado pelo ato clínico.
Se transpor o impossível entre o singular e o particular está presente em toda clínica, o que caracteriza a psicanálise em vista da clínica em geral? Será que a psicanálise visa mais o singular do que as outras clínicas? Resposta pronta a evitar e que pouparia muitos problemas: a psicanálise visa a singularidade do sujeito… O essencial não está aí, a questão é a respeito de qual é a particularidade da clínica analítica, ela é clínica de quê? E aí a resposta vem simples: ela é uma clínica do modo como a linguagem produz e afeta um corpo, ancorando nessa produção a subjetividade e os laços sociais nos quais esta última vem consistir. É nessa conjuntura que emerge a problemática do sujeito, sua singularidade e seu modo de gozo. E é em função dela que devemos examinar se os métodos da medicina, da psiquiatria são os justos para abordar tal questão. A resposta é cabal: não são. E devemos entender porque não o são.
Toda clínica deve se pôr como uma espécie de superfície onde o real por ela visado deixa seus traços. É com esses traços que o clínico organiza seu saber, produz suas classificações, propõe estruturas, organiza as terapêuticas, etc., etc. Na medicina moderna sabemos os instrumentos preponderantes: o cenário enquanto corpo anatômico exposto ao olhar; a funcionalidade operatória entendida pelas dinâmicas físico-químicas oriundas da ciência. Tudo isso produzindo um corpo de saber que emoldura a recepção dos fatos patológicos. É evidente que essa organização clínica é orientada pelo visível, pelo o que é dado na extensão. E tal organização da clínica tem produzido efeitos espetaculares desde que os fatos se encaixem nessa apreensão do orgânico e do vital pela phisys. Mas o real intrínseco à linguagem se deixa apanhar do mesmo modo? Os neurocientistas diriam que sim. Nós analistas dizemos que não. Para nós uma clínica que foca os efeitos da linguagem é uma clínica que se orienta não pelo visível, mas pelo que se perde, pelo que só deixa traço na linguagem e em um corpo enquanto esse corpo é efeito e tomado pela linguagem. Dai porque a necessidade do psicanalista construir seu saber clínico de um modo distinto das outras clínicas.
O que caracteriza então o saber clínico do psicanalista? Eis o retorno de meu título, “clínica do traço”, “clínica do caso a caso”. Quais são os requisitos dessa clínica?
Em primeiro lugar a suspensão do movimento que orienta a apreensão dos dados clínicos para categorias gerais, visando uma classificação dos mesmos através da abstração. Situar o traço significa propor uma semântica de outra ordem. Traço é aquilo que indica a presença de algo, no que esse algo, justamente, se furta à presença, se furta à possibilidade de positivação, de localização espaço-temporal estrita (como na anatomia e na fisiologia). O traço é incerto, sua denotação é equívoca e indecidível, ele dá conta de uma referenciação que os lógicos não admitem por ser intrinsecamente não unívoca. A natureza do traço então é “metaforonímica”. Por isso invoquei a necessidade de uma “superfície” adequada para receptá-lo e mantê-lo enquanto tal, isto é, sustar o movimento que visa ultrapassa-lo transformando-o, por abstração, em critérios de pertinência a esta ou aquela classe (se o paciente possui os sinais a, b, e c então ele está com a doença/classe X); essa superfície não é a extensão anatômica, regida pelo visível, essa superfície é o texto. É no texto que pode se depositar tais elementos cujo ser é tão furtivo e é aí também que um estilo pode aparecer. Vê-se então de que modo o psicanalista aborda o singular, o real próprio de sua clínica: pelo traço, retendo-os em um texto. Ele não avança para a classificação, processo metodológico próprio da medicina que justamente apaga os traços por transformar o que seria dessa ordem na clínica, em sinais que irão fundamentar os critérios de pertinência.
Um outro ponto diz respeito à transferência. Serei breve sobre ela nesse contexto, pois ela merece uma reflexão bem mais ampla e dedicada. Mas não posso omitir aqui que a clínica do traço é também uma clínica sob transferência, isto é, a presença do analista é intrínseca à superfície onde os traços deixam suas marcas. É impensável que o que se apresenta numa escuta clínica não seja orientado por essa escuta ela própria – o que não significa de modo algum que o analista escute o que queira ouvir. A presença do analista apenas indica que o espaço onde se distribuem os significantes não é neutro, esse espaço apresenta uma torção própria conseqüência da dimensão de endereçamento própria ao significante.
Por isso vemos Lacan valorizar os grandes clássicos da psiquiatria. Isso menos pelos princípios metodológicos que eles abraçavam do que pelo texto que eles produziram, onde traço e estilo estão presentes na composição dos relatos clínicos. Os grandes clínicos franceses do inicio do século passado sobretudo. Esses inclusive tinham o mérito de não terem um ponto de vista sistemático, como os alemães, em matéria de psicopatologia. Eles faziam uma clínica que cortava rente aos dados, não se poupando em se deterem em “detalhes” notáveis, com os quais construíram síndromes variadas, como Clérambault, Cotard, Capgras, Séglas entre outros. A psicanálise se interessa por essa clínica por seu caráter textual, onde os traços estão fixados a partir de uma exigência descritiva que não pretende de modo algum ser exaustiva, mas uma exigência descritiva que visa localizar os elementos básicos,elementares e recorrentes que encontramos distribuídos de maneira desigual em todas psicoses. O que importa não é o organicismo confesso de Clérambault, mas como em seu texto, em seu estilo, ele isola as conjunturas significantes elementares próprias da psicose, por exemplo, na síndrome de automatismo mental.
Trata-se então de reter esse modo de apreensão do dado clínico: através do texto deixar passar o traço do caso e nas reviravoltas deste destacar as estruturas de exposição que apresentam os elementos, sempre conjunturas significantes, da psicose.
Dois pontos ainda. Um a articulação com a estrutura, outro a retomada da questão institucional.
Se o psicanalista não visa a classificação é porque seu manejo tem a ver com a palavra e portanto com a transferência. E nesse caso, é prudente, já que falar tem seus perigos, que ele possa identificar a posição do sujeito na estrutura da linguagem. Aí a questão crucial é a admissão de certos limites estruturais para cada sujeito submetido, pela razão que for, a ser atingido por alguma manobra clínica no campo da saúde mental (não importando se voluntária ou não). A subjetividade não é maleável a ponto de poder funcionar em qualquer conjuntura significante como pretende as ideologias da reabilitação social. À guisa de defender a cidadania, a saúde mental corre o risco de se tornar um operador da ideologia que justifica toda e qualquer manipulação no sentido de integrar os homens às exigências do sistema produtivo. A psicanálise defende que há limites para esses esforços, ela não os desconsidera por princípio, mas defende a idéia de que a subjetividade encontra limites importantes e de várias ordens para poder acatar com as exigências do mestre para que o sujeito se integre ao mundo do trabalho e da produção de mercadorias.
Daí a conseqüência institucional dessa discussão: trata-se de admitir certos limites estruturais para o sujeito a partir da clínica. Nesse caso a questão não é simplesmente a de se obter com os dictos de Lacan, “clínica do real”, “clínica do caso a caso” e outros uma composição com o aparelho ideológico no sentido de que este tempere suas exigências através de alguma benevolência que é introduzida pelos psicanalistas. Essa política retarda, adia a violência do poder em forçar os sujeitos, independente de suas condições, a freqüentarem a alienação cega proposta pelo mestre, mas não interroga efetivamente esse mestre em seus desígnios. É curioso que a bandeira da singularidade, que é brandida por muitos psicanalistas, freqüentemente esteja a favor de uma composição favorável ao mestre, que tempera suas exigências para, por outro lado, implementa-las com mais eficácia. Para o psicanalista a questão é a de que o mestre se enfrente com a loucura enquanto um limite à sua operação totalizante e totalizadora. Nesse caso o que deve estar em pauta é menos uma proclamação da singularidade dos sujeitos e mais a problematização dos sistemas de classificação que orientam as ações no campo da saúde mental de maneira cega aos limites do sujeito. Trata-se então de dar lugar a uma clínica que reconheça esses limites da subjetividade, de sua organização estrutural detectável tão somente por uma clínica que se orienta pelo recolhimento das incidências significantes que a fundam como traços no tecido de um texto. Tal clínica não se faz sem aparelhamento institucional, sem a disciplina da escrita e sem a posição ética que a afirma em ato e que situa este que a afirma lado do discurso analítico.