Charles Melman
Ela sai na rua e percebe que a olham. Olhares principalmente simpáticos, interessados, divertidos, e então ela passa diante da varanda de um café e se dá perfeitamente conta de que as pessoas que ali estão a vêem, cochicham à sua passagem; chega mesmo a observar que um motorista diminui a velocidade para olhá-la melhor, com certo prazer, parece, interesse, gentileza mesmo.
Evoco para vocês essa situação, que vocês reconhecem como fazendo parte de nossa vida social comum, para ilustrar de saída a maneira pela qual, por estar num certo lugar, numa certa posição, aquele que aí está se vê atraindo os olhares, sendo o objeto de falas que, nesse caso dela, não são enigmáticas, pois ela sabe muito bem qual é a natureza do interesse que suscita; mas de que maneira, por se achar num certo lugar, você se vê então atraindo os olhares, suscitando falas: em conseqüência, você se experimenta, é claro, em sua singularidade e em sua unicidade, em relação ao mundo que o cerca. Por esse fato, ‘Uma’ mulher não cede tão facilmente à paranóia, mesmo nesse caso, de um lado porque ela sabe que, nesse lugar, ela não é ‘Uma’, mas é plural, e de outro lado porque ela sabe perfeitamente o que querem dela. Ela sabe perfeitamente o que é a causa do interesse que suscita; não há mistério. Em outras palavras, pelo viés desse interesse que suscita, ela faz laço com o mundo e com o que se passa na cena do mundo, mesmo que, de início, ela se ache nesse lugar que é Outro em relação a esta cena do mundo. Isso que vai então, por assim dizer, enodar esse Real, no qual Uma mulher se mantém, com a cena do mundo, e fazê-la então subir a essa cena, isto é, de certa maneira fazê-la passar desse Real para a cena do mundo, é, evidentemente, essa instância que Freud chamou de libido e que, a partir de Lacan, chamamos mais precisamente de Falo. Aí está o que é, eu diria, o duplo dispositivo, ao mesmo tempo, sua pluralidade, inclusive a nossa: ela não está sozinha; se ela se crê sozinha, se se crê única, justamente aí é que os problemas podem surgir. Mas em todo caso, insisto, esse dispositivo que evoquei há um instante é, evidentemente, sem nenhum mistério.
Se começo por esse aspecto, é simplesmente para ilustrar que, aquele que vem ocupar um certo lugar, se nesse lugar ele se considera único, vai ser inevitavelmente objeto de confluências de todos os significados. Falam dele; é a ele que isso se endereça; trata-se de inúmeras mensagens que lhe são enviadas com, como sabemos, essa mutação do significante ao signo, pois ele próprio é, enquanto Um, o significado de todas essas falas. Assim, é dele que se trata e é ele que os significantes, virados signos, vêm então designar; o objeto, é claro, por isso mesmo, de todos os olhares. Chamo sua atenção para isso, sempre para tentar acentuar para nós o lado essencialmente estrutural da coisa: se classicamente se atribui à paranóia essa trindade sintomática que é o delírio de grandeza, de ciúme e de reivindicação, são estas as três características que atribuímos, nós, os ingênuos, os bem pensantes, os fiéis, as três características que atribuímos à instância divina. Ele é grande, Ele é único, Ele é ciumento. Está escrito textualmente: é um Deus ciumento, não se deve tentar enganá-lo. Então, o mais divertido, o mais engraçado, por assim dizer, é que ele reivindica: é preciso lhe pagar sua parte, devem a ele! Estão em dívida com ele. Aí também, como vocês vêem, essa evocação não tem nada de patológico. Ela lembra simplesmente o dispositivo, eventualmente clássico, eu diria, com relação à autoridade divina original, antes que… Enfim, pouco importa, não quero entrar nas mutações desta representação…
Em todo caso, podemos mostrar de que maneira estamos num dispositivo que nos rege, não importa de que lado estejamos. Estejamos na cena ou estejamos no Real que nos rege, não importa o que possamos querer e não importa o que façamos. E uma vez que evoco essa partição, essa divisão entre a cena do mundo, cena das representações, e o Real, observo-lhes imediatamente que, como vocês sabem e como Lacan não pára de martelar, cada um de nós é dividido, ou seja, em cada um de nós há essa parte ligada à cena do mundo e essa parte em que se distingue, justamente, o sujeito, o S, que pertence ao campo do Real. Deixemos isso, no ponto em que estamos, como lembrete para a seqüência. Se eu me lembrar, espero, ponho isso de lado e trato de mantê-lo comigo.
Em que condições, um sujeito, ao invés de conhecer essa divisão, vai, integralmente, como um Um intocado e intocável, vir ocupar o campo do Real em detrimento de qualquer comunidade com o mundo das representações, ali onde se sustentam os semelhantes? Por meio disso que evoquei logo no início, isto é, a valorização dessa instância que assegura o enodamento entre o Real e o que eu chamo, por enquanto, de cena do mundo, essa instância é evidentemente o Falo, isso que também nomeamos como Pai, que aqui é isolado, eu diria, em sua função ao mesmo tempo geradora e interditora.
Percebe-se imediatamente de que maneira o falasser se vê, por todas as razões que se queira, inclusive as melhores, preocupado em barrar, anular, foracluir, o que há de sexo em toda troca e em toda relação. A partir daí ele vai conhecer esse destino que não esperava, isso lhe cai em cima; o que faz com que, em conseqüência, ele se vê cortado da comunidade. O que é que ele tem agora em comum com ela, exceto, é claro, eventuais sublimações do sexo, mas isso é outra coisa. Então, ele se vê cortado da comunidade e, conseqüentemente, engajado nessa experiência original, que é a experiência paranóica. Com esse caráter evidentemente maior, digo logo, de que não se trata mais de um dispositivo dialetizável. Não é mais dialetizável muito simplesmente porque a dimensão do Real se acha fora de alcance, se vê escapar a tudo que seria o poder do significante. O que faz com que todos os jovens iniciantes, como eu mesmo fiz numa época, tentem falar com um paranóico, mas não se pode falar com um paranóico! Para que haja diálogo, é preciso que se esteja no mesmo espaço! Na medida em que ele se acha num lugar que, justamente, tem por propriedade escapar ao efeito do simbólico, mesmo a se enodar a ele, vocês sempre podem raciocinar com ele o quanto quiserem. Para ele isso não vai mudar, evidentemente, absolutamente nada.
Outro ponto interessante, que Pierre-Henri Castel evocou ao começar, é a questão do caráter não alucinatório freqüente nesses casos. Existem essas maravilhosas paranóias puras, que, do ponto de vista topológico e metapsicológico, eu acho que não são sem interesse. Porque, com tanta facilidade, não há nenhuma alucinação. Mas gostaríamos, espontaneamente, de propor, para compreendê-lo, que não há alucinação porque o corte é completo, é ele que é cortado, não há equívoco quanto ao que faz furo no sistema: é ele! Como se a nitidez e a precisão do corte, do isolamento do Real, justamente, não criasse problema, é mesmo evidente demais! É tão evidente que, como evoquei há pouco, não há mais nenhuma equivocidade. Tudo é claro, o mundo é límpido, cristalino. O mundo do paranóico é um mundo cristalino, tudo é transparente. Vocês lêem Rousseau, é cristalino, é maravilhoso, é magnífico! É puro, é nítido, é preciso. Não há sombra, e se eventualmente há uma, então aí!
Há uma, nas Confissões de Rousseau, em que ele conta muito bem o momento de um episódio interpretativo delirante. Indo se tratar numa estação termal, por causa de pedras nos rins, o caminho se fazia habitualmente em comboio e havia ali belos senhores e belas damas que se dirigiam às águas. Uma senhora, que ele achava particularmente charmosa, estava lá e ele se interessou. Na segunda vez em que se aproximou dela, para conversar com ela, um homem se interpôs entre ela e ele, e ele teve o sentimento, digamos logo a palavra, a certeza de que, juntos, eles zombavam dele. Está escrito com uma belíssima precisão clínica, inocente. Ele descreveu muito bem de que maneira a emergência de um terceiro veio figurar o quê? Justamente o desejo sexual! Veio figurar o desejo sexual que, de sua parte, ele só podia imaginar sob a forma do amor, puro amor; a emergência deste terceiro no quadro, era um terceiro que ele não podia simbolizar e que, então, o precipitou num estado interpretativo. Sabemos que vários anos depois esse estado teve os desenvolvimentos que conhecemos. Mas, eu já acho interessante ver a simplicidade, a clareza, a nitidez, eu diria, do traço do caso. De repente estava ali! Estava pronto!
Então, Lacan, como vocês sabem, se empenhou em descrever o que seria uma paranóia de autopunição. Para dizer a verdade, tem-se o sentimento de que cada atitude paranóica é provocadora e busca uma punição, uma parada, um basta, digamos a palavra, um corte. Em outras palavras, o paranóico faz freqüentemente o que é preciso para ser perseguido. E consegue! O que então faz com que a categoria de autopunição, me parece, faça parte do quadro do paranóico.
Quando se interessam por um caso enriquecido por uma psicose alucinatória e delirante, o do Presidente Schreber, vocês vêem de que maneira ele se curou. Ele se curou de seu estado alucinatório ao preço, permito-me lembrá-lo, ao preço do que vocês sabem, isto é, da aceitação de seu estatuto feminino. Por que é que eu digo seu estatuto feminino? Porque o lugar ocupado, como eu dizia no início, por aquele a que me refiro, esse lugar Outro é eminentemente o lugar habitado pelas mulheres.
Mas então, o que é que quer dizer que ele se cure com a condição de se vestir de mulher e ainda se ver tão bela nesse espelho durante dias inteiros? E ainda se imaginar a Eva primitiva, a nova Eva, aquela que vai engendrar toda a humanidade? Pois bem, ele se cura ao aceitar, e do ponto de vista metapsicológico é ainda bem interessante, ele se cura ao aceitar homologar o fato de ser a representação, não mais do Falo, do Um, do Um que se via tão perseguido, mas com a condição de se tornar o suporte, a representação de um objeto pequeno a! A partir do momento em que você aceita que, nesse lugar, vêm se produzir objetos pequeno a, não mais esse Um, mas objetos pequeno a, pois bem, você reintegra, por assim dizer, a norma, a norma da estrutura! Você volta a entrar na fila e conseqüentemente você restabelece, de modo artificial, o laço, o enodamento com a cena humana. Ou seja, o caráter enigmático do que era querido, exigido, esperado do perseguido: o que é que se quer dele, o que é que se procura para ele?
Evidentemente, isso tem para ele, vagamente, um fundo sexual, com imagens desagradáveis, querem fazer misérias sexuais com ele, etc. Certamente, mas isso permanece impreciso, na sombra, já que, pela maneira como o Presidente Schreber se cura, é a ordem do mundo, como ele diz, que se vê restaurada: tudo volta à ordem. Ele próprio, a partir desse momento, se diz salvo e não podendo senão comunicar a sua mulher, a seus amigos, a seus médicos, ao mundo todo, o que é a ordem do mundo. Foi assim que ele retornou à ordem do mundo, novamente.
Agora há pouco, como lembrete, eu disse que cada um de nós é dividido e comporta essa metade que, podemos dizer, pertence ao sistema das representações, e a outra metade, que pertence ao Real. Acontece, e são casos clínicos interessantes, importantes, que o sujeito – não se deve dizer o sujeito, deve-se dizer o falasser – não seja dividido, mas clivado. Ele é duplo. São as famosas vidas duplas. São essas formas de patologia em que se entra em contradição completa com a representação social. Aí não se trata de sujeitos divididos, trata-se de sujeitos clivados. Quando os interrogamos sobre as ações às quais puderam se entregar, nessa segunda vida, eu diria, nessa vida paralela, evidentemente eles não podem reconhecê-las. Eles sabem que elas existem, é claro, mas não podem reconhecê-las como lhes pertencendo, por assim dizer, como seu próprio, já que elas pertencem àquele que está do outro lado. E na cena do mundo, aquele que intervém aí, aquele que fala aí, não pode reconhecer o outro. Ele não pode falar disso. Então, é comum, habitual, que, durante investigações policiais ou de justiça, busquem, forcem a obtenção da confissão. Existe um processo em curso que se parece muito a isso que estou contando. Buscam, querem a confissão mas, insisto, para sustentar isso que se passou, seria preciso estar, com esse tipo de paciente, do outro lado com ele. Na cena do mundo não se pode fazê-lo dizer o que não existe!
Comumente não somos clivados, mas divididos. Isso quer dizer que para cada um de nós, no Real, acha-se um sujeito, um sujeito com o qual, insisto, podemos nos achar enodados, ligados; podemos reconhecê-lo como nos sendo ligado, o lugar de onde falo, ou então não reconhecê-lo. Em todo caso, há aí algo que só pede para funcionar como um Um, no Real. Para cada um de nós. Isto é, se é verdade que, para cada um de nós, há um organizador da subjetividade, um traço no Real que pode se isolar como um Um e do qual sabemos que, justamente, o que o caracteriza é sua singularidade, enquanto sujeito nós nos vivemos sozinhos, parece que somos o único. Vocês percebem por que é que Lacan virá, em seu seminário sobre O Sinthome – vou parar para que vocês não fiquem abatidos demais – virá indicar que um sujeito, enquanto localizado no Real, enquanto seguro e ciumento de sua singularidade, tem essa pretensão de se achar único. Lacan se interessava muito por esse sujeito. O Único como único (comunica)2. Pois então, o modo pelo qual esse sujeito, nascido da ciência, ou seja, foracluído no Real, é um sujeito paranóico. Ou seja, vamos encontrar, em cada um de nós, essas asserções, essas pretensões à grandeza, mesmo se escondemos bem o nosso jogo, mesmo assim! O ciúme é o pão de cada dia! Quem não é ciumento? Porque o outro tem a coisa, tem o algo mais, que pode dar inveja e então, se é ele que o tem, é que ele me rouba e deve devolvê-lo. Portanto, há um dano que foi feito. E também a reivindicação é um dos grandes problemas do sujeito, não ser reconhecido como deveria. Portanto há, penso, isso que é notável, mas o que é bizarro é que seja preciso todo esse trajeto, toda essa acessibilidade, para dizer as coisas como elas são.
Vocês não são, de modo algum, obrigados a aceitar nem um pouco isso que eu digo. Vocês podem perfeitamente mandar isso tudo passear e, pessoalmente, isso não me incomodará. Mas é preciso uma aceitação, uma lucidez que vai, eu diria, contra o narcisismo, em todo caso o do sujeito, o do eu, o narcisismo mais secreto, o mais forte. É preciso uma certa lucidez para se conduzir – uma vez isso dito, parece que se ajusta bem à psicopatologia da vida cotidiana – nem que seja nas relações de reciprocidade social habitual, em que se trata de lembrar a seu interlocutor que o sujeito sou eu! Eu é que sou o sujeito! Você é apenas… Sou eu que dito as regras do jogo, certo?
Para nós, o interesse dessa excursão é o de nos lembrar a prevalência, eu disse estrutura para simplificar, mas disso que é muito mais radical, o ponto de vista da topologia. Por que é que é mais radical? Pois bem, em razão do fato de que a estrutura, a da linguagem, se presta eminentemente à transferência. Ou seja, justamente, ela entretém nosso voto de que, no Real, haja esse ao-menos-um. Nós cremos nisso. A topologia não tem mais nada a transferir aí, é radical. É o tratamento que sempre funciona, se é verdade que o que nos comandaria, em última instância, não seria nem mesmo o significante, como queremos ao crê-lo, que ao crê-lo, que ao crer nele, crê-lo, crer nele3, mas que seria a escrita que se organiza e que é organizada, certamente a partir do significante, que imporia em retorno sua lei ao significante, e uma escrita que exclui a voz, exclui o isolamento desse ao-menos-um.
Vocês vêem de que maneira Lacan promove, à sua maneira, o que seria mesmo preciso chamar de um progresso intelectual, que não é insignificante, que não é sem algumas conseqüências.
Eu fico maravilhado de ver que vocês me ouviram quase sem insurreição, não houve motim. Obrigado por sua atenção.
1. NT – Escola de Ville-Evrard, 17/06/2005, Jornada de Estudo – A paranóia, entre sensibilidade e paixão.
http://ecoledevilleevrard.free.fr/Interventions/Melman17062005.htm Tradução: Sergio Rezende.
2. NT – Jogo de palavras em francês entre comme-unique (como único) e communique (comunica).
3. NT – No original, le croire, y croire.