Jean-Jacques Tyszler
A coagulação e a fragmentação são dois termos utilizados em probabilidades; a palavra muitas vezes usada ao invés de coagulação é coalescência.
A dificuldade para dar conta da clínica e da prática no campo das psicoses deve-se a um problema que pode ser pensado a partir desses dois termos extraídos do universo das matemáticas.
É estruturalmente impossível, em nossa apreensão do fato clínico, identificar ao mesmo tempo o processo de unificação próprio à psicose, o processo tão característico do 1 preenchedor e totalizante, tão perceptível, por exemplo, no que chamamos desde De Clérembault de ‘psicoses passionais’ e, mais geralmente, de passional na psicose – fazer Um no lugar do Outro, Um no Outro – é impossível identificar esse fato maior ao mesmo tempo que o trabalho hipocondríaco do objeto, na língua, no corpo e nas passagens ao ato do paciente.
Naturalmente, quando falamos de nossos acompanhamentos, e num louvável esforço de sistemática, estamos no reconhecimento: ordenamos os elementos linguageiros como fenômenos elementares da psicose, esses últimos com a produção delirante, enfim essa ‘tentativa de cura’, como dizia Freud, com o conjunto dos distúrbios do agir. Reencontramos com satisfação, capítulo a capítulo, o seminário sobre as estruturas freudianas das psicoses mas, acreditando reconhecer, não identificamos mais nenhum impossível em nosso saber e em nossa leitura; não nos deixamos guiar por nenhum traço propriamente falando novo, inaudito, inusitado. Nada se inventa mais, tudo só faz se verificar, fantasia de uma clínica acabada e claramente visível.
Essa dificuldade de uma clínica que é, como a luz, onda e corpúsculo, e que, por isso, desafia nossa apreensão redutora do olhar, é observável nos grandes debates e disputas sobre a nomeação da casuística e da nosografia. Quando De Clérambault nomeia a erotomania dando-lhe a força da escrita, seus colegas e amigos se insurgem, querendo reduzir a ‘descoberta’ ao saco bem conhecido dos amores delirantes.
Quando Cotard descreve sua famosa síndrome, será necessária a autoridade de Seglas para dar valor a essa forma de negação jamais repertoriada como tal até então. Quando Lacan fala em sua tese de paranóia de autopunição, ele não hesita em fundar uma tipologia cuja pertinência não se deve à estatística.
A nomeação clínica é um tempo de coagulação, ali mesmo onde a fragmentação e a atipicidade são sempre a regra.
Trata-se a cada vez das ‘ficções’, no sentido forte de J. Bentham, ou seja, uma maneira de ligar um real, eminentemente instável e difratado, a uma escrita.
Essa clínica das psicoses, para sempre dividida entre onda e corpúsculo, é, ao mesmo tempo, a decomposição em espectro da própria transferência. Eu os remeto aos dois trabalhos, já ‘clássicos’, de Marcel Czermak, que analisa, através de histórias clínicas cuidadosamente desdobradas, a maneira pela qual os elementos comumente enodados na transferência se decompõem, cada qual por sua própria conta.
Bem esperto, em todo caso, o clínico que pode dizer quando é que se trata de uma mania ou de uma paranóia; seguindo o significante, ele ignora forçosamente a imagem; apoiando-se no especular, ele libera o eco parasitário; convocando o nome, ele desencadeia a sua revelia o objeto…
Coagulado em relação a uma transferência, o paciente é ao mesmo tempo fragmentado em lugares, cada um Outro para o Outro.
Deve-se, no entanto, renunciar, baixar os braços diante de formas tão desconcertantes da transferência?
A hipótese de trabalho que proporei é paradoxalmente a seguinte : no acompanhamento dos psicóticos, cada termo da teoria analítica – que antes de tudo é práxis – pode ser um operador.
A condição é dar a essa palavra operador a riqueza que lhe dá Lacan quando se apóia nas três dimensões do Real, do Simbólico e do Imaginário.
Um operador é um significante que abre à triplicidade – Real, Simbólico, Imaginário – única garantia de uma transmissão que não seja puramente intuitiva.
Essa questão está presente no início das discussões entre Freud e Karl Abraham.
Freud critica amistosamente, mas firmemente, a tendência explicativa demais de Abraham :
“O erotismo anal, o complexo de castração… são fontes de excitação ubiqüitárias e assim fazem parte integrante de qualquer síndrome patológica. Elas dão ora nisso, ora naquilo; … a explicação da afecção não pode ser dada senão por seu mecanismo considerado de um ponto de vista dinâmico, tópico e econômico.”
Tomemos alguns operadores :
A pulsão
O caso mais exemplar recentemente para mim, não se trata de um acompanhamento de consultório, mas de um acompanhamento de CMPP, Centro médico psicopedagógico; eu substituí, quando cheguei ao CMPP, uma colega que dava suporte, desde a infância, a um rapaz que tinha agora 19 anos e que estava no ano do vestibular com dois anos de atraso. Este jovem apresentava uma psicose infantil cujo relevo tinha se atenuado durante os anos de apoio encontrado, tanto do lado psicológico, quanto do pedagógico, mas sua relação com o Outro e com os outros era marcada por uma ambitendência nítida, uma depressividade às vezes alarmante e um negativismo total diante de certas matérias escolares, em particular a matemática; ele esquecia quase tão rápido quanto aprendia, para grande desespero de sua avó professora de matemática.
Contra ventos e marés, a colega responsável por seu acompanhamento lutou para manter essa criança já crescida no quadro escolar, já que as ‘suplências’ familiares o autorizavam.
Ao assumir a responsabilidade do caso, fui igualmente informado de um fato que se passara em silêncio, até então, com esse jovem: ele tinha desenvolvido, sozinho e em segredo, há alguns anos, um talento para a fotografia que lhe tinha permitido fazer, com brilhantismo, concurso em duas escolas especializadas de Paris.
A qualidade de seu trabalho era tal – ele tinha ‘press-books’ – que, a princípio, os júris das escolas suspeitaram de uma montagem, de uma ajuda profissional, e tentaram pegá-lo…
Ele se tornou a coqueluche de sua escola, cujo diretor foi parabenizado por ter protegido um talento freado por uma clínica bastante adversa. (Na verdade, a cada ano, o CMPP tinha que batalhar com a instituição escolar para que esse jovem não fosse mandado embora…). É certo que aqui a função do olhar assume, de maneira quase isolada, uma ‘super-especificação’ que vai permitir uma saída imprevisível quanto à orientação escolar e à entrada na vida ativa; e quanto à transferência? Nem déficit, nem desespecificação, ou antes, resposta inesperada ao que se passa em outros registros no modo átono e desafetado tão próprio à psicose.
Eu me recordarei por muito tempo de seu sorriso brilhante quando ele tirava de sua pasta as fotos encomendadas por uma grande marca de alimentos: tornar vivos/desejantes os objetos de consumo mais comuns é uma experiência que eu não pensava estar disposto a aceitar. Aqui o caso é favorável, mas esse pode também ser o caso da psicótica relatada por Marcel Czermak, cuja suplência é um voyeurismo perverso.
Posso aproximar desse exemplo o jovem cujo distúrbio característico da identidade sexual eu evoquei durante as jornadas da Association sobre o tempo. Vivendo-se desde sempre do lado das meninas, e ‘enjoado’ de sua imagem no espelho, esse jovem paciente cristalizou uma identificação imaginária a uma atriz; por volta dos 12 anos, ele se detém diante da beleza dessa atriz mestiça de olhos cativantes e voz inesquecível.
Colapso da voz e do olhar, talvez também do nome próprio, tudo bascula e nosso paciente se sonhará, a partir de então, na pele dessa mulher.
« Sinto-me mais à vontade no seu corpo; sinto-me bem em sua pele de ela ».
Não é simplesmente a tendência feminizante que eu gostaria de ressaltar, mas, assim como para o primeiro paciente, a impossível entrada no símbolo, em francês e em matemática; o raciocínio lógico que o colocava em dificuldades na escola. Eu o confiei a uma foniatra que trabalhou muito com ele as questões de ortografia, de gramática e mesmo da grafia das letras.
Esse duplo acompanhamento aliviou muito sua tendência à sensitividade e ao derrotismo com fundo de impasse subjetivo: não tenho lugar, sou sem lugar…
Forma do trabalho destacado da letra, por sua própria conta, de algum modo, nas avenidas da linguagem estruturada.
A tendência transexualista desse jovem paciente tomou uma tonalidade de latência.
Provavelmente ela retomará seu curso, pois ninguém pode, artificialmente, suturar a imagem e o objeto.
Em compensação, a vertente sensitiva, paranóica, pôde se aliviar, o que não é nada, quando se conhece a tendência regularmente passional do transexualismo psicótico cristalizado.
O significante: nas psicoses, enfatizamos, com razão, a redução do significante ao signo, da equivocidade à univocidade mortífera.
Mas para alguns pacientes, os casos mais favoráveis, uma certa disponibilidade é incontestável no trabalho do significante (cf. Joyce em Le sinthome). Eu evoquei amplamente, para o colegiado de formação dos analistas, o acompanhamento dessa paciente filósofa, especialista em fenomenologia alemã, crítica de arte e de literatura. Sua psicose interpretativa, inserida na paranóia de um pai, não deixa nenhuma dúvida, mas esta jovem mulher pode escrever, até certo ponto, sobre Kertesz, preparar um ensaio sobre os Tags, produzir artigos sobre o escultor Zadkine…, nada de delirante nisso tudo e, muito ao contrário, toda uma série de questões surpreendentes sobre a arte moderna, “a ideologia do extremo contemporâneo” dos artistas de hoje, ou esses intrigantes “procedimentos de avaliação”, que exigem a presença de público no momento em que a obra artística é fabricada.
Criação participativa; forma de transitivismo que J. Bergès não realçou e sobre as quais ela reflete. Não posso descrever em detalhe as pistas através das quais essa paciente me conduz; a direção da cura não deixa nenhuma dúvida, mas não no sentido em que entendemos habitualmente.
Ela interroga amplos aspectos da arte que se faz nos países recentemente liberados do totalitarismo, com uma pertinência e uma perseverança incríveis: de que maneira os artistas codificaram suas obras por ocasião das monstruosidades do século XX? O que é que a entrada a passos largos na dita democracia e na economia liberal produz?
Estaríamos numa fantástica amnésia de identidade, disfarçada em uma “arte renovada”, que não se volta nem para a contemplação nem para a abstração?
Ela compartilha o gosto do autor de « Ser sem destino » quanto aos autores/leitores da Mitteleuropa.
« De um lado o poder inapreensível, irônico, átono, indecifrável ; de outro, a pusilanimidade, o conformismo, a tragédia grotesca e visível que enclausura as pessoas”.
Eu não diria a seu respeito, por outro lado, que ela « quebra pelo interior os limites da língua”, pois essa invenção não está disponível para ela; ela chega ao limite de sua estrutura, cavando as metáforas e os neologismos poéticos ao ponto de se quebrar a si mesma. Então, tratar-se-ia de milagre? Enodamento pela escrita, muito, e transferência, um pouco, de uma psicose evidente?
Pois bem, não, pois pelas razões evocadas como preâmbulo, quando essa paciente está no meio de sua produção de idéias, e bem paralelamente, o Um e o objeto prosseguem seu “Ser sem destino”: episódio erotomaníaco em determinado momento, desmoronamento persecutório em outro.
O topos, o lugar
Georges Perec expôs em Récits d’Ellis Island a maneira como ele vê a relação com sua filiação, com sua identidade: “Em algum lugar eu sou estrangeiro em relação a algo de mim mesmo; em algum lugar eu sou “diferente”, mas não diferente dos outros, diferente dos “meus”. Eu não falo a língua que meus pais falavam, eu não compartilho nenhuma das lembranças que eles puderam ter, algo que era deles, que fazia com que eles fossem eles, sua história, sua cultura, suas esperanças, não me foi transmitido”. Ele vai inventar, como sabemos. Mas o que pode fazer o psicótico com uma questão assim? Fui levado, em várias ocasiões, a acompanhar paranóias que colocavam seu lugar impossível, sua ausência deHeim, como cerne de seu questionamento. O dilema ‘um ou outro’, ou eu ou o outro, matriz mínima da paranóia, pode, ainda aí em casos favoráveis – está longe de ser a maioria – abrir uma forma de interrogação: se é o outro que parece viver e não eu mesmo, será por uma falta de um verdadeiro encontro?
Marcel Czermak muitas vezes nos alertou quando ao valor dos encontros « bem sucedidos » !
Mas há, no questionamento proposto, uma transferência, um espaço complexo, ao mesmo tempo aberto e fechado, limitado e infinito, cujo desdobramento merece interesse e prudência. Assim, essa jovem mulher, com uma vertente passional evidente, que demonstrava de maneira experimental o interesse pela triplicidade trabalhada, o nome, a imagem, o objeto.
Ela tinha me alertado, ao me contar o episódio erotomaníaco face a seu professor de filosofia, com essa frase banal, mas que soava curiosamente: “eu o amo com todo meu coração”.
O que me intrigou é que, ao lado dos caminhos da paixão (trabalho do Um unificador), ela se entregava de um modo errático a encontros pela Internet, entregando-se em seguida, sexualmente, ao medo e à busca de ser contaminada pela Aids (trabalho do objeto de dejeto que marcava uma vertente melancolizada).
Depois, um dia, a meu ver pelo fato da ligação transferencial : « eu, os homens que eu prefiro são os árabes, pois eles respeitam as mulheres…”, forma de postulado difícil de esclarecer com ela nas questões do momento de sua vida, mas que conduziu, quase imediatamente, a um encontro bem sucedido com um rapaz judeu, praticante…
Ela aceitava, pela primeira vez, um certo « semblant » de vida com esse rapaz, uma maneira de sustentar a imagem e o objeto ao preço da escolha de um nome que colocava, de saída, as questões do tudo ou nada: será que ele poderia se casar com uma não-judia? Será que ela devia se converter? Ela estava imediatamente pronta para isso, será que ela devia lhe fazer um filho pelas costas?
Quanto a isso, notemos que é a força real do clínico que é solicitada para dizer um Não que corta um pouco o gozo do passional em jogo na psicose.
A pulsão, o significante, a metáfora, a imagem, a letra, o gozo… cada uma dessas palavras pode ser um operador, uma via para o que pode ser praticado.
É a estrutura clínica que determina, a cada vez, a aresta, o traço sobre o qual podemos trabalhar.
Terminemos pelo belo termo ética. Como proteger sem infantilizar, interditar sem humilhar, dirigir sem se erigir em guardião dos costumes e do bom gosto? Há um trabalho de enodamento pela dignidade.
É no momento em que se verifica a possibilidade de uma redução lógica do sujeito a seu objeto, o que a psicose mostra com toda clareza, que a questão da dignidade toma sua urgente atualidade.
O destino reservado ao cadáver de Heitor na Ilíada é uma lição que a Grécia antiga nos permite ouvir. Os deuses de Homero são de um arbitrário absoluto; o destino ‘é a estrutura’. Mas o próprio Zeus intervém para limitar o furor de Aquiles: consideração, respeito, dignidade, devem ser dispensados a um homem que não é mais nada; argila e nada.
Como diz Jacqueline de Romilly, nossa moderna crueldade ultrapassa em muito a de Aquiles.
1Le Un et l’objet dans la psichose – trabalho apresentado na École de Ville Evrard, na Jornada de Estudo de 16/06/2006 – http://ecoledevilleevrard.free.fr/Interventions/Tyszler16062006.htm
Tradução: Sergio Rezende