Jean-Jacques Tyszler – 04/04/2005
Nos anos 80, os estados-limites suscitavam o entusiasmo dos professores de psiquiatria, na medida em que eles encontravam aí um encorajamento para o trabalho de demolição de toda a nosografia clássica.
A apresentação de Henri Rousselle em Ste.-Anne, nessa mesma época, tomou a contramão desse desprezo de uma clínica mais detalhada e de uma troca séria com o paciente.
Sabemos que Lacan, por sua vez, quando de suas apresentações no serviço de Daumézon, nunca recorreu a essa terminologia vinda de uma corrente analítica que ele combatia.
Hoje, em nossa prática psiquiátrica, esse termo estado-limite, borderline, aparece com uma freqüência alarmante nas comunicações e testemunha o desamparo atual na formação dos clínicos.
Que objeto clínico trata-se de identificar com esse termo?
Tentaremos situá-lo através dos escritos de alguns de seus promotores: Otto Kernberg, Margaret Little, André Green.
Essa noção de estados-limites vem da corrente psicanalítica americana e remete às dificuldades encontradas no tratamento de alguns pacientes, principalmente nas manifestações da transferência.
Para O. Kernberg (Os distúrbios limites da personalidade, As personalidades narcísicas), existe realmente uma organização psíquica estável, específica, que responde a essa terminologia. Suas referências são as da psicologia do eu e da teoria da Relação de objeto, próprias da corrente anglo-saxã. No plano clínico, ele observa com esses pacientes uma psicose de transferência, que se distingue nitidamente da transferência na neurose.
No plano sintomático, esses pacientes apresentam uma angústia flutuante, difusa, um conjunto de sintomas neuróticos: fobias múltiplas, particularmente sociais, sintomas de conversão, fugas histéricas, amnésias e distúrbios do comportamento, especialmente alimentar e sexual.
Além das personalidades impulsivas, toxicômanas e das estruturas depressivas sadomasoquistas, observa-se ainda traços de personalidade que remetem a estruturas pré-psicóticas clássicas, como personalidades paranóides ou esquizóides e organizações ciclotímicas.
Enfim, o estudo da personalidade conhecerá um desenvolvimento mais particular nesses distúrbios sob o conceito de personalidade narcísica.
O autor se referirá também a um ponto de vista estrutural, mas no sentido de Rapaport e de suas concepções sobre o eu, considerado como uma associação de estruturas e processos mentais. A importância é dada aqui às estruturas cognitivas e defensivas da personalidade. É considerada a fraqueza do eu, traduzida por uma falta de tolerância à angústia e de controle pulsional. O privilégio é dado então, na constituição identificatória dessa instância, às imagens precoces.
O principal mecanismo defensivo próprio dessa estrutura será o de clivagem, clivagem do objeto em bom e mau. Serão realçados também outros mecanismos de defesa específicos, tais como a idealização primitiva, a identificação projetiva e o desmentido.
Enfim, no tratamento desses pacientes, é do ponto de vista da transferência e sobretudo da contra-transferência que se revelarão as particularidades dessa população. Para
O. Kernberg, no encontro com um paciente desses, o eu do analista é remanejado. De um lado, pelo menos, ele sofre uma regressão que pode levar a identificações projetivas. Face a essa intromissão de um eu sobre o outro, seria preciso então enfocar uma terapia interpretante, terapia em que tudo seria interpretado sem equivocidade.
Do lado do paciente, a psicose de transferência se traduziria por uma perda da prova de realidade e idéias delirantes que incluem o terapeuta.
Essa concepção da transferência é dominada por aquela de um processo identificatório, ele próprio fundado exclusivamente numa relação imaginária do eu ao outro, o semelhante. Na transferência, é então a realidade da personalidade do analista que vai determinar o universo inteiro do paciente (referência aqui a H. Searles). Insiste-se então aqui não na assimetria na transferência, mas numa relação dual eu a eu.
Na prática, é então o apelo à consciência que vai dominar o debate analítico, na medida em que esse eu é exclusivamente considerado como uma instância adaptativa
à realidade (Psicologia do Ego) desembaraçada de sua referência, no entanto essencial, ao narcisismo, em Freud. Privilégio dado então à dimensão imaginária da transferência, característica nessa concepção dos estados-limites.
Margaret Little ( A transferência nos estados borderline), que se inscreve na filiação de Winnicott, em face das dificuldades encontradas no tratamento desses pacientes, propõe-se a por em ato o “holding”, ou seja, restituir, por certos gestos, uma dimensão da maternagem que pode ter faltado ao paciente na sua tenra idade. Tais intervenções na realidade seriam um pré-requisito para esses pacientes, antes de utilizar as interpretações verbais, em face das manifestações de angústia psicóticas e das idéias delirantes que aparecem na transferência.
Enfim, André Green (A loucura privada, Psicanálise dos casos limites) propõe uma via mediana, entre as concepções de Searles ou de Kernberg e a de Lacan, referindo-se a um debate que foi inaugurado já no tempo de Freud com Ferenczi.
A importância dada aos traumatismos da primeira infância leva a considerar que os pacientes marcados por eles são estruturados por conflitos bem diferentes daqueles dos neuróticos habituais. Seria preciso então atribuir, no tratamento, a preeminência ao vivido ou se manter fiel às regras da interpretação? É a questão dessas categorias ditas limites.
Referindo-se ao caso do Homem dos lobos, Green isola um certo número de mecanismos específicos, em cujo primeiro plano se encontra, aí também, a clivagem. Clivagem psíquica entre o domínio do afetivo e o do pensamento. Oscilação, nesses sujeitos, entre comoções intensas que traduzem a manutenção dos mais variados e mais contraditórios investimentos libidinais e, por outro lado, uma lógica impecável de pensamento.
Além dessa clivagem, outros mecanismos de defesa vão especificar esse estado: uma defesa pela somatização (que não é conversão), a expulsão pelo ato e pelo desinvestimento como expressão primária. Lembremos, em Green, sua noção de “psicose branca”: “Hipocondria negativa do corpo e mais particularmente da cabeça, impressão de cabeça vazia, de buraco na atividade mental… assim como ruminações, pensamentos compulsivos, divagações sub-delirantes”.
Mas finalmente chegaremos, também com esse autor, às noções de fusão primária e indistinção entre sujeito e objeto. Ele insistirá na importância do limite para todo sujeito, evocando diferentes formas de limites mais ou menos permeáveis como o medo, o tecido cutâneo, ou tudo o que pode fazer superfície, envoltório psíquico, para um sujeito, e organizar sua relação ao objeto.
Em conclusão, o conceito de estado limite representa bem uma seqüência clínica lógica das concepções veiculadas pela Psicologia do Ego, de um eu forte, e das teorias da transferência-contra-transferência, reduzidas a uma relação dual de eu a eu, concepções que vieram desviar o aporte freudiano, bem antes de contestar as elaborações de Lacan, que na maioria das vezes eles ignoram. A proliferação dos estados-limites hoje em dia nos demonstra os limites de uma certa orientação, tanto prática quanto teórica.
1 NT – Para ler o texto original, em francês:
www.freud-lacan.com/articles/article.php?url_article=jtyszler040405
Tradução: Sergio Rezende