Jean-Jacques Tyszler
DELENDA EST CARTAGO.
Três anos foram necessários a Scipião Emiliano, helenista célebre, e a suas legiões desinibidas para dominar a cidade da bela Elissa e destruí-la completamente.
O pequeno museu de Cartago deixa no visitante a lembrança alucinada de uma epopéia que ainda fala ao montanhês do lado francês ou italiano dos Alpes. Aníbal e seus trinta e sete elefantes abrindo caminho nas sendas e desfiladeiros.
Como Scipião, o turista, um pouco estupefato, enxuga uma lágrima. Era preciso aniquilar tudo por causa de um porto, atentado sacrílego à potência comercial de Roma?
Bellum justum.
Sabemos o quanto a noção de guerra justa impõe novamente sua visão geopolítica ao mundo. Já ressoa a proeza dos soldados que substituem, em nossos corações e nas telas, os médicos sem fronteira. Sustentamos, para esclarecer analiticamente uma atualidade que se acelera, que está em vigor uma nova lógica, que desloca o estatuto da universalidade em relação à particularidade, a singularidade ficando fora do campo. Lacan trabalhou muito com as constantes aristotélicas para fazer surgir Outro em toda representação totalizante.
O “não todo” do feminino dá sua aeração ao “para tudo” do masculino.
O homem acredita conhecer tudo sobre o sexo, sem perceber que está no piloto automático. A mulher não pode dizer tudo, pois seu gozo escapa às vezes das categorias definidas.
Com relação à guerra e à paz, o conceito de prevenção – “pré-crime” como desenvolve um filme recente de político-ficção – ordena uma caça infinita. É aí que o universal, que é antes de tudo o enunciado de uma afirmação, derrapa por não mostrar mais seu limite. O eixo do Mal, caro aos estrategistas americanos, é a guerra das estrelas, o retorno ao sentimento oceânico que se escuta bem no ditado “todos os caminhos levam a Roma”.
Para o espírito forjado na tradição das Luzes, o universal é um progresso, pois sua natureza orienta a coletividade e não somente o indivíduo. Não se trata de modo algum de revisar essa aquisição da civilização, mas de indicar de que modo a mesma palavra pode se revirar em uma mística temível.
Bellum justum.
Ser um com o Todo, como diz Freud no Mal estar na cultura, é o abandono ao narcisismo ilimitado.
A criança, assim como a criança no adulto, retém das guerras púnicas a indomável figura do homem dos paquidermes e as sílabas que ecoam – Aníbal. Os povos guardam a marca dessas “grandes personalidades de condutor, homens de uma força de espírito aterradora”.
O renovado entusiasmo por Napoleão, hoje, na França, é da mesma ordem: com o tempo, a crítica, até mesmo a ambivalência, dão lugar à idealização terna.
As batalhas, os massacres e as conquistas são um revigorante afugentador de preocupações.
Tudo isto é muito bem descrito por Freud em seu impressionante Mal estar, mas observemos que, com relação a Gengis Khan, ele peca, no entanto, por etnocentrismo. No imenso continente eurasiano, o conquistador mongol é celebrado com um dos homens mais meritórios da história universal. Num meio de povos rudes, ele soube impor uma lei, uma disciplina, uma educação, um código civil e penal. Mostrou-se mesmo tolerante com as religiões dos povos conquistados, cristãos nestorianos, budistas chineses ou muçulmanos.
O unificador das estepes não é menos amável, mesmo com seus costumes, do que Bonaparte, de cuja minúscula bacia de toalete Freud se lembra com humor.
O sacrifício pulsional de cada sujeito instaura um direito superior. Esse longo processo deve ser temperado pela mitologia de nossos devaneios comuns e seus grandes guerreiros.
Quem não brincou de soldadinho quando criança? Em 1930, Freud, numa clarividência quase constrangida, se pergunta se a espécie humana conseguirá dominar a pulsão de agressão e de auto-aniquilação.
Quem decide a boa medida para o uso do canhão? Os mesmos que mostram os dentes no conflito israelo-palestino e pedem o boicote de produtos que se tornaram racistas por serem sionistas, se regalam no restaurante chinês.
Extraordinário relativismo do espírito quando ele faz ressoar as trombetas da justiça! O Tibet está bem longe e sua cultura já fagocitada, exilada na melhor das hipóteses. Entre dois rolinhos primavera, uma lágrima.
O cerne do Mal estar na cultura é ainda e sempre a sexualidade. Embora possa parecer curioso, é analiticamente difícil falar do universal sem evocar, de início, o significante fálico, o falo.*1
Que algo seja verdadeiro para todo homem, é a lógica fálica que nos ensina: por quê?
Para além de seu simbolismo bem conhecido de etnólogos e antropólogos, o falo é para Freud um operador que junta com uma mão e separa com a outra; reunião do desenvolvimento libidinal em uma aventura em que a inveja do pênis domina quer se seja menina ou menino, dissimetria, no entanto, das circunstâncias do desejo e do gozo.
Lacan, em seu célebre artigo “A significação do falo”, estende o que está em jogo nesse conceito ao indicar que, presente por toda parte, mas velado, o falo é a condição sine qua non de qualquer cadeia significante, de qualquer troca verdadeira, de qualquer palavra plena.
O ponto umbilical da função fálica é sua relação com a questão do pai. A regra comum, o universal comum, o destino humano é para cada sujeito a aceitação de uma falta, de um limite, de um furo na onipotência fantasiada. O significante fálico sublima e subsume essa perda fundadora.
É verdade para cada um e cada uma, mas, como só a exceção funda a regra, Freud presentifica com o mito de Totem e tabu a existência do pai-gozo, chefe de horda despótico e concupiscente.
Mexer com o tema do universal leva a tocar na repartição dos gozos. O exemplo dos grandes ideais da Revolução francesa pode esclarecer a maneira pela qual a lógica política inclui um certo nível de renúncia pulsional.
Em um livro contestado em seu método, Le Roman familial de la Révolution française2,a historiadora americana Lynn Hunt se autoriza um volteio pelo imaginário fantasmático de um período no qual irmãos executaram realmente o pai.
A questão simbólica da decapitação do rei não é o desenvolvimento mais original, mesmo se as observações relativas às representações da República por alegorias femininas são muito interessantes. Anunciam-se, para quem queira lê-lo assim, os futuros direitos do corpo, tão manifestos hoje em dia, no espaço outrora sacralizado do corpo do Rei-pai.
É antes o destino reservado a Maria Antonieta que não deixa de surpreender.
Nos pensamentos de cada escolar, Maria Antonieta ocupa um lugar nunca desmentido, o da mulher detestável.
Lynn Hunt relaciona a abundante literatura pornográfica que usa a mulher do rei como sujeito durante o fim do Antigo Regime e a Revolução. O Tribunal revolucionário não lhe poupou nada, até mesmo o crime mais vil, o incesto. A acusação foi sustentada por Hébert, o redator do Père Duchesne, e retomada pelos jornais, inclusive gazetas jacobinas, sem a sombra de uma interrogação.
Os panfletos e ensaios enfeitados com gravuras obscenas pululam a partir de 1789, declinando lubricidade e perversões. Essa dimensão de ódio contra a Estrangeira é bem conhecida, mas não seu caráter de aviltamento sexual. É mérito do livro mostrar toda sua amplidão.
A questão que o livro deixa adivinhar se impõe: será que liberdade, igualdade, fraternidade são convenientes para qualquer sujeito da República, sem exceção?
A igualdade das mulheres quanto à propriedade privada trouxe imediatamente alguns problemas. A liberdade não iria ser entendida como um afrouxamento do modelo familiar?
Segundo a historiadora americana, os universais do discurso revolucionário não previam nenhuma singularidade feminina além da materna. Foi provavelmente por isso que as dirigentes dos clubes de mulheres foram tratadas como Maria Antonieta, como Olympe de Gouges, guilhotinada como exemplo de “ser misto”, que subverte a ordem da natureza. Livre em sua fala, a mulher apareceu ébria de gozo: é um dos paradoxos de uma revolução tipicamente fraterna. Não se podia imaginar a mulher toda no processo revolucionário sem lhe atribuir as qualidades de um gozo desenfreado.
Estamos diante não somente de um atraso das consciências, uma simples questão de preconceitos, mas diante de uma verdadeira dificuldade lógica.
Do lado homem, ou cidadão, a exceção foi decapitada. Do lado mulher, ou cidadã, o sensual aparece em toda sua crueza, monstruoso, biface, trangressivo, como se ela fosse a encarnação da escolha forçada entre direito individual aos bens materiais, à propriedade, verdadeiro motor da Revolução, e liberdade da vida sexual.
No Mal estar na cultura, Freud fala longamente do trabalho da culpa após o assassinato do pai e o recalque sexual. Aqui se deve, contra a evidência, por na conta de um certo tratamento do universal, não religioso, mas que se soma à famosa moral civilizada. O retorno do recalcado foi maciço em nossa modernidade. O combate das mulheres foi acompanhado pela liberação de um gêmeo incômodo, o corpo. É ele que tem direitos a partir de agora, é ele que a partir de agora rejeita os limites da sexuação, da procriação, da presença da morte na vida.
Os homens nascem e se mantêm livres e iguais em direito…
Em sua aparente simplicidade, essa fórmula, freqüentemente remanejada, vem se chocar com o significante da diferença dos sexos.
O especialista em Aristóteles ou na lógica matemática recusará a intrusão de um objeto heterogêneo ao campo estudado. Um dos exemplos princeps de Aristóteles pode facilmente demonstrar a ironia do inconsciente.
A universal afirmativa, nos diz Aristóteles, é “todo homem é branco”, a universal negativa, “nenhum homem é branco”, a particular positiva, “algum homem é branco” e a particular negativa – que vai interessar particularmente a Lacan -, “algum homem não é branco”3.
Nada mais simples que o branco… e o preto. Mas aí se esquece que, para o inconsciente, dizer “todo homem é branco” já é privilegiar um traço distintivo. Todos os homens não estão em “os homens nascem livres e iguais”. Quid do escravo? Será preciso que ele espere ainda um pouco.
Na bela obra dialogada com o pintor Pierre Soulages, Le rythme et la Lumière, Henri Meschonnic relata o famoso erro de tradução que se segue. O Cântico dos cânticos faz dizer à Sulamita-Shoulamit: “negra eu sou bela de ver”.
Um mas aparece na Vulgata: “nigra sum sed formosa”, retomado na versão King James: “I am black but beautiful” e em Lutero: “Ich bin braun aber gar lieblisch”. A Bíblia de Jerusalém vai mais fundo: “eu sou negra e, no entanto, bela”, assim como a tradução ecumênica: “sou negra, eu, mas bonita”.
A tradução de Meschonnic, que apresentamos em primeiro lugar4, é a única que restitui o “e” do texto original, presente também na Septante.
Como precisa o poeta-tradutor, não se tratava da questão de uma oposição cultural comum, e mesmo Chouraqui evita a dificuldade propondo: “Eu, negra, harmoniosa”.
É preciso poder ouvir uma dimensão Outra: ““negra eu sou e bela de ver” [ele] diz uma unidade da beleza e do negro, seja qual for o sentido que se dá a negro”.
O inconsciente dos tradutores sucessivos impõe uma lógica das classes ali onde se escrevia uma singularidade.
O leitor lacaniano se irritará por não nos apoiarmos de saída nos avanços que Lacan trouxe nos seminários Sobre um discurso que não seria do semblant e Mais ainda. No que se convencionou chamar de matemas da sexuação, Lacan inventa uma escrita lógica que promove a função do “não todo”. Tudo não é totalizável, a identificação não é a unificação, o universal não engloba a singularidade, a clínica analítica não é uma nosografia acabada, uma mulher não está toda inteira no gozo fálico, etc.
A necessidade de reduzir uma visão totalizante do universal passa, para Lacan, pela clínica, mas também a teoria de dois gozos heterogêneos, um masculino limitado pelo falo, o outro feminino aberto para o Outro.
Será que essa hipótese, de uma audácia inacreditável na história do pensamento, consegue facilmente se confirmar nas modificações da cultura e dos costumes?
A difusão das idéias freudianas não produziu uma nova conjugalidade, uma singularidade desalienante, mas, muito mais, uma clivagem facilmente constatável.
De um lado, o casal continua sendo o terreno privilegiado das paixões clássicas, reivindicação e ciúme. Do outro lado, aparecem condutas “modernas”, vagabundagem sexual, passagem ao ato homossexual, promoção da bissexualidade, sexualidade adictiva e circuito por outras adicções.
A clivagem prolifera ali onde se almejava uma Outra luz.
Será a equivocidade do termo “gozo suplementar”? Será antes o fato de que ao amor pelo universal dificilmente um significante novo faz obstáculo?
Desculpamo-nos por tomar um exemplo que arrisca ser tomado como particularidade. Os acontecimentos no Oriente Médio fazem esquecer algumas lições sobre o tormento do judaísmo diante da questão do universal.
O povo de Israel não é apenas aquele que se tomou pelo filho preferido de Deus, como diz Freud, é também aquele que muitas vezes tentou fazer aceitar uma singularidade no campo do Outro. A Histoire générale du Bund, de Henri Minczeles5, conta uma página rapidamente esquecida por nossos contemporâneos. No fim do século XIX, na Rússia, na Polônia, na Lituânia…, alunos talmudistas saem das escolas rabínicas para se juntarem a um movimento de inspiração social-democrata, leigo e iídichista.
O primeiro grupo se formou em Vilna-Vilnius, em 1870, e esses revolucionários são, em primeiro lugar, apaixonados pela língua; o Comitê do jargão, ou seja, do iídiche, é fundado na mesma cidade em 1895. As condições sociais, a ideologia marxista, o desejo de se integrar sem se assimilar, reuniram milhares de judeus em uma União geral dos operários judeus, o Bund.
Anti-sionista, o Bund vai formar com confiança uma seção autônoma no seio do Partido operário social-democrata da Rússia. A revolução estava em marcha e os ideais mais nobres desvelam rapidamente sua ligação narcísica, seu apego mórbido ao Um, mesmo que aparentemente não religioso.
Em 1903, Lênin publica um artigo assassino denunciando a posição original do Bund: “Visto que é assim que se apresenta a questão judaica, assimilação ou particularismo, devemos sustentar todos aqueles que contribuem para eliminar o particularismo judeu.” Leon Trotski também rejeitou a idéia de qualquer estatuto exogâmico para o Bund.
Nenhuma outra exceção além dos universais da revolução!
Os judeus do Bund tentaram inventar uma palavra, um neologismo para melhor descrever sua dificuldade e continuar a ex-sistir.
A equação desses judeus, cuja lembrança se apaga, se depara com uma incógnita, a singularidade. Eles querem conservar a trama de uma cultura, mas sem nacionalismo; queriam fazer viver sua língua, um jargão, o iídiche, sua poesia, seu teatro; eles desejavam ardentemente participar do Outro, ou seja, de um século que basculava sob seus olhos, aceitando partilhar ilusões retrospectivamente fáceis de criticar.
Será preciso concluir que um traço de singularidade é uma utopia? A posição do Bund foi aniquilada por duas forças mais realistas, marxismo de um lado, sionismo de outro.
Ela era, no entanto, portadora de uma aposta ética – prestar homenagem à língua dos mestres, à filosofia alemã, à literatura russa – preservando ao mesmo tempo um traço de humor, de derrisão, de crítica. O impossível dessa divisão deveria interrogar o psicanalista, qualquer que seja sua origem identitária. Ela talvez o deixe pensativo, pois fabricar cordeiros é facilitar o trabalho dos lobos. E dizer que há quem considere teu Mal estar pessimista, caro Sigmund!
Se a singularidade tem dificuldade para se escrever, é preciso que estejamos atentos à maneira pela qual alguns representantes do universal, concebidos como utilitários, põem o sujeito a seu serviço, mais do que lhe servem.
Não falamos aqui das ideologias totalitárias, pois sua perversidade é manifesta.
No suplemento de Economia de um grande vespertino, o diretor de estudos econômicos de um banco que o contribuinte teve que socorrer recentemente, autorizava-se uma conclusão que faz arrepiar: “Uma guerra ganha diminuiria o prêmio de risco e, portanto, os juros, e faria subir as Bolsas. Ela introduziria também a baixa do preço do petróleo, movimento já engatilhado, que provocaria, se se confirmasse, um choque de oferta muito favorável à retomada.”
Parece sonho. Bellum justum, eu lhes digo. As relações entre as representações do falo e o dinheiro foram freqüentemente detalhadas na clínica freudiana.
Para o sujeito-cidadão-contribuinte, a moeda é um objeto universal, uma referência necessária e indiscutível. A criancinha aprende muito rápido que uma moeda recompensa o bom dever. A moeda partilha com o conceito do falo um poder simbólico6.
Apenas o soberano cunhava moeda, depois os Estados-nações regulam as trocas dentro de suas fronteiras.
A moeda, até o euro, é portadora de um certo número de traços, figura da Nação, evocação de um momento histórico, lembrança de um grande personagem, artista, filósofo, cientista…
Ela trazia também um extrato do código penal, as assinaturas dos responsáveis pela emissão e a menção do país emissor, por exemplo, República francesa. Qualquer que seja o indivíduo, ele pensa suas necessidades e paga suas dívidas na moeda que se impõe a ele. A idéia de uma moeda universal, acima dos particularismos nacionais, germinou muito cedo no espírito dos monarcas europeus.
Essa ambição consegue se realizar no velho continente, mas estamos pouco atentos aos efeitos concomitantes da instalação de um mercado que desloca o limite disso que doravante é necessário entender por moeda.
Moedas, títulos, notas, cheques, cartões de crédito, a moeda perde sua materialidade; só os analistas exigem consistência a seus pacientes intrigados por esse lado antiquado da troca.
Essa mudança molecular, quase invisível, tem repercussões inesperadas.
As trocas monetárias tornam-se, para muitos operadores, não virtuais, mas suportadas pela fluidez eletrônica; certos economistas, como o prêmio Nobel Friedrich von Hayek7, propuseram a teoria das moedas privadas, antecipando o desaparecimento de qualquer referência a uma moeda que transcenda a simples noção de mercadoria. O símbolo seria restituído a seu estatuto de objeto. É fácil adivinhar quais os grandes grupos privados que se beneficiariam do jogo imaginado por esse anarco-capitalista americano.
A dessacralização de um símbolo universal não visa de modo algum a inventar uma singularidade refrescante. Trata-se, bem ao contrário, de fazer de uma particularidade forte um cavalo de Tróia.
Os paraísos fiscais não são locais de piratas, mas o quarto dos fundos dos corsários das finanças. Ou seja, eles operam um serviço comandado. Bancos em regime jurídico vantajoso abrem suas portas na Internet. Quem impedirá amanhã que um grande servidor informático, em estado de quase monopólio, crie sua moeda? Político-ficção?
Tranqüilizemo-nos, o paciente, nostálgico como o analista, ainda encontra um pagamento made in Vienna.
As guerras e revoluções, e mais simplesmente as grandes mutações sociais, produzem o que se convencionou chamar de identificação de massa. Somente um paizinho dos povos pode galvanizar um exército para que ele não ceda nem mais um palmo. E é Estalingrado. Julgamos no a posteriori do escândalo ou do heroísmo em ação na hipnose coletiva.
Cada momento maior da história de um país manipula a histeria epidêmica e, como se estivesse destacada da multidão, a memória de alguns.
Freud não deixou receita para se manter afastado dos fenômenos de identificação mais brutais e mais miméticos.
Temos insistido na maneira pela qual uma visada com pretensão universal cria mecanicamente seu refugo. Os períodos caóticos deixam pouco espaço ao traço de singularidade, pois sua lógica, que não é binária, desconcerta, irrita, ofende.
Se vocês não são a favor da guerra, vocês são contra a Nação. Se vocês não são a favor do Partido, vocês são contra a marcha da história. Se vocês não são de esquerda, vocês são de direita.
Lacan almejava fazer do amor ao pai uma questão possível de trabalhar, dessacralizada, analisável como um sintoma. As formas atuais do religioso falam da urgência da tarefa, mas o cinismo dos modelos econômicos em voga joga lenha na fogueira. Por que é que o “jovem de subúrbio” recusaria o dinheiro sujo se o próprio Estado organiza um caixa dois desconectado de qualquer moral pública?
Dupla face dos ideais não mais republicanos, mas democráticos; cada um, se tem poder para isso, pode a partir de agora influir sobre a moeda e, como no cassino, multiplicar sua aposta. Não precisa mais ler teses de economia para saber disso. Para um jovem desgarrado, o apelo ao pai rigoroso evita a canalhice. Ele não vacina contra as loucuras identitárias.
A leitura dos livros escritos por juízes sobre a delinqüência financeira dá vertigem. Querem que fechemos um olho ou que fechemos os dois?
A doutrina dos países mais ricos do planeta pode ser declinada em duas vertentes. Regra universal: na economia de mercado, é normal que empresas morram e que outras enriqueçam; regra particular: alguns são too big to fall – grandes demais para ir à falência.
Aí, ainda, é a noção de clivagem que poderia nos ajudar a ler melhor entre as linhas.
O marquês de Sade publica, em 1795, um vigoroso ataque aos princípios da Revolução. A historiadora Lynn Hunt consagra um capítulo à “política familiar de Sade” decifrada n’A Filosofia na Alcova.
A noção de fraternidade, levada a seu extremo, faz Sade vislumbrar, para além da comunidade das mulheres e da celebração da homossexualidade, o próprio desaparecimento das diferenças sexuais. Essa revolução da identidade “de gênero”, como devemos dizer agora, teve que esperar os progressos médicos para conseguir ultrapassar seu estatuto fantasmático.
“Ao promover esses comportamentos, Sade demonstra, de fato, as contradições entre o ideal de fraternidade, levado a seu extremo lógico, e a idéia de sociedade […] não há mais então conceito de filiação legítima, de relações de parentesco claramente definidas, de casamento enquanto instituição social, nem mesmo diferenças entre homens e mulheres8.”
Para a historiadora americana, Sade dá corpo à possibilidade de uma ordem social desprovida de todos os sentimentos sociais, espantoso desfecho para os ideais da Revolução.
Os irmãos, contrariamente à previsão de Freud, não têm nenhum sentimento de culpa em sua sociedade sem pai.
Essa hipótese tem o interesse de interrogar a matriz da exceção francesa em sua pretensão a encarnar o universal como tal.
A Declaração universal dos direitos do homem, proclamada pela Assembléia geral das Nações Unidas em 10 de dezembro de 1948, retoma, é verdade, a Declaração dos direitos do homem e do cidadão, de 26 de agosto de 1789, dando a ela um alcance de ideal para o mundo inteiro e para a eternidade: “A Assembléia geral proclama a presente Declaração universal dos direitos do homem como o ideal comum a ser atingido por todos os povos e todas as nações…”.
Estamos tão habituados a essa identificação coletiva, que esquecemos dela em nossos julgamentos peremptórios sobre os conflitos que comentamos, mas o escolar francês assimila qualquer história à história única de seu país e qualquer momento ao momento único fundador dos grandes princípios. A exceção não é mais o pai do gozo ou o rei, mas o próprio acontecimento, modelo de qualquer acontecimento futuro.
O multiculturalismo americano é um absurdo para o estudante da École normale supérieure, o federalismo de alguns países da Europa, um erro ou um atraso. Será que somos sem culpa e convencidos de uma singular superioridade?
Atribuímos mais facilmente esse traço ao amigo americano, mas seu hegemonismo, econômico e militar, encobre a beleza de nossa exceção.
Para o inconsciente, a República fundada pela Revolução francesa é um mito; Para o historiador François Furet, tudo o que se seguiu na história moderna, como a revolução russa, é a repetição dessa utopia provisória e motivo para lendas. O Terror seguramente não está sem motivo na assunção desse símbolo tornado carne.
A fascinação do olhar e da voz foi freqüentemente evocada para explicar a conjunção de um personagem com o significante do ideal.
Nesse momento privilegiado, a hipnose atinge seu máximo e os livros de história guardam por muito tempo a marca de uma identificação transgeracional.
François Furet9 explicita muito bem o trajeto do olhar, que faz de Robespierre, “homem sem interesse”, a nova vontade geral, o novo soberano. O povo recorta a identificação de massa em uma série de seções revolucionárias e outros clubes, série reduzida, ela própria, a um traço distintivo, a Convenção, depois o Comitê de salvação pública.
Robespierre, homem sem gravidade, e não Mirabeau, “tempestade e vulcão”, segue e encarna a junção dessas identificações, portador do objeto que o olhar da Revolução escolheu para si como estando conforme a seu ideal. Transparência do universal.
A confusão entre particularidade e singularidade, que evocamos a propósito do Bund, confusão sempre repetida pelos pensadores marxistas, fez do espírito francês um defensor apaixonado da unidade contra qualquer federalismo.
Não se trata aqui de voltar à aposta necessária de ultrapassar o narcisismo das pequenas diferenças. O recuo pusilânime ao nível regional ou local tem muito cheiro de direito do sangue: o primeiro turno da eleição presidencial deveria nos vacinar contra um raciocínio vicioso, mas contagioso: “prefiro minha filha a sua prima, a prima à minha vizinha, a vizinha”, etc.
O que aqui faz questão é o mito de um universal imortal, infinito e redondo como a famosa síndrome de Cottard das melancolias cronificadas. Para esse universal seria preciso encontrar um nome, um neologismo. Em seu tratado sobre as Categorias, Aristóteles diz: “Às vezes talvez seja necessário forjar uma palavra, se não existe palavra disponível que forneça uma resposta apropriada à questão do relativo, por exemplo: se para ‘timão’ damos ‘de barco’, a resposta que damos não será apropriada; com efeito, não é enquanto ele é barco que o timão é dito dele, pois existem barcos que não têm timão… Mas talvez a resposta fosse mais apropriada se déssemos mais ou menos a seguinte: que o timão é timão de um timoneado, ou algo assim – pois não existe nome disponível10.”
Proponhamos o universal de uma univers-ela-toda11. Fecundando a lógica de Aristóteles, Lacan pôde escrever a singularidade de um “não todo”, mas, na falta de uma invenção significante, essa singularidade se bate ordinariamente contra a parede do universal ou dá à luz uma desagradável clivagem. A universal-toda não é a universalidade. A singularidade não pode se inventar e viver sem as palavras.
Talvez seja nesse lugar que o paradigma do gozo feminino, que não se pode dizer, faça enigma demais.
Os judeus do Bund inventaram um neologismo em iídiche, Doykayt – ou Do-i-kayt -, que significa “estar aí, ficar no lugar, lutar no lugar”. Eles não eram nem estrangeiros, nem exilados perpétuos, nem mendigos.
No primeiro número do periódico Der Bund, publicado em 1904, a profissão de fé de uma singularidade encastoada no universal se dizia assim: “Nós não somos estrangeiros nem convidados, mesmo que o governo nos considere como tal… A riqueza deste país está impregnada com nosso sangue. Lutamos pelo que nos pertence, pela obtenção de nossos direitos humanos, cívicos e políticos. Esse país é o nosso. Vivemos aqui há centenas de anos. Estamos ligados a ele por milhares de laços. Ele nos pertence assim como pertence aos poloneses, aos lituanos e a todos os povos que aqui habitam.”
Ficou difícil fazer uma criança admitir que um traço de identidade não é necessariamente religioso.
O neologismo forjado pelo Bund – a Doykayt – levou longe o militante das Luzes.
Apesar do anti-semitismo assumido da República dos coronéis, o Bund polonês recusou energicamente a posição dos sionistas.
Ele não se unirá, em 1929, aos protestos indignados da comunidade judaica quando dos ataques árabes contra as colônias judias na Palestina, designando como responsáveis os britânicos e os sionistas da diáspora. O militante das Luzes não se resignou a olhar o anti-semitismo de um ponto de vista especificamente judeu. Cada leitor da obra de Henri Minczeles fundará seu julgamento.
A esperança de uma singularidade é apenas ingenuidade?
As linhas de força que Sigmund Freud desdobra na Psicologia das massas e no Mal estar na culturainduzem uma certa perplexidade.
Em Praga, Varsóvia, mas também em Veneza e muitas outras cidades, o viajante apressado admira o gueto-museu sem se dar conta de que um traço realmente desapareceu de uma Europa apaixonada pela universalidade.
1.Em Lacan lecteur d’Aristote (Ed. da Association freudienne), Pierre Christophe Cathelineau mostra de modo excelente como se estabelece a conexão entre função fálica e idéia de universalidade (cf. cap. 11 e 12).
3.Ver ainda, a esse respeito, o livro de P.-C. Cathelineau, cap. 11, e também Aristóteles, Categories, apresentação, tradução e comentários de Fredérique Ildefonse e Jean Lallot, Seuil, 2002.
4.“Le chant des chants”. in Les Cinq Rouleaux, Gallimard, 1970.
5.H. Minczeles, Histoire générale du Bund, Denoël.
6.9 M. Aglietta e A. Orlean. La violence de la monnaie, PUF, 1982, e também Cyril Demaria, Monnaies et finances dans les ensembles géopolitiques, DEA de Geopolítica, 1996-1997.
8.Le Roman familial de la Révolution française. cap. 5.
9.Ver particularmente suas últimas obras, Le Passé d’une illusion e Fascisme et communisme.
10.Cap. VII, trad. citada.
11.N.T. – Em francês, univers-elle-toute, desdobramento de universelle-toute, toda-universal.
*Les Croisés de l’universel – in La Célibataire – volume 7 – Printemps 2003
Tradução: Sergio Rezende