Antonio Carlos Rocha
Registra-se, portanto, aí, um percurso, o tempo de um trabalho. Pela palavra de alguns, daqueles que se decidiram a atravessá-lo e para que fique como memória, que é sempre reconstruída. O que aí aparece é aquilo que se pôde precipitar como resto, como produto do ato de alguns e de uma ação coletiva. Pois não se trata de descrever, de relatar. Sabemos muito bem que há sempre uma antinomia quando o sujeito é chamado a falar, depois, daquilo que justamente estava absolutamente implicado na origem de seu ato. Há aí uma impossibilidade. Há um real em jogo. Pois, afetado pelo que transferiu no processo, na verdade, é ele próprio, em sua posição de sujeito que retorna como resultado da operação. Essa temporalidade outra, paradoxal impede qualquer transparência retroativa, exclui necessariamente a reminiscência, que visa à cena, sempre de alguma forma primitiva e, portanto, mais ou menos obscena. Do que se trata, sem dúvida, aqui é de escritura e que só se lavra para dar fé pública e pela responsabilidade e autoria de cada um. Ou seja, a tentativa de rememoração se inclui, ela também, como ato de sujeito, testemunho sobretudo do que aí se perdeu.
Ora, todo testemunho é endereçado ao Outro, como depositário do saber, que sempre escapa ao sujeito e do qual outros sujeitos serão tributários. É por aí que se inscreve a transmissão e a instituição analítica é um dos avatares dessa passagem pelo Outro, dessa passagem necessária pela dimensão do público. É só por isso que se justifica a tentativa de escrever sobre o que aconteceu em nosso caminho. O modo como cada sujeito pôde assumir sua responsabilidade nesse processo de construção institucional, o modo como foi atravessado pelo que aí adveio, poderá certamente ser um instrumento de alguma valia como material para aquilo que se chamou uma clínica da transmissão. Conhecemos, todos, as vicissitudes por que passa a instituição analítica, em sua função impossível de instituir o ensino, a transmissão daquilo que, por definição, deve destituir. Uma clínica que se possa fazer de seus dispositivos, portanto, não pode prescindir dos próprios pressupostos que a sustentam como instituição, ou seja, tem que ser analítica. Ela não pode opor o que pareça patológico ao que pudesse ser da ordem da normalidade, da ortodoxia doutrinária, nem visa ela ao estabelecimento de um statu quo ante. Ao contrário deve visar a fazer valer o equivoco, o desvio, para que se possa avançar no entendimento e conseqüentemente na própria possibilidade da transmissão. E uma clínica se faz sempre a cada vez, mesmo que, é claro, ela se faça – e só pode se fazer aliás assim – a partir do que está estabelecido pela experiência institucional anterior dos que nos antecederam e garantiram o caminho que nos fez chegar até aqui. Mas passar por aí, estar submetido ao Outro a esse saber com que nos constituímos, não diminui em nada nossa responsabilidade no aqui e agora. Ao contrário, pois é a castração simbólica o que funda a garantia do Outro. Em outras palavras, é através de sujeitos que se decidam a sustentá-lo que este poderá operar, se exercer. A instituição analítica só pode existir e funcionar, com seus dispositivos estruturais, estabelecidos por Freud e sobretudo Lacan, se alguns sujeitos se dispuserem a se deixar atravessar, a pagar o preço de fazê-la valer a cada vez. A cada vez e nos diversos momentos e contextos em que ela emerge.
É por isso que precisamos testemunhar. Para dar conta dos efeitos que ela sofre ao enfrentar, em nossa latitude, diferentes matizes e dominâncias do discurso social e os novos desafios postos pelas condições culturais específicas que são as nossas. É para isso o registro de nossa experiência. Porque é realmente disso que se trata, de uma experiência. Para fazer uma instituição analítica em nosso contexto não bastam, como propôs certa vez nosso querido amigo Marcel Czermak, um local, uma secretária e um tesoureiro. Sua afirmação que provocou um certo espanto precisou ser esclarecida. É que para se ensinar a psicanálise, como aliás qualquer outra coisa – dizia ele – é preciso antes de mais nada uma instituição. Nascemos e morremos dentro da instituição, acrescentou. Mas isso, que é em princípio tão simples e tão óbvio, não é necessariamente claro para todo sujeito nos variados quadrantes das diversificações da cultura. Na verdade, isso só é assim, tão evidente, ali onde o institucional e o domínio público já estão de tal forma estruturados que aparecem, para os sujeitos, como uma simples e inquestionável conseqüência da lei que os sustenta enquanto sujeitos. Nesse caso, de fato basta que alguns analistas se reunam e contratem uma secretária. Vale a boutade, porque efetivamente a dificuldade só vai começar aí, depois, com a questão analítica propriamente dita, a questão da transmissão. Para nós o caminho é mais longo, tem sido mais longo. Porque a instituição, o institucional, o domínio público aqui já são, em si mesmos, uma questão para os sujeitos – sempre de olho no Outro – e que se tornam, por isso mesmo, muito mais refratários à formalização dos procedimentos, que opera inevitavelmente no sentido oposto ao princípio do prazer e que parecem sempre muito zelosos de uma pretendida autonomia, de uma originalidade que esse Outro viria ameaçar. O que se coloca para nós portanto aqui antes mesmo da enorme e difícil questão de transmitir institucionalmente a psicanálise – que é tarefa de todos -, é tentar transmitir analiticamente a instituição. É claro que essas duas coisas não se opõem nem se excluem. Na verdade são dois momentos de um mesmo processo. Mas há nuances importantes, que determinam dificuldades diferentes e para as quais é preciso encontrar respostas outras. Nossa aposta foi portanto a de produzir um material em que tudo isso possa aparecer em seus efeitos.
Mas é preciso dizer que não nos moveu apenas o desejo de contribuir para um trabalho teórico, para um estudo de caso na clínica da transmissão. Há aqui muito mais do que isso, há um endereçamento e, que, aliás, é até o que, no après-coup, pode dar validade a esses depoimentos como matéria para reflexão. Há um destinatário, aquele com quem possamos contar para receber nossa própria mensagem invertida. Se por um ato de fundação, uma instituição analítica se autoriza enquanto tal, isso não deve fazer com que ela prescinda da autorização de mais alguns outros. Por isso e para isso achamos que devíamos dizer do que nos aconteceu, nesse momento mesmo em que ainda está acontecendo. Portanto antes que tudo caia no esquecimento. Pois senão acontecerá aquilo que Lacan(1) nos diz sobre as conquistas subjetivas dos homens: “… a partir do momento em que eles as esquecem, elas não deixam de ser conquistas, mas aí são eles próprios que são conquistados pelos efeitos de suas conquistas”. Aqueles que se decidiram a tomar a palavra, nos textos que aqui foram lidos, ao tentarem reconstituir, com os significantes que puderam se decantar, os passos e os impasses de um certo percurso, botam a instituição na rua e se tornam, por isso mesmo, por testemunharem, como que os passadores através dos quais o Tempo Freudiano se oferece assim, em passe, ao júri da cidade.
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*. Artigo de encerramento do Boletim Fundação, publicação que reúne os documentos de fundação do Tempo Freudiano, e os depoimentos e testemunhos dos membros durante os fóruns de avaliação de 1999 e 2000.
1. LACAN, J. Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise.