Stéphane Thibierge
As observações que se seguem concernem ao lugar que podemos atribuir na clínica à problemática do transexualismo, a partir da lógica que dela emana. Elas se apóiam em várias indicações dadas a esse respeito pelo Dr. Marcel Czermak.
Podemos falar do “sintoma” transexual num sentido bastante geral, principalmente para sublinhar em que a demanda dos transexuais faz aparecer, de modo solidário, uma vertente individual e uma vertente social do sintoma.1 Todavia, enquanto entidade clínica no sentido estrito, lidamos realmente aqui com uma síndrome, isto é, com uma série de traços logicamente articuláveis que tomam esse valor. Ora, é possível mostrar de que maneira o transexualismo, longe de ser uma entidade apenas local na patologia, pode ser referido a coordenadas que conhecemos, porque já foram determinadas, no essencial, pela observação psiquiátrica clássica.
O transexualismo pode, com efeito, ser aproximado de uma outra síndrome, igualmente rara e aparentemente muito distante, evidenciada em 1927, por Courbon e Fail, sob o nome de síndrome de ilusão de Frégoli. Essa aproximação poderá parecer espantosa à primeira vista, mas é precisamente articulável: ao exame da estrutura e dos elementos dessas duas síndromes, ela se fundamenta na clínica e na doutrina. Contudo, pelo que conhecemos, essa observação nunca foi feita; é por isso que a desenvolvemos aqui.
A síndrome de ilusão de Frégoli se apresenta como um distúrbio do reconhecimento das pessoas, no sentido de que o sujeito não identifica mais os outros, os semelhantes, por seu nome próprio – sem que se trate de um déficit da memória ou de um falso reconhecimento no sentido clássico. Esses nomes próprios, ele vai substituí-los, sempre da mesma maneira, por um mesmo nome. Este nome é o de um perseguidor, a quem o sujeito atribui os fenômenos de despedaçamento e de xenopatia de que seu corpo é objeto. No caso princeps de Courbon e Fail, a doente indicava que esse perseguidor fazia como o ator italiano Frégoli, famoso no começo do século: ele era capaz de tomar a aparência de qualquer um, substituindo os outros e agindo assim sobre ela com aparências emprestadas.2
Assim, no lugar e na função da imagem, da aparência ou da roupa dos outros que ele encontra, o sujeito é levado a identificar sempre o mesmo. O mesmo o quê? Será que devemos dizer: a mesma pessoa, o mesmo nome, a mesma imagem, a mesma coisa? Aqui somos levados, imediatamente, para um ponto em que esses termos vêem seu valor e sua condição ordinários profundamente remanejados. Digamos, então, simplesmente: o mesmo X, recorrente sob a diversidade das aparências, que o sujeito vai designar por um único e mesmo nome próprio. É assim que, no caso princeps, a doente “reconhece” quase sempre a atriz Robine, que viu atuar muitas vezes, sob a imagem dos outros que encontra e que agem sobre ela, enviam-lhe influxos etc.
Acrescentemos que a imagem de seu próprio corpo, pelo modo como surge nas falas da doente, fica igualmente modificada por esse mesmo X e em parte identificada com ele: os fenômenos sensoriais que afetam esse corpo são correlatos a certas modificações no corpo da atriz, em particular em seus olhos e em suas pálpebras. Em outras palavras, o nome Robine designa algo cujos efeitos determinam um corpo específico, parcialmente distribuído entre o da doente e o de Robine.
Estamos diante, portanto, de um quadro clínico no qual a imagem – a de outrem, a de Robine, a do sujeito – se acha parcial ou totalmente desligada do nome próprio, para ser referida a um mesmo nome, em todos os casos.
Esse nome não é mais, em função disso, um nome próprio, mas é rebaixado a um estatuto de nome comum.
Quanto à imagem, ela remete, em tal situação, a algo completamente diferente daquilo que a princípio caracteriza sua função e sua noção – que tomamos em suas acepções geralmente aceitas, sem entrar aqui na questão do estatuto da imagem como tal, que não tem, como mostram precisamente esses fatos clínicos, nenhum caráter de evidência. Digamos então, apenas, que aqui ela não está determinada comounidade formal de um corpo, mas desarticulada entre vários suportes; que ela não admite, por conseguinte, a dimensão do semblant, isto é, a diferenciação de si nos limites dessa unidade formal, mas remete sempre, ao contrário, ao princípio real dos fenômenos que a doente experimenta: xenopatia, despedaçamento.
Não é, portanto, à imagem como tal que esse nome, que designa qualquer imagem para a doente, remete, mas antes a esse X com modalidades reais, atuantes, dispersas através dos “outros” que ela encontra e em seu próprio corpo.
Transportemo-nos agora da síndrome de ilusão de Frégoli àquilo que o transexualismo presentifica.
Como vimos, o sujeito transexual quer ser nomeado mulher – limitamo-nos aqui ao caso mais corrente, de sujeitos masculinos, mas as coisas não são sensivelmente diferentes, do ponto de vista de sua lógica, na outra direção.
Se ele demanda que se modifique seu registro civil e o nome que carrega – nome de família ou apenas prenome, de qualquer modo é o nome em seu princípio, o patronímico, que é visado –, é em referência ao que ele designa pelo nome d’A mulher, que remete a algo da ordem de uma identidade absoluta, totalmente diferente daquela, degradada, que é presentificada pelas mulheres, que para ele são apenassemblants de mulher.
Ou seja, mesmo reivindicando a imagem feminina, o que ele visa não é da ordem da imagem propriamente dita: é aquilo com o que identifica essa imagem, e que evoca regularmente como o real de um gozo que ele invoca e às vezes experimenta, um gozo cutâneo do invólucro, da matriz, da completude – remetam-se aqui ao material clínico apresentado nesse volume.3
Ali onde entendemos: imagem, aparência, semblant, o transexual visa esse ser ao qual tenta juntar a imagem. Essa versão da imagem, exatamente como na síndrome de Frégoli, nos remete a outra coisa, diferente daquilo que a princípio entendemos nesse registro, pois também está identificada a um X cujas determinações reais ela mantém, paralelamente à desarticulação de sua consistência de imagem: na síndrome de Frégoli, o que advém nesse lugar é um corpo xenopático e despedaçado por causa do perseguidor, cujo nome único fica sendo a única ilhota identificável nessa desagregação do registro imaginário; na síndrome transexual, trata-se de um corpo igualmente despedaçado, muitas vezes xenopático, que encontra, no real do gozo do invólucro já evocado, o suporte de uma identificação invocada a esse gozo.
É esse suporte que o transexual invoca no nome d’A mulher: nome comum a que ele vem reduzir seu nome próprio, mas também substância real, por assim dizer, em cuja experiência se desfaz qualquer imagem como tal. É por isso que, como vimos, sua demanda não poderia ser apaziguada por aquilo que se imagina valer como retificação de seu corpo, “correspondendo” à imagem que ele tem desse corpo: essa imagem não é uma imagem. Em lugar de representar, como faz uma imagem, outra coisa, isto é, de ter um valor diferencial, de se inscrever numa escala de variações possíveis, ou ainda de não se completar em uma significação que a tornaria idêntica a si mesma, ela é tomada aqui num valor de identidade não diferencial, exatamente como na síndrome de ilusão de Frégoli. Mas isso equivale a dizer que ela se apóia numa outra ordem de realidade.
Lacan traz, para a imagem do corpo, tal como ela se constitui na dialética especular em relação à do semelhante, uma fórmula que se escreve: i(a). Sem explicitar aqui essa fórmula e para ficar só com o que interessa imediatamente à nossa questão, ela indica sobretudo que a imagem i se produz e se fundamenta pela colocação entre parênteses de algo, notado a, que é assim subtraído de seu campo, e que a psicanálise isolou sob o conceito de objeto. A beleza da imagem, isto é, da imagem do corpo em princípio, seu poder intrinsecamente cativante, e ao mesmo tempo sua variabilidade e sua diferenciação nos limites de uma forma, ela os obtém desse objeto com o qual se relaciona, metaforizando sua ausência.
Munidos dessa escrita lógica mínima, mas operatória, voltemos à síndrome de Frégoli e ao transexualismo.
Observamos aí uma partilha e uma economia do nome e da imagem comparáveis, suas respectivas funções remanejadas sob o efeito desse X identificado pelo sujeito.
Quanto ao nome, notemos que, nos dois casos, o nome próprio é rebaixado ao nível de um nome ao mesmo tempo comum e único. Na síndrome de Frégoli, é o nome do perseguidor, identificado através dos “outros” que o sujeito encontra e mesmo nos elementos disjuntos de seu próprio corpo. No transexualismo, é o nome d’A mulher que vem designar uma identidade diante da qual a do nome próprio se apaga e não se sustenta mais, pois deve ser modificada na direção comandada pela primeira.
O que o nome comum único nomeia, aquilo que comanda e antecede a função do nome próprio nas duas síndromes, tem a propriedade de retornar ao sujeito sob a forma de uma identidade real e unívoca, aquela de uma significação imposta. Esse X designa muito exatamente o que é notado a na fórmula da imagem i(a), ou seja, o objeto, na medida em que esse objeto, sempre o mesmo, na neurose, em princípio, nunca é identificado pelo sujeito. Mas aqui, nos dois casos, ele é identificado e constitui o pivô de uma sistematização articulada do delírio.
Ressaltemos essa diferença, no entanto, de que, no Frégoli, o sujeito deduz, pelas modificações em seu corpo, o nome único do objeto que as causa, ao passo que no transexualismo as coisas são em parte invertidas a esse respeito: o sujeito deduz, pelo nome único do objeto, que ele identifica (a mulher) e ao qual ele está identificado (como gozo do invólucro), as modificações que ele reclama em seu corpo, no sentido de sua identificação a esse objeto.
Assim, constatamos de que modo a redução do nome próprio a um estatuto de nome comum se duplica por uma redução do nome comum ao objeto, o nome perdendo, nesse remanejamento, o que está no fundamento de sua operação, a saber, a identificação também, mas na medida em que ela é, na ordem da linguagem, sempre diferencial. Um nome jamais identifica senão por diferença para com outros nomes. Ele não se junta ao real que nomeia – exceto eventualmente na psicose, como nas duas síndromes que nos retêm aqui. Trata-se mesmo de um de seus traços mais notáveis, do ponto de vista clínico, que o nome venha aqui se juntar ao objeto, identificando-o.
A demanda do transexual, de ser “nomeado mulher”, encontra nessa nomeação o último termo de sua significação, que é concluir e, se possível, fixar o desmoronamento de qualquer diferenciação identificatória, numa tentativa de realização do sujeito, a ser entendida literalmente como sua união completa com o objeto.
Esse remanejamento da função do nome, na síndrome de Frégoli e no transexualismo, coloca então em primeiro plano uma invalidação do registro do nome próprio. No Frégoli, a imagem não está mais articulada a ele, pois não é mais nomeada, seja qual for a forma que tome, senão com um único nome, diretamente relacionado ao objeto. No transexualismo, o nome próprio é igualmente jogado para fora do campo: ele não representa mais o sujeito, que tenta reparar essa carência situando exatamente seu ser no próprio lugar da nomeação, da potência nomeante, aqui confundida com a lei real – ou seja, aquela pronunciada pelos tribunais. O sujeito transexual identifica a nomeação a um objeto cujo nome se deduz do ser: esse objeto nomeante por excelência é o que ele chama de A mulher. E se sua demanda toma a forma de uma exigência, é porque ele espera da lei que ela simplesmente registre aquilo que esse objeto implica, na medida em que ele comanda o nome.4
Nos dois casos, mas de modo mais imediatamente sensível no transexualismo, é o patronímico, forma primordial do nome próprio, que é recusado, ou seja, perde sua função de nomeação. Ora, o patronímico, na medida em que é sem significação, é o que permite precisamente a um sujeito ser representado na ordem da linguagem, sendo de saída identificado a um lugar vazio, porém nomeado, ou seja, engajado na operação e na troca da fala. Esse lugar vazio, esse simples traço nominal recebido de seus pais, onde uma criança vem primeiramente ser representada, é a metáfora inicial que torna possíveis as que se seguirão, isto é, a fala do sujeito.
O transexualismo, bem como a síndrome de ilusão de Frégoli, ilustra de modo muito preciso os efeitos decorrentes, na psicose, do fracasso dessa primeira metáfora do sujeito, que o patronímico simboliza: o nome próprio é comandado nos dois casos por um nome único, que identifica o objeto, que se torna, em retorno, pivô ou princípio da nomeação: único Nome que subsiste.
Quanto à imagem, enfim: ela é posta em primeiro plano, de modo prevalente, nos dois casos, como forma persecutória na síndrome de Frégoli, como ideal de completude no transexualismo. Essas duas modalidades são bastante próximas, primeiro por serem ambas apreendidas aqui como modalidades do Um, depois porque é corrente, na clínica, ver se inverterem os valores do ideal e do persecutório.
Mas constatamos igualmente de que maneira a imagem com que lidamos aqui é desamarrada de sua consistência e de sua identidade de forma, para ser referida a determinações que são as do objeto, seguindo uma série que vai da conjunção unificante com o Um (o perseguidor na síndrome de Frégoli, “A mulher” no transexualismo) à disjunção desse Um num despedaçamento do corpo, cujas linhas de partição as falas desses pacientes nos permitem seguir, segundo uma topologia muito diferente daquela em que nos deslocamos ordinariamente.
Em outras palavras, se há mesmo uma prevalência da imagem, é através de modalidades em que esta não é identificável com uma forma determinada pela colocação entre parênteses do objeto, isto é, i(a). Trata-se mais de uma estrutura na qual, tendo o nome fracassado em vir no lugar de primeiro representante do sujeito – o que é propriamente a operação metafórica, que coloca os parênteses, permitindo que a imagem também se constitua como representação distinta do objeto –, a imagem vai ser de algum modo virada sobre sua vertente de objeto: seja conjugada a ele, o que se observa notadamente nos momentos de sistematização delirante, seja disjunta dele, no despedaçamento. Estaríamos, nesse sentido, fundamentados para escrevê-la não mais i(a), mas i & a, ou seja: i“conjunção e disjunção de” a.
Em uma ou outra dessas duas modalidades, é o objeto que comanda, no que essas duas síndromes nos presentificam, todas as determinações da imagem. Isso nos permite levantar a questão, em ambos os casos, de uma possível equivalência entre imagem e objeto, e de sua interversão recíproca: i<=>a. Acrescentemos que, no transexualismo, é a título do impossível que esse encostamento de i e de aimplica, ao mesmo tempo conjuntivo e disjuntivo, que se pode entender a demanda de ablação do pênis. Com efeito, é como puro objeto real, mas dessa vez como presença intolerável e dejeto na imagem, que os transexuais solicitam ser desembaraçados dele.
Concluindo: se retomarmos agora o conjunto dos elementos dessa estrutura, tal como a vemos dar conta, a uma só vez, no essencial, da síndrome de Frégoli e da síndrome transexual, constatamos de que maneira seus elementos, nome próprio, nome comum, imagem e objeto, perdem, no caso dos três primeiros, suas escalas de determinações próprias, em benefício de uma atração identificatória do objeto, num modo de unificação, o nome e a imagem fracassando em prevenir essa unificação, ou seja, em introduzir uma função de diferenciação e de representação em seus respectivos registros.
A partir daí fica bastante manifesto que tanto a acepção dada ao nome quanto aquela dada à imagem, na problemática do transexual, tomam um valor radicalmente diferente daquelas que podem ter naqueles que têm que decidir sobre sua demanda, se não tiverem tido antes algum esclarecimento sobre esses dados clínicos.*
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*Proximité du transsexualisme et du syndrome d’illusion de Frégoli en clinique et en doctrine. Em Sur l’identité sexuelle: à propos du transsexualisme. Ouvrage collectif. Collection Le Discours Psychanalytique. Éditions de l’Association freudienne internationale, Paris, 1996.
1 THIBIERGE, S. “Le transsexualisme, individuel et social”.Em Sur l’identité sexuelle: à propos du transsexualisme. Op. Cit., pp. 199-217.
2 N.E. – O artigo de Courbon e Fail de 1927, sobre a síndrome de Frégoli, está publicado neste volume, adiante: “Síndrome de ilusão de Frégoli e esquizofrenia”, pp. 264-271.
3 N.E. – O autor se refere à coletânea em que este trabalho foi publicado na França [Sur l’identité sexuelle: à propos du transsexualisme. Op. Cit.], da qual publicamos, nesta Revista, outros dois textos, além deste: “A pele virada pelo avesso”, de J.J. Tyszler (pp. 165-181), e, em versão modificada, “Anotações de clínica social”, de M. Czermak e L. Sciara (pp. 119-146).
4 N.T. – No original: “…c’est qu’il attend de la loi qu’elle prenne simplement acte de ce qu’implique cet objet en tant qu’il commande le nom.”
* Tradução: Paula Glenadel. Revisão da tradução: Sergio Rezende.