Marcel Czermak
Não começamos este ano de 1981 em uma conjuntura qualquer dentro da história do movimento psicanalítico. A propósito do ensino da psicanálise, se nos impõe a obrigação de abordar alguns problemas específicos e que raramente são evocados no contexto deste ensino. Esta obrigação é, também, uma oportunidade, pois nos possibilita, de maneira coloquial, tecer comentários sobre as relações que a psicanálise mantém com a política.
Recentemente, pudemos assistir na televisão um filme há muito tempo afastado das telas, por razões de Estado: trata-se de “Mágoa e Piedade”, onde fica perfeitamente aceitável, além de amplificado pelos efeitos das entrevistas, que a verdade daquela época não podia senão aparecer de maneira unívoca. Cada um dos entrevistados, homens e mulheres, comprovavam isso com depoimentos nesse sentido. Vimos, então, uma seqüência onde Pierre Laval (**) era filmado em sua cidadezinha pelo jornal de atualidades e, a seguir, quarenta anos mais tarde, como falam dele os habitantes que o conheceram.
Era um sujeito impressionante, dizem-nos. Corajoso, atencioso, acessível a todos. Um cara ótimo. Por quê? Porque tinha uma palavrinha para cada um e, como Napoleão, sabia sempre ter um gesto gentil para com seus veteranos. Todo mundo o adorava. Sabemos muito bem que o amor para com um chefe permite um certo sossego. E nisto os psicanalistas cedem, atraídos pela idéia de uma promessa e de uma esperança, o que lhes dá algo sobre o que se apoiar. Ainda mais que, tendo em vista a função da causa, eles se dirigem a uma outra: a religião. Lacan nunca cansou de repetir que uma das diferenças fundamentais entre psicoterapia e psicanálise reside no fato de que numa faz-se crer que existe Pai, enquanto que na outra – no ideal – chega-se à constatação de que não existe. Esta diferença teve, até o momento, uma repercussão limitada. Então, por que as psicoterapias têm tanto sucesso atualmente? E se digo, por exemplo, que Pétain (***) era um psicoterapeuta, não é senão para aumentar a importância desta questão.
Primeira resposta: é que a psicanálise não parece ser bem sucedida em dar coragem a quem não a tem. Entenda-se por coragem não o desconhecimento do medo, da inibição, do sintoma ou da angústia, mas esta disposição para perder aquilo de que nos sustentamos. De onde vem, então, tal disposição? Esta é uma questão crucial para a psicanálise.
Lacan não hesitava em falar do dever que é atribuído à psicanálise. É verdade que é difícil achar a saída para muitos problemas. Pessoalmente, e começando este ano da maneira como há pouco lhes falei, teria a tendência de abordar a questão do dever utilizando uma simplificação que é a seguinte: analiticamente, não há separação entre o privado e o público. O inconsciente nos trai. Ele é discurso e enuncia uma verdade que fala, apesar do sujeito. Se levarmos em conta o comentário de Freud sobre a psicologia das massas (que não é “coletiva”, o que seria um erro de tradução), veremos que, do ponto de vista analítico, esta psicologia se atém à psicologia de dois seres discursantes.
Tendo em vista o comentário anterior, afirmamos, então, que não existe para um psicanalista uma maneira de orientar-se com relação a seus pacientes, e nela situar a conjuntura clínica. Não existe, igualmente, uma maneira pela qual ele orientar-se-ia em sua vida pública, social, institucional. Isto é válido mesmo quando um contexto nebuloso tornar qualquer apreciação mais delicada para ser feita. Nós nos orientamos pela palavra e o que nos orienta é, da mesma forma, aquilo com que trabalhamos: “Função e campo da palavra e da linguagem”, dizia Lacan. Isto implica claramente que existem domínios onde ela funciona e outros onde ela não funciona mais ou nem mesmo funciona. Podemos até brincar com este assunto, mas que fique claro, desde agora, que é preciso curvar-se à disciplina do clínico, sem o que recairíamos na obscuridade comum às relações humanas.
O que é ser um bom psicanalista? – perguntava-se Lacan. Esta era uma pergunta que ele se colocava no sentido de que se exige que um analista leve em conta, na mesma perspectiva e num só ato, tanto problemas clínicos como problemas sociais. Neste sentido, Temístocles foi um bom cidadão por também ter sido um bom analista: isto é, ao ordenar a saída da frota de navios gregos do Pireu, tinha dado a resposta correta. Este tipo de resposta precisa reunir algumas condições mínimas: orientar-se pouco, mas ainda assim orientar-se na realidade das próprias operações e, daí – o que não é o mais fácil – poder tirar as conseqüências dentro de um registro especial: o do Bem Dizer.
Isto nos traz de volta o problema de saber o que seja o ensino da psicanálise, quando alguém, sensibilizado por esta, nele adentra. Ao mesmo tempo, impõe a exigência inadiável de ter de se explicar o que faz.
Uma vez, quando éramos jovens residentes, convidamos Lacan, e de maneira ostensiva, para vir explicar-se em nossa sala de plantão. Ele concordou em vir através de uma carta que começava por: “Prezados Camaradas… É a vocês que se destina tudo aquilo que faço”. Em outros trechos, ele ressaltava, várias vezes, não falar senão àqueles que estavam formados na mesma linguagem que a sua. Deixava, assim, entrever o problema que coloca um ensino. De um lado, dirige-se a … não se sabe quem – mesmo que se escreva “É para vocês” -, pois não existe sujeito de uma enunciação coletiva. No máximo, este “destinar-se a” tem uma forma verbal intransitiva. Por outro lado, falar com… exige que tenhamos sido formados numa mesma linguagem. Nasce daí a questão tão central para a psicanálise: o que quer dizer falar. Dirigir-se a é indicar a si mesmo pra onde se vai. É afirmar através de uma alusão. Isto já indica algo do sujeito, mas nada revela do destinatário – nem mesmo se ele existe. Enquanto que falar, falar verdadeiramente, exige que o locutor encontre um verdadeiro interlocutor.
Ora, o repouso que cada um pode encontrar nos discursos já estabelecidos só existe com a eliminação da enunciação que tais discursos carregam. Um exemplo típico de um discurso estabelecido é o discurso científico. O que produziu até agora? Em sua origem, a psicanálise como função vivificadora. E um pouco mais tarde…, o nazismo. Leiamos o Seminário sobre “Os Quatro Conceitos”, onde mostra-se que nenhum sentido de história poderia explicar fenômenos como o nazismo, mas onde a ênfase é colocada sobre a função do objeto “a”: “…algo a que poucas pessoas não sucumbiriam seria a enorme tentação de uma oferenda, de um objeto de sacrifício a deuses ocultos.”
“Este mistério ainda pode estar oculto sob algo que a ignorância, a indiferença, o desvio do olhar podem explicar como véu encobridor. Mas para aquele que for capaz de dirigir um olhar corajoso para tal fenômeno – e, ainda assim, há poucos que não sucumbam à fascinação do sacrifício em si -, o sacrifício significa que no objeto de nossos desejos tentamos encontrar o testemunho da presença do desejo deste Outro que chamarei aqui de Deus obscuro.”(1)
Leiamos, então, a página inteira do referido texto. Lacan assinala o caminho que alcança não somente a rejeição do objeto patológico, mas também seu sacrifício e seu assassinato. É por isto que escreveu Kant com Sade.
Eis aí a idéia central – até em suas conseqüências sociais extremas – à qual teremos de nos conformar: esta relação ao objeto e ao saber sobre o objeto, sem a qual nosso saber de nada nos serve. Senão poderíamos brincar de diversas maneiras com os quatro discursos.
Isto tudo para responder a esta brincadeira que aparece em toda parte: o que tem a ver a psicanálise com os grupos, se toma as pessoas caso por caso? Ora, todos sabem, através do próprio inconsciente – nem que seja no de seus sonhos -, que o sujeito, seja do privado ao público, do indivíduo aos grupos, deve ser contado, no mínimo, em termos de três.
Surge daí a questão da identificação do sujeito e, ao mesmo tempo, do lugar de onde ele poderia se ver. Se, indo mais além, considerarmos que os discursos ligam-se uns em relação aos outros e não valem senão em função desta relação, este valor reenvia ao primeiro passo: o da contagem. Há o que se conta e há o que tomba, permitindo a contagem: o objeto “a” em torno do qual giram os que se contam.
Isto quer dizer que o objeto está fora de todo cômputo: por esta razão existem colecionadores. Eles nunca terminam de contar suas moedas, suas aventuras ou seus membros, nem que sejam os do próprio corpo. Como dizia bem humoradamente Amos Tutuola (2) , eles nunca estão seguros de serem cavalheiros completos. Com exceção de certos casos de psicose, completo ninguém pode ser. É por este motivo que a psicose não faz discurso nem elo social. Ela é absolutamente radical.
Esta radicalidade sem recurso fica claramente indicada seja pela estrutura do significante, pela do fantasma, seja pela lógica do inconsciente, pelo fato que é estruturado como uma linguagem, podendo tanto determinarem discursos específicos como também a ausência de qualquer discurso.
Se considerarmos que o psicanalista faz parte do conceito do inconsciente, o que é necessário como operador lógico para validar esse conceito, deduz-se, então, que a prática da psicanálise nada tem de “liberal”, mesmo que seja uma arte liberal. A interpretação se baseia no dito de espírito (****) : nada menos inconsistente.
O dizer é sedativo, alguns podem senti-lo; o que diz respeito ao saber da estrutura provoca uma ação econômica, simplificadora da prática. A psicanálise deveria evitar contorções àqueles que a ela se submetem.
Até mesmo os mais novatos da aventura psicanalítica entrevêem que, mesmo sendo claro que em nome da transferência, a psicanálise progrida pelos caminhos da ilusão, da impostura – é preciso, neste exercício, uma certa coragem que permita ajudar a efetuar sua desmontagem. Entretanto, este caminho da ilusão, da impostura, pode também ser mantido, não desmontado, pois o paciente é conivente – salvo alguns bons casos – e mostra-se freqüentemente disposto a manter-se numa conivência agradável e cúmplice com seu analista, por menos que este o queira. Eis aí uma porta aberta ao psicanalista para todos os ocultamentos, prorrogações racionalizadas, sob a cobertura da liberdade que se dá à singularidade do processo de cada um e a seu código próprio.
Ao mesmo tempo, o mecanismo poderia até – e não seria nada inédito – fabricar covardes.
O saber da estrutura, que tem um lugar de verdade no discurso do analista, possui efeitos de exigência: esta verdade não obriga por si só, mas dentro de uma relação específica à relação social, razão pela qual Freud aconselhou Eduardo Weiss a dispensar certo paciente esloveno (a correspondência deles a respeito é maravilhosa), ou pela qual Lacan dizia que se devia recusar a psicanálise aos canalhas: eis aí uma simplificação magistral. Mas é uma simplificação que não é um dado imediato de consciência. Neste sentido pode-se ver, tanto nos hospitais psiquiátricos como nos divãs, tentativas de se melhorar os piores indivíduos a partir de considerações sofisticadas, acobertadas pelo argumento de que se deveria dar a cada um sua oportunidade.
A psicanálise é uma oportunidade e é por isto que não há nenhum motivo para estragá-la. Como, então, enfrentar-se as que estão aí implicadas? Um modo essencial é o de libertar-se da religião e de suas esperanças.
Pois, afinal, de que falamos? Simplesmente, já que a psicanálise faz parte dos três exercícios impossíveis de que Freud nos fala, falamos disto: de que chegamos à psicanálise porque estamos petrificados na maneira de conduzirmos nossa vida e que, então, poderíamos esperar dela que nos ajude um pouco. Percebe-se logo como, com tal formulação, que se mantém pertinente, a religião aí já se apresenta.
No ano passado eu escutava um colega de fala autenticamente apaixonada falar do gosto de cinzas que tinha na boca. Ele evocava justamente fatos que tinham se desenrolado em tempos de pesar e de tristeza. O que me lembrou, então, um comentário do rabino Leib de Sassov a seus hassidis, no século passado: “Vocês querem procurar o fogo? Procurem-no sob as cinzas”.
Se nos lembrarmos deste aforismo de Lacan no “Etourdit”: “Que se diga fica esquecido por trás do que se diz naquilo que se escuta” (3) , e enfatizarmos o que ele desejava – o “que se diga” – nos indicará o fogo que pode flambar sob a palavra, fogo que é incandescência da palavra.
É por isto que temos sempre pressa em chamar os bombeiros. Há sempre fogo em demasia e que se acende sem parar das próprias cinzas; seria melhor que de uma vez por todas ele se apagasse, que a palavra acabasse.
Um psicanalista poderia até transformar-se em um ótimo bombeiro, vestido com um uniforme que lhe daria uma cor de muro de fábrica, sujo de cinzas. Seu papel seria o de vigiar e controlar com sabedoria o fogo no altar da fábrica, mesmo que saibamos, afinal, que o altar é vazio.
Nossa ética é nossa prática, do mesmo modo que a clínica e a teoria não são senão o verso e o reverso de uma mesma moeda. Todos os debates, no mínimo escabrosos, entre teoria e prática, ou ainda entre ética e clínica, podem ser considerados como fora do campo analítico, se partimos de que, analiticamente, não há ética senão a do Bem Dizer, e em relação a qual estamos sempre aquém. Ela se coloca muito acima e nunca é algo conquistado, seja de um paciente a outro, ou com o mesmo paciente de um momento ao outro.
Já que este ensino está dentro do tema da clínica analítica, o fato de nos lembrarmos de que não há ética senão a do Bem Dizer significa nos lembrarmos, também, deste fato elementar: que a psicanálise é um diálogo. É certo que é uma forma particular do dialogar, mas, fundamentalmente, é dialogar. Não é suficiente pensar que a escuta ou o fato de falar sejam favoráveis por si sós, ou que sejam suficientes para que haja psicanálise.
A simples existência da transferência é um obstáculo enquanto resistência. Levar isto em consideração não garante que haja psicanálise. Não é suficiente dizer que é o paciente que faz o caso – o que é fundamentalmente exato – para pensar que estamos certos; pois sem o questionamento deste outro, o psicanalista, que faz parte do conceito de inconsciente, não há caso analítico. Para que tal aconteça, é preciso haver analista, mesmo que ele não o saiba.
Como não experimentar o sentimento de inquietante estranheza diante de tudo que, em nosso caminho, deve ser jogado fora? Vamos enumerar alguns aspectos mais importantes. No ponto a que cheguei, vejo que avanço mais dizendo o que não é psicanálise. Freud notava, com razão, que dizer o que é a psicanálise suscita tanta resistência como dizer o que ela não é. Por haver ouvido demais sobre o que seja – o que não é, com certeza, o que de melhor se faz – não tenho, então, outro motivo para prosseguir, do que a definição pelo que ela não é.
Voltemos periodicamente ao que deve ser jogado fora, e que não é exaustivo:
– o privilégio dado à anamnese, que valoriza as “histórias” em detrimento da estrutura;
– o privilégio dado ao vivenciado, ao sentimento (a contratransferência!) como prova e guia da ação, em detrimento de uma reflexão adequada sobre a estrutura;
– a ilusão da linguagem como sistema de comunicação (quando a própria palavra é obstáculo à comunicação) e, simultaneamente, esta bobagem que é a idéia que funcionamos em um contexto de compreensão, que seria melhor deixar em suspenso;
– a ilusão de simetrias na clínica, do tipo voyeurismo/exibicionismo, sadismo/masoquismo, agrupados no sonho de retornos simétricos do tipo amor/ódio, introjeção/projeção, de que todos participem de uma concepção que eliminaria a “tripartição” em Real, Simbólico e Imaginário: sonhos de reversibilidade que nos fazem crer que nada é irreparável;
– a suficiência no “não-saber”, face à suficiência no saber, quando todo discurso atribui um lugar específico ao saber e enquadra um não-saber igualmente específico, um impossível igualmente definitivo;
– a não-distinção entre impossibilidade e impotência, e a confusão de inibição e de angústia com o sintoma. O esquecimento de que o sintoma é fato de estrutura, o que não acontece com a inibição e a angústia;
– a não-discriminação entre fantasma, sonho e alucinação;
– a certeza inicial de que aquele com quem dialogamos seria dotado de uma intencionalidade, colocando em jogo uma “intersubjetividade”;
– enfim, o esquecimento de que, se a psicanálise é a arte de suspender as certezas para melhor encontrá-las, isto, é claro, não é para sufocá-las ou atenuá-las. Pois a dor de existir pode ser o que de melhor existe no homem, quando ele descobre que sua vida não tem outro sentido senão o de lançar mão incansavelmente do mesmo desejo, e que este desejo inscreve-se banalmente, ridiculamente, num conjunto cuja possibilidade combinatória é fechada. Isto é evidente para o Simbólico mas é igualmente válido, mesmo que mais camuflado, para o Imaginário. Nosso Imaginário é limitado, mesmo que sonhemos em dar livre curso à inventividade.
Partindo de um certo ponto, fizemos um desvio que nos afastou um pouco da perspectiva anunciada, de insistir sobre a necessidade de apreender, com um só movimento, problemas clínicos e problemas sociais. Mas, depois de tudo, ao evocar a dor de existir, fomos de certo modo trazidos de volta ao ponto inicial, no mínimo por aquela citação de Lacan em “Kant e Sade”, que diz respeito a uma das regras da perversão: “Eu tenho o direito de gozar de seu corpo – podem dizer-me – e exercerei este direito sem que nenhum limite me impeça os caprichos desenfreados com os quais terei então o gosto de me fartar.”
“Tal é a regra à qual pretendemos submeter a vontade de todos, por menos que, com suas exigências, a sociedade a facilite” (4). Esta questão, do direito de gozar do corpo do outro, é regularmente camuflada pela questão dos direitos do homem e, no mínimo, remete cada um a esta região sempre presente onde nos dispomos a ser maltratados, objeto de maus tratos, de injustiças e de dilapidações. É claro que todos resmungariam se o autor das ações às quais se curvam decretasse tal condição. Seria essencial aperceber-se de que esta margem estreita, porém decisiva, que propicia o exercício da psicanálise – por pressupor a interpretação – pode também, facilmente, cair numa perversificação. Podemos avaliar a partir deste comentário de Lacan sobre aquele que é objeto de gozo, quando se trata dos direitos do homem: “Aquele que se submete não é tanto por violência como por princípio; a dificuldade de quem executa a sentença não é tanto de nela fazer consentirem, mas de pronunciá-la em seu lugar.” (5)Entrevê-se, assim, como pode ser mínima a distância entre o exercício da psicanálise e da interpretação: “(…) para aquele que faz a sentença …” “pronunciá-la no lugar de alguém”. A situação fica até mais fácil quando se reconhece o fato de que “os direitos do homem… voltam-se para a liberdade de desejar em vão” (6) ; cada um geralmente preferiria um mestre do qual reclamar, a reconhecer que esta lei é a sua, invocada como estranha, como outra lei, outra que aquela de seu desejo.
Qual a relevância que existe em se reclamar de um tratamento injusto que nos é infligido, quando, ao formularmos o que somos em nome de uma voz externa, baseamo-nos na covardia que nos faz desconhecer que ela não é senão o eco de nossa voz interior. A diferença com a psicose é que, neste caso, a voz interior, abolida, torna-se a voz externa, enquanto que no primeiro exemplo a voz interior é vergonhosamente camuflada e articulada pelo Outro encarnado; que se torna, então, o suposto articulador do jogo. É claro que o que evocamos diz respeito ao discurso da vítima: nunca poderemos evitar, para situar adequadamente uma conjuntura subjetiva, de nos interrogarmos sobre a função do parceiro.
Analiticamente, cada um é sempre responsável por seu inconsciente, até mesmo quando o inconsciente seria o discurso do Outro: eis aqui um das aporias da psicanálise. Sem tal axioma, não há psicanálise possível.
Constataremos que as dificuldades multiplicam-se quando nos lembramos que a clínica tem as maiores afinidades com problemas de perspectiva, com o que seja um quadro (diz-se bem um quadro clínico) e, em conseqüência, com a função do olhar. Isto é inegável. Se, considerando os fatos clínicos, abstemo-nos de neles analisar a função do olhar, ou se imaginamos que se consiga eliminá-la, então, reiteramos aí, e de modo insidioso, uma posição perversa. Podemos facilmente compreender o porquê, se nos lembrarmos que a função do olhar é aquela que melhor ilude a castração e onde a queda do sujeito reduz-se a zero; ela opera de maneira quase insensível, “de fininho” …
Há uma parte do seminário sobre “Os Quatro Conceitos” onde Lacan indica que o quadro é uma armadilha para o olhar. Algumas páginas adiante ele volta a esta afirmação para nuançá-la: “A função do quadro (…) tem uma relação com o olhar. Esta relação não é, como pareceria à primeira vista, a de ser uma armadilha para o olhar.” (7)
Como resolver esta aporia? Lacan diz que o pintor não visa mostrar-se ostensivamente. “Dá alguma coisa para entreter a visão, mas ao mesmo tempo convida o espectador a pousar seu olhar sobre o quadro como quem depõe as armas.” (8)
Isto vale também para o paciente para qualquer um que tente fazer quadro, ou examiná-lo, assim como para os que seriam ouvintes ou espectadores desta relação. Pensem por um instante na dialética que poderia se instalar, que assim se instala. E que dá para produzir vertigens.
Como estabelecer uma relação justa? Principalmente esta: para qualquer paciente em análise, o importante não é o estabelecimento de uma relação imediata ao outro da alocução – o que não é senão um começo -, mas que ele consiga ocupar uma posição terceira em relação ao par que forma com este outro. A nosso ver, é isto que pode legitimar o aprendizado que constitui um trabalho coletivo como o seria uma apresentação de doentes, sob condição de que existam aí pessoas – não quer dizer muitas pessoas – que estejam “engajadas do mesmo modo”(*****), para se retomar uma expressão de Lacan naquela noite, no Hospital Henri-Rousselle.
Lacan situava a ignorância douta – quer dizer, formal, mas não inculta – no campo do que seria eventualmente uma ignorância formadora. Há uma margem estreita separando-a da ignorância discente, um passo pequeno entre aquela posição e uma degradação perversa: o desejo perverso apóia-se em um ideal de objeto inanimado, razão pela qual há tantos perversos na pedagogia. Isto serve para situar as responsabilidades, tanto a minha como a de vocês.
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* . Conferência proferida em 1981 no Hospital Henri-Roussele. Publicada no livro de Marcel CzermakPaixões do Objeto- estudo psicanalítico das psicoses. Porto Alegre: Artes Médicas, 1991
** . Pierre Laval: político francês, chefe do governo de Vichy em 1942. Partidário da colaboração com a Alemanha durante a guerra, foi condenado à morte e fuzilado em 1945. (N. da R.)
*** . Marechal Pétain, H. P. (1856-1951): presidente da França ocupada pelos alemães, durante a II Grande Guerra. Herói na I a Guerra, conduziu uma política de colaboração com o inimigo na 2 a. Com o término desta, foi condenado à morte, pena depois comutada em prisão perpétua.
1 . J. LACAN, Le Seminaire, livre XI, “Les Quatre Concepts fondamentaux de la pychanalyse”, SeuiI ed., Paris 1973, pp. 246-247.
2 . TUTUOLA, L’lvrogne dans Ia brousse, Gallimard
****. Mot d´ esprit no original (N. da T.)
3 . LACAN, “L’Étourdit”, in Scilicet n 0 4, Seuil éd., Paris 1973, p. 5.
4 . LACAN, “Kant avec Sade”, in Écrlts, Seuil éd., Paris 1966, pp. 768-769.
5 . IBID., p. 771. Eu sublinho.
6 . IBID., p. 783.
7 . “Les Quatre Concepts fondamentaux de la psycanalyse”, p. 93.
8 . IBID., p. 93.
***** . Dans le coup”, no original: “por dentro” (N. da T.)