O ideal da paridade no mundo industrial.
14 de maio de 2008
Ciclo : Onde estamos em relação à identificação sexual?
(Maison de l’Amérique Latine – Leituras brasileiras)
Charles Melman
Como vocês sabem, fazemos forçosamente do sexo uma questão de sentimentos.
O problema é que o que determina o sexo é primordialmente uma estrutura perfeitamente indiferente aos sentimentos que podemos experimentar e que gostaríamos que estivessem no comando da relação.
E é claro que, na medida em que não estejamos advertidos, certamente melhor, quanto às particularidades estruturais que ordenam o sexo para nós, continuaremos seguramente a viver a relação no domínio do sonho, da reivindicação, da utopia, do mal-estar, e até mesmo, hoje em dia, e por que não?, da reivindicação social.
E se vê bem de que modo, quanto a este ponto, que vocês trataram no decorrer deste ano, é um pouco a vida de cada um que está em jogo, que se decide, apesar dele, apesar do que ele possa pensar a respeito, eu diria mesmo apesar do que ele saiba a respeito disso, pois nessa questão da relação sexual e da identificação sexual nós temos, depois da psicanálise e também, em grande parte, depois das formulações de Lacan, temos avanços, em relação aos quais é interessante constatar que, no essencial, eles ficam fora do movimento cultural; ou seja, tudo continua a se passar como se, quanto a isso, nada tivesse sido proposto com o intuito precisamente de imaginar relações entre homens e mulheres, relações de cada um com seu próprio sexo, que sejam menos conflituais e que resultem menos nisso que vivemos há decênios, isto é, a “guerra dos sexos”.
Onde estamos em relação à identificação sexual?
Podemos, eu me permitiria lembrar, evidentemente eu não sei, infelizmente, o que vocês já trataram aqui, mas eu me permitiria lembrar muito brevemente que, para cada um de nós, a identificação sexual se dá ao nível de quatro fatores.
Nem mais e nem menos.
Há, de saída, aquele que cada um de nós certamente conhece, que é o fator da realidade de seu sexo, seu sexo anatômico, aquele que, com o qual ele veio ao mundo, o tipo de equipamento que virá situá-lo de um lado ou do outro: do lado macho ou do lado fêmea.
É uma identificação maior, pois ela não é apenas real, mas toma também para cada um, e em geral para as famílias, toma um sentido simbólico, já que ela parece ser a vontade, corresponder à vontade daquele que decidiria esta questão, a potência tutelar que vem decidir sobre a diferença dos sexos, e ela toma então, enfim essa anatomia toma então imediatamente um caráter também simbólico.
Em outras palavras, não é apenas o efeito desse acaso – 51%, 49% – que determinou a identidade do sexo, mas é também a vontade tutelar que vem situar cada indivíduo desde seu nascimento numa das duas categorias.
Simbólico: isso tem sentidos, como direi?
Isso tem, no caso, um sentido muito preciso, pois isso vem significar, imediatamente, que a identidade, essa identidade de saída “bobamente anatômica”, animal, se ouso me expressar assim, vem se inscrever na vocação daquele que acaba de nascer para se tornar homem ou mulher, ou seja, com a carga de um dever.
E de um dever que, no caso, zomba disso que poderia ser tanto seu prazer quanto, eu diria, sua determinação singular: se ele é Homem ou Mulher, ele vem ao mundo com esse encargo que faz com que ele seja reconhecido por seus semelhantes, com a condição de se mostrar o representante, seja ele Homem ou Mulher, dessa potência tutelar, um de seus agentes e, entre outros, com esse encargo de assegurar a posteridade da linhagem.
Isso vale para um e para o outro sexo, mas ainda, eu diria de maneira mais eminente, para o sexo feminino, pois, como sabemos, a avaliação de suas qualidades femininas próprias vai se achar submetida a sua capacidade, até mesmo a sua vontade, de ser mãe.
E em geral assistimos ao eclipse do que poderiam ser, eu diria, as manifestações, o reconhecimento que ela poderia esperar dos traços de sua feminilidade, assistimos então: eclipse diante dessa busca desejada socialmente, socialmente desejada, socialmente validada.
Essa busca da maternidade, na medida em que é ela, mais que os traços específicos de sua feminilidade, que viria de algum modo fazê-la entrar no círculo social.
Evoquei o fator real na identificação sexual, eis aí um fator simbólico, cuja, eu diria, brutalidade, já nos faz entrever de que maneira ele submete o que pode ser a singularidade de cada um ao que é uma regra cultural, uma regra social.
Além do fato de que os termos Homem ou Mulher não vêm apenas como sinônimo, portanto, desse dever a cumprir, mas também como obliteração do que poderiam ser os desejos de tal ou qual, em benefício desse encargo que lhe retorna e, bem, não há necessidade de insistir quanto a isso, encargo do qual sabemos de que maneira ele é familiar e socialmente festejado.
O terceiro fator dessa identificação sexual é o fator imaginário.
É um fator muito importante, pois comanda de algum modo o que, na espécie humana, tudo o que tem a ver com o desfile sexual, que como sabemos é muito importante, muito decisivo.
E é assim que há um certo número de traços que se pode celebrar, que se pode denunciar, seja o machismo, de um lado, ou seja a sedução, do outro.
E que, naturalmente, derivam essencialmente das modalidades, eu diria próprias a uma cultura, de se dar em representação na manifestação dessa identidade sexual.
É claro, com efeito, que os mitos tão numerosos que testemunham a violência com a qual pôde se efetuar, eu diria, o primeiro “rapto” das mulheres, esses mitos dão conta, sem dúvida nenhuma, do medo que as mulheres inspiram à espécie macho.
Na medida em que é, evidentemente, da aceitação delas, do acordo delas, que depende a verificação dessa identidade masculina, no início, eu diria, tão espontaneamente, e de modo inaugural, segura de si mesma.
E sabemos o quanto também esse pacto entre um homem e uma mulher não pode ser, aqui ainda, apenas um pacto simbólico – não é primordialmente o contrato no cartório – mas é mais originariamente um pacto simbólico.
Ou seja, a aceitação, por cada um, dessa falta que vai estar no centro da relação concubina ou conjugal, e essa falta deverá ou não ser assumida, essa incompletude, essa defecção, que deverá ser assumida ou não, com relação justamente a esse encargo que recai sobre cada um, mas que, como sabemos, pode ser continuamente recusado.
Está aí, eu direi, o motivo, a causa de todas as recriminações que podemos apontar na relação, e sabemos que essa insuficiência, essa defecção pode ser denunciada a todo momento, recusada, e o pacto se ver desfeito.
É claro que, quanto a isso, os devaneios dos mitos que continuamos a alimentar sobre a relação e sobre, justamente, o preço da identificação, é claro que esses mitos, falo dessas esperanças, dessas utopias assim propostas, só podem contribuir, evidentemente, eu diria, para um fracasso, que só vale, que só vem se inscrever em relação às expectativas culturalmente alimentadas, admitidas, esperadas, ansiadas.
Sobre esse imaginário, não vou me estender agora, para voltar a ele daqui a pouco.
E então, depois de ter abordado essas três categorias que fixam a identificação de cada um, Real, Simbólico e Imaginário, é preciso certamente chegar à quarta, que é a identificação marcada pelo sintoma, ou seja, justamente a tentativa de se aliviar desse encargo ligado à identificação sexual.
Tudo que a psicanálise pôde mostrar quanto à organização das neuroses ilustra, seguramente, de que maneira esse estranho animal humano trata de se defender contra esse encargo ligado à identificação sexual, de todas as maneiras possíveis.
Não sei se é necessário aqui, imediatamente, não sei se é necessário desenvolvê-las, seria abrir o capítulo das neuroses, sejam elas obsessivas, sejam histéricas, sejam fóbicas, todas se caracterizando como sendo defesas contra a identidade sexual e o encargo, eu diria, a cumprir.
É nesse contexto que apareceu, justamente, na escala da cultura, esse movimento, do qual parece que um dos pontos de origem mais recentes, pois certamente há, há antecedentes, mas tomemos o mais recente, é aquele cujo quarentenário nós celebramos: esse movimento cultural que veio propor uma palavra de ordem cujo caráter subversivo muito rapidamente mostrou-se manifesto, e uma palavra de ordem que provavelmente, eu vou, eu vou dizer: eu acho que ela foi articulada; sei lá, mas em todo caso ela vinha substituir a velha palavra de ordem revolucionária: “A cada um segundo suas necessidades”, vinha substituí-la por uma palavra de ordem inédita que é: A cada um segundo seu desejo”, o que é, evidentemente, completamente diferente.
“A cada um segundo seu desejo”, que vem então quebrar ou romper, desafiar esse encargo que eu evocava há pouco e que está ligado à identificação masculina ou feminina.
Ou seja, que deve ser cumprido no casamento e na fecundidade, às expensas, ou eu diria, colocando debaixo dos lençóis seus próprios desejos, ou então, segundo o modo burguês tradicional, vivendo-os de maneira lateral e mais ou menos escondida.
E eis que surge essa palavra de ordem, que afirma então o direito, para cada indivíduo, de operar, de viver publicamente segundo sua fantasia…
Os efeitos dessa palavra de ordem, certamente não vou aqui me divertir tentando traçar sua genealogia ou o que quer que seja, isso não tem interesse, pois bem, os efeitos dessa palavra de ordem são imediatos, e têm repercussões, conseqüências que vivemos no dia a dia e que afetam, evidentemente, não apenas a liberdade que se toma em relação ao dever de fecundidade, mas que também afetam agora a liberdade que se toma em relação a essa identidade sexual, cujos quatro traços constituintes eu lembrei há pouco: Real, Simbólico, Imaginário e sintomático.
O que é interessante para nós é ver que aqueles que se terão engajado ao extremo nesse movimento, ou seja, os transexuais, justamente na recusa radical desse destino, dessa destinação, a recusa dessa destinação, pois bem, vocês vão encontrar em suas reivindicações esses três traços que evoquei agora há pouco.
Ou seja, em primeiro lugar, que sua anatomia se torne conforme ao sexo que escolheram.
Em segundo lugar, no que diz respeito ao Imaginário, sabemos todos o papel essencial que ele desempenha nesses casos, justamente com respeito à sua preocupação com a aparência, ou mesmo com o aparato.
E não encontramos menos esse lado, essa exigência no registro simbólico, com essa demanda de modificação, senão do estado civil, da nomeação e da possibilidade de cumprir os sacramentos de maneira perfeitamente, eu diria igual, idêntica, aos outros.
Esses transexuais poderiam parecer, certamente, eu diria, entrar então num campo perfeitamente convencional, se eles não se caracterizassem pelo seguinte, e eu diria que para mim é o único traço que eu vou ressaltar como constituindo a marca da mutação que eles exigiram: é não apenas que a afirmação de sua identidade se faz com uma certeza inabalável – ao passo que um homem, uma mulher, eu diria “comuns”, podem sempre oscilar em seus comportamentos, em seus reflexos, em suas condutas, nas diversas ocasiões às quais são expostos, podem sempre, eu diria, ter condutas às vezes ambíguas, ambivalentes, ter, para uma mulher, traços masculinos e, para um homem, traços femininos, etc…
No caso dessas pessoas, trata-se, ao contrário, de uma noção suficientemente excepcional para ser assinalada, que é aquela da certeza, portanto, e não há possibilidade para um transexual, eu diria, de jogar com o que seria a esse respeito algum, alguma ambivalência, e também a certeza de ser, na categoria escolhida, o mais ilustre ou o melhor representante.
Ou seja, de representar uma identidade perfeita, completa, e justamente, eu diria, a quem é poupada essa falha que eu evocava há pouco, e que é própria a qualquer engajamento, às conjunções sexuais como se diz, apresentando-se a cada vez como sendo o modelo mais perfeito, apto a realizar uma união completa!
Eu me lembro de ter, há muito tempo, num hospital do serviço do Val de Grace, no serviço de psiquiatria do Val de Grace… eu fui, eu fiquei impressionado…, de ver chegar um homem que vinha falar a favor de seu companheiro, que se achava hospitalizado porque tinha se revelado incapaz de cumprir seu serviço militar – ou o tinha recusado – e, então, esse homem vinha ver o médico, por seu companheiro portanto, para dizer o seguinte:
Era um homem, eu direi, quanto ao qual nada podia levar a pensar em qualquer perversão, sexual ou outra, um homem inteligente, inteiramente cortês, civilizado, razoável, que contava a seguinte coisa: que tinha sido casado várias vezes – provavelmente não tinha tido sorte, pois não funcionou bem para ele – e que precisou separar-se duas ou três vezes – não me lembro mais de sua esposa – e então tinha encontrado esse – embora não tivesse nenhum gosto pela homossexualidade – tinha encontrado esse rapaz e vivia, enfim,… eh… o conjúgio admirável! Era a felicidade na casa!
Como se tratava de alguém sensível, devotado, atencioso, de “tal modo capaz” para os cuidados da casa, agradável, delicado… e toda a chateação e dificuldade que ele tinha por estar privado, mesmo por algumas semanas, por essa, ahn… , por essa partida, por essa ausência, e eu só conto esta história para testemunhar que, sem dúvida, é preciso viver a feminilidade, eu direi, como o acesso a um estado desejado, muito mais do que como a fonte das dificuldades com que se terá que lidar… sem dúvida é preciso isso para que, eu diria, o que essa pessoa contava seja pensável!
Sendo assim, esse, essa palavra de ordem, “A cada um segundo seu desejo”, veio tomar seu lugar no que é também uma reivindicação política que é a da igualdade.
Não vou entrar nisso, mas é interessante que a noção de justiça ande junto com a de igualdade que é uma velha tradição.
Quando, de saída, sabemos perfeitamente que essa igualdade nunca se realizou em lugar algum e se ela não se realizou em nenhuma das experiências históricas que estão consignadas é sem dúvida por que há obstáculos independentes da vontade dos parceiros, que fazem com que essa igualdade permaneça sempre na ordem do sonho. Mas, em todo caso, isso não impede de modo algum que essa palavra de ordem tenha vindo se inscrever, esse campo político com essa conseqüência que não é uma qualquer, é que essa igualdade parece obrigatoriamente vir se inscrever como a repartição geral de um traço masculino.
Afinal de contas, não vejo por que é que, ….bem…., seria forçosamente esse traço que deveria ser escolhido como índice da igualdade que se deveria ser generalizar…
Por que é que não seria um traço feminino? Seria fácil mostrar que, do ponto de vista da qualidade, ele certamente não é inferior e menor que o traço masculino!
Mas, em todo caso, parece que a igualdade é o que isso quer dizer.
É por isso que eu falei de paridade no mundo industrial, é evidentemente o que é a grande reivindicação do campo do trabalho, de um tratamento igualitário dos homens e das mulheres, a partir de uma justificativa que é, eu diria, bem real, que é a da minoração do salário feminino. Uma reivindicação evidentemente inteiramente legítima, mas que se estende bem além.
Que se estende bem além, e com conseqüências que são, eu diria, marcantes no destino hoje de numerosas, muito numerosas jovens, fazendo passar sua realização social, isto é, a partilha igualitária das tarefas de trabalho, fazendo passar esse destino social bem à frente do destino singular e do destino conjugal.
Devo dizer que, de minha parte, sou muito sensível a essas jovens que têm a maior reticência, que, engajadas nas carreiras profissionais, têm a maior resistência – para grande desespero de suas famílias – têm a maior resistência a se engajar numa vida privada que viria, evidentemente, inferiorizá-las com relação a seu desempenho social.
Inversamente, ou simetricamente, a quantidade de jovens, de rapazes que, fazendo carreira no mundo dos negócios, têm tendência a querer mercantilizar suas relações sexuais afim de, eu direi, não sofrer o custo, ao mesmo tempo psicológico, mas eu direi também material, físico ou financeiro, achando mais “econômico” mercantilizar suas relações sexuais do que manter um lar.
E essas disposições tomam lugar numa modificação, eu direi essencial, da organização da relação entre os sexos, que é justamente, com o triunfo da igualdade, o fato de colocar os dois no mesmo plano, no mesmo território.
Saímos de uma área cultural em que uma mulher se distinguia por sua alteridade, pelo fato de que ela introduzia, eu diria, no “mundo cinzento e uniforme dos homens”, pelo fato de que ela introduzia esse traço de ser, não uma estrangeira, mas de ser “outra”.
E no mais das vezes, reivindicar e afirmar essa alteridade com, eu diria, a importância que essa dimensão possa ter para o exercício de nosso pensamento.
Nosso pensamento, que tem tendência, como vocês sabem, desde Platão, a querer homogeneizar, a passar do mesmo ao mesmo. É um velho capricho, uma velha reivindicação de nossa civilização, querer homogeneizar tudo, ou seja, funcionar no “Homo”.
Pois bem, em nossa organização cultural, uma mulher tinha, mantinha seu charme, pelo fato de ser irredutivelmente Outra. Ou seja, em parte desse mundo, mas em parte de um para-além, de um alhures.
Por ter, então, ao mesmo tempo, esse aspecto eventualmente temível, mas também enigmático, também intrigante, etc.
Em todo caso, isso fazia com que ela não tivesse a ver com o mesmo tipo de ordem que seu companheiro.
E eis que, com esse progresso cultural que vivemos – e eu utilizo o termo progresso para marcar o que vem, o que vem antes e depois, o que vem suceder o que era até então – pois bem, portanto, hoje, essa colocação num plano efetivamente de igualdade, que também vai, eu diria, ser a fonte de tipos de relação, de tipos de relação totalmente originais, novos, que aproximam os cônjugos a tipos de associação, de camaradagem associada e quero dizer: partilha-se as despesas, partilha-se os encargos, partilha-se as tarefas, etc…
Guardo sempre a lembrança, eu diria comovente, desse jovem que me contava de que maneira ele e sua namorada estavam em busca de um mundo novo, de relação nova… e eles passavam horas, a cada dia, discutindo o que cabia a cada um na partilha das tarefas, do que cabia a um, do que cabia ao outro, a fim de que a igualdade entre eles fosse bem respeitada.
Um efeito, eu diria, inesperado, mas que de um ponto de vista estrutural é completamente compreensível, é que, no mesmo movimento, aí também pode-se ver como um avanço ou como um déficit – vai depender das circunstâncias – no mesmo movimento o que se poderia chamar de uma dessacralização completa da relação sexual, entrada, eu diria, no registro de uma troca, das trocas que podemos nos dar reciprocamente, na idéia, eu diria, da satisfação que cada um dos parceiros poderia obter daí, mas num sentido essencialmente pragmático e positivo.
Evidentemente com essa conseqüência, esse efeito de que o contrato moral assim estabelecido, eu diria, nunca vale como engajamento.
Ele nunca vale senão como constatação que, a partir do momento em que essa troca parece favorável aos dois parceiros e evidentemente se presta a todas as renovações, não constitui, por parte de cada um, um engajamento.
É também, eu diria, nessa modificação radical, e eu comecei há pouco pelos transexuais, mas podemos vê-lo sem que no entanto se trate de transexuais, deslocamentos de estatuto que fazem com que haja menos ainda inconvenientes a que uma mulher possa ocupar uma posição masculina, possa vir ocupar uma posição masculina, que ela testemunhe indiscutivelmente a esse respeito mais liberdade, no exercício desta posição, mais autoridade e determinação que seu companheiro macho.
Por razões que, novamente, são de tipo estrutural, ou seja, se o companheiro macho é ligado, eu diria, ao estabelecimento, ao respeito a uma certa ordem, uma mulher que vem ocupar essa posição masculina pode perfeitamente testemunhar que desta ordem ela não é serva.
E, todos os exemplos que temos na história, de mulheres que vieram ocupar postos de direção no nível do Estado, por exemplo, no nível das empresas, que segundo a elite eram reservados aos homens, e elas mostraram uma virilidade superior muito mais decisiva e aparentemente com muito mais facilidade do que aquele que até então os ocupava – não vou entrar nos exemplos históricos que abundam – e é interessante ver, vimos recentemente na vida política de nosso país, que esse ponto estava perfeitamente situado, quero dizer a competência de uma mulher para vir ocupar esse posto, esse ponto era perfeitamente situado e almejado…
E estou persuadido de não estar dizendo nada, a esse respeito, que possa surpreendê-los, pois sabemos das inúmeras situações familiares em que isso é de exercício corrente no cotidiano. É preciso realmente que tenhamos ficado presos a uma imagem, eu diria, infantil, uma imagem fora de moda, uma imagem de literatura cor-de-rosa – sei lá qual – para não ser sensível a esse ponto.
De tal modo que, evidentemente, existe hoje esse movimento de feminismo que conhecemos, que vocês conhecem, relativo ao “gender”, que, eu diria com um certo fundamento, vem lembrar que a função masculina nunca seria tão bem assumida, pelo menos imaginariamente, mas também realmente, quanto se ela for sustentada, bem,… por uma mulher.
E depois há também esse outro movimento que é, a meu ver, mais interessante – pois é sem dúvida anunciador de uma renovação completa da questão da identidade sexual – que é esse movimento feminista do qual a Sra. Wittig é uma representante e que aspira a dar às mulheres um estatuto inteiramente separado da sexualidade.
Em outras palavras, não tendo mais nenhuma relação com essas identificações masculinas ou femininas que eu evocava há um instante. Um tipo de mulher cuja identidade sexual seria caracterizada pela extração radical de nossa especulação comum relativa a essa instância à qual se referem o sexo macho e o sexo fêmea.
Estamos, então, se posso terminar por aqui, numa época que, a esse respeito, é absolutamente apaixonante, e onde a questão que merece ser colocada é: será que quanto a esses fenômenos, quanto a essas reviravoltas, será que temos julgamentos de ordem moral a fazer?
E se sim, suportados em que referente?
Em segundo lugar: será que esses movimentos são viáveis na medida em que eles não são utópicos, mas se sustentariam em possibilidades da estrutura, ou não?
E se achamos que não, ou seja, que são utopias que forçam o que a estrutura permite – não vou certamente evocar isso agora – será que temos que nos comportar como defensores da estrutura, ou seja, do que é possível, do que se pode e do que não se pode?
E depois, terceira consideração, entre outras, mas que poderíamos considerar hedonista: essa palavra de ordem, “A cada um conforme seu desejo”, exacerba forçosamente um individualismo até então submetido a essas obrigações que atingem a identidade sexual e que fazem entrar, eu diria, o sujeito no campo social.
Mas essa exigência de um “A cada um conforme seu desejo” exacerba um individualismo quanto ao qual temos dificuldade em ver de que modo ele pode se acomodar a um parceiro qualquer.
Fosse ele estritamente semelhante – o que é muito difícil de tolerar, viver com sua própria imagem em espelho?
Ou se ele fosse diferente e nesse caso viria romper o pacto, pois viria atrapalhar a afirmação do direito de cada um viver segundo seu desejo.
Ele viria negá-lo, ele viria dizer: “É preciso que você se acomode com o meu, com o meu desejo”!
Vocês escolheram então, este ano, um tema essencial e difícil, e já que estamos na Maison de l’Amérique Latine, eu contava à Ângela que um jornalista brasileiro me perguntava o que eu pensava de ‘Ronaldinho’… eu vejo que entre vocês há alguns que estão a par dos problemas do Ronaldinho, o jogador maravilhoso, o ídolo das multidões, o modelo das multidões, e que então tem dificuldades com um ou dois transexuais que o tinham levado a seu quarto… hein? Travestis sim!… então, o que é genial, são sempre geniais esses casos, porque isso cria um escândalo público quando, por outro lado, esse mesmo público é forçosamente, sabe, por experiência própria, eu diria, o que se faz e o que se passa, mesmo assim!
Mas isso é que é formidável: é que, quando vem à luz, isso não pode! Se tivesse permanecido escondido, nenhum problema!
Quer dizer que pareceria que continuamos a funcionar sob um olhar. E que haveria exigências, um olhar que teria exigências. E que não se deveria ofender, um olhar como se vê no caso de Ronaldinho, um olhar muito tradicionalista.
O que fez então com que eu pudesse ver uma parte das confissões de Ronaldinho, absolutamente, diante das câmeras, confessando suas faltas, seus erros, seus pecados: ele se confessou em público: essa é a nossa época!
E eu, eu devo dizer que, em todo caso, esse divórcio assim, do que se sabe – o que é sabido – o que se pratica, apesar de tudo, o que se pode deixar ver – e o que não se pode deixar ver…
Estamos num momento interessante.
E forjar sua opinião e ter uma visão, eu diria, mais ou menos correta sobre essas questões, faz parte da elaboração a que vocês se dedicam – e obrigado por sua atenção.
Roland Chemama :
Obrigado por nos ter proposto esta conferência muito precisa que no fundo mostra que é possível ter uma abordagem estrutural tanto do que se passa hoje quanto do que ontem organizava as relações entre os sexos! Hein? Trata-se de uma nova estrutura no fundo, mas é uma organização estrutural… bem, eu teria uma ou duas coisas que eu poderia dizer na sequência mas creio que é a Ângela que está prevista como debatedora… eu talvez diga uma palavra da platéia.
Angela Jesuino-Ferreto :
É verdade, esse caso do Ronaldinho é curioso… mais ainda por isso vir de um país onde a questão do travesti é muito presente na cultura e tivemos aqui um exemplo disso na última conferência… mas eu não queria ser a “brasileira de plantão” hoje…
Charles Melman :
Sim! (Risos na sala)
Angela Jesuino-Ferreto :
…e eu queria talvez levantar uma questão um pouco mais encorpada, mas é algo que me ocupa e me ocupou durante este ciclo, e creio que se quisemos trabalhar essa questão, em todo caso no que me concerne, é que eu tenho essa questão na cabeça, e não resolvida, eu acho, que é a seguinte:
Será que, como formular isso… Com o que nós construímos nossa identidade sexual hoje em dia?
Será que é, será que podemos conservar da mesma maneira que o senhor descreve os quatro pontos de que o senhor nos falou? Porque, por exemplo, a questão da anatomia não cria mais destino de certa maneira, e a recusa dessa tarefa que a identificação sexual nos trazia encontrou hoje, na sociedade contemporânea, um eco favorável.
E é por isso que eu me coloco a questão e me questionei se não havia um ponto mais importante disso, que é a questão do imaginário e do real, no real do corpo que hoje em dia estaria mais presente na fabricação dessa identidade sexual?
Aí está, aí está o tipo de questão que eu tinha vontade de colocar para o senhor.
Charles Melman :
É genial ! Porque você aborda exatamente o ponto que eu deixei de lado na minha exposição para não pesar muito; mas, há, como se sabe, duas identificações possíveis. Uma marcada pelo traço da virilidade, outra marcada pelo traço da sedução.
Não vou desenvolver aqui, nem introduzir a questão do objeto a, mas há então duas identificações possíveis. E o que é notável é que elas funcionam hoje, essas duas identificações, independentemente do sexo simbólico e do sexo real. Em outras palavras, vemos muito bem, não é?, homens identificados, eu diria, por essa marca da sedução e que se sustentam por esse traço. Vocês me dirão: sempre houve! Certamente que sim, mas tornou-se uma coisa que não só não chama mais a atenção, mas que parece inteiramente comum, não é? E eu direi também que esses dois modos de identificação são intercambiáveis. Isto é, você pode ser levado a ostentar o traço da virilidade, você pode em tal outra circunstância ostentar o traço da sedução.
É preciso dizer, a meu ver, que a organização do trabalho obriga cada um a passar por posições que são tanto – não é mesmo? – a da submissão quanto a da direção, e que a habilidade profissional é ser capaz de, eu diria, assumir esses dois investimentos que subjetivamente são muito diferentes. Saber agradar a seu superior, ou então saber assumir o papel de superior em relação a seus subordinados, são investimentos subjetivos muito diferentes que são qualidades hoje em dia exigidas daqueles que chegam ao mundo do trabalho, e qualquer que seja seu sexo. E eu creio realmente que, nesse campo, a velha tese marxista que faz da ideologia uma super estrutura das condições econômicas me parece perfeitamente se aplicar a esses casos.
Isso, aliás, introduz uma diversidade que não é desagradável! Quero dizer essa maneira de jogar, assim, com uma ou com a outra identificação, bem, isso enriquece um pouco as situações sentimentais! Isso diversifica a linguagem amorosa. Mas enfim, isso tem seus limites também, evidentemente.
Mas isso faz parte do que há de novo, certamente.
Angela Jesuino-Ferreto :
Sim, isso me faz encadear com a segunda questão que eu queria lhe colocar, porque eu penso que hoje há uma espécie de modo de defesa quanto a esse encargo, que é cada vez mais difundido e, eu acho, às vezes a despeito da estrutura de cada um: que é a questão da bissexualidade.
Charles Melman :
Sim
Angela Jesuino-Ferreto :
E que…
Charles Melman :
Ao passo que… , não estamos aqui especialmente num local de cuidados, mas a bissexualidade, bom, não é, não é mais um problema moral!
Angela Jesuino-ferreto :
Absolutamente, absolutamente, e é uma questão que se encontra no consultório e muito facilmente nem mesmo na fantasia.
Charles Melman :
Mas certamente: isso se chama viver uma experiência! Não é mesmo? Então, como somos pessoas que praticamos a ciência experimental, hein? Então é preciso também se entregar a experiências: aí está!
Roland Chemama :
Mas às vezes isso vai mesmo além de uma simples experiência! Ou seja, há jovens, rapazes ou moças, que vivem – como direi? – tanto uma relação com um homem quanto com uma mulher em alternância, e como se fosse relativamente indiferente!
Charles Melman :
Absolutamente !
Roland Chemama :
A ponto de quando falam da pessoa que amam, durante quinze minutos, não se pode saber de que sexo é essa pessoa!
Charles Melman :
Isso é verdade.
Roland Chemama :
Eu tenho uma questão: a questão é que talvez, mesmo se for verdade, não estamos num seminário clínico, mas mesmo assim, intervimos como analistas, e analistas, no fundo, já é importante descrever, descrever a configuração que é a nossa, mas no fundo como é que se coloca a demanda hoje e como é que o analista pode responder a ela? Porque se poderia pensar que no fundo, nesse mundo, o sujeito poderia se sentir à vontade nessa nova organização, onde “a cada um segundo seu desejo”, ahn?, desde que ele ache seu lugar. Então eu me interrogava ao escutá-lo, porque é nossa prática de todo dia: como é que entendemos essas novas configurações?
Eu me perguntava se, enfim eu lhe passo a questão, se um dos nossos modos possíveis de, de intervenção não tem a ver com um tipo de contradição que existe de todo modo, e que podemos, eu acho, eu acho, entender a partir do que o senhor descreveu. Que é que, ao mesmo tempo, parte-se desse preceito “a cada um segundo seu desejo”, mas o estabelecimento, o desenvolvimento lógico, aliás, que o senhor retomou, leva a um tipo de anulação do desejo, de neutralização.
Charles Melman :
Ah sim!
Roland Chemama :
Quer dizer, finalmente, o senhor falou de Wittig, etc., ou quando se falou a propósito do casamento para pessoas do mesmo sexo, para que o mesmo termo possa convir para um casamento entre homem e mulher, enfim, bem, falou-se de casamento neutro quanto ao sexo, há um tipo de neutralização, ao mesmo tempo, que faz com que o sujeito, bem, ao mesmo tempo lhe prescrevem realizar seu desejo, mas ao mesmo tempo neutraliza-se a possibilidade do desejo.
Charles Melman :
Absolutamente.
Roland Chemama :
E eu tenho a impressão que é aí que nossa intervenção pode… sei lá, o que é que o senhor pensa disso?
Charles Melman :
Sim, certamente ! Não, você tem toda a razão : isso toma um caráter completamente diferente, certamente.
Roland Chemama :
Se Angela ainda tem uma questão. Senão podemos passar a palavra ao auditório.
Angela Jesuino-Ferreto :
Sim, eu tenho uma questão, mas depois podemos dar a palavra ao auditório… é a questão que o senhor coloca, que eu proponho como a questão: será que está previsto na estrutura? Ou não?
Charles Melman :
Será que « a estrutura o permite » ?
Angela Jesuino-Ferreto :
Em todo caso, eu posso testemunhar o que encontramos na prática, é que, é que há coisas que não se encontra palavras para descrever.
Eu recebi, não faz muito tempo, uma jovem que me perguntava: “mas como é que eu devo chamar a mulher da minha mãe?… a companheira da minha mãe? Como é que se deve chamá-la?” E então toda a sua dificuldade…
Charles Melman :
Bem : papai! (Risos na sala)
Angela Jesuino-Ferreto :
… sua mãe queria que ela a chamasse de “madrinha”; ela não queria, ela queria chamá-la pelo seu nome, mas também não funcionava… quer dizer que há de todo modo algo na linguagem que traz problema!
Charles Melman :
Absolutamente.
Angela Jesuino-Ferreto :
E isso, é interessante refletir a partir daí: como nomear? Como dizer?
Charles Melman :
Sim, com certeza.
Mas o que vai ser formidável é que vão se forjar palavras novas a esse respeito, e será interessante ver quais serão as escolhidas!
Mas não há nenhuma razão para que não nasça um vocabulário original para, para nomear essas, essas situações.
É como as crianças educadas por duas mulheres: será que, será que devem dizer mamãe a cada uma?… será que elas têm duas mães? Então…, em geral ensina-se a elas a dizer mamãe a uma e tia à outra… em geral é uma, é uma invenção…. mas aí também pode-se pensar que, pode-se pensar que haverá um escrivão, em geral é graças a eles que isso se dá, haverá um escrivão que vai encontrar um nome e este entrará na linguagem.
Luiz ?
Luiz-Alberto de Farias :
Em relação a essa orientação, a essa nova organização… o que é que o senhor pode dizer em relação ao pai, a questão do pai… pois há pouco o senhor fez, o senhor falou da questão da mãe, mas o pai… isso me faz pensar em todas as questões que levantamos nas conferências deste ano…
Charles Melman :
Bem, eu, o que eu poderia lhe responder, assim, de maneira abrupta, é que a relação ao pai está agora como que polarizada por um cristal!
Ou seja, você tem todas as nuances, toda a gama, de que modo, eu diria, ela se acha desligada do que seria da ordem da obrigação, dos sentimentos necessários, etc… então, você tem como quando a luz passa através de um prisma, então você tem toda a gama possível… desde… o apego,… a reivindicação,… a denúncia,… tudo aparece aí… a nostalgia,… é estranho mas é assim.
Ou seja, passamos, eu diria, do que era a fixidez do “amor-ódio”, passamos dessa simplicidade, essa fixidez – ou se ama o pai ou se odeia, ou um ou outro, ou um e outro, etc… – passamos para toda essa variedade possível de sentimentos.
Senhora X :
Boa noite, eu, de fato, teria duas perguntas: a primeira é principalmente sobre as dificuldades, eu direi conceituais. Ao escutá-lo, pensei esta noite na conferência de Lacan sobre a feminilidade, que ele fez acho que em 1956. Onde ele dizia que a mulher se define por ser o falo do Outro. Então eu me perguntava onde é que o senhor situa a questão da virilidade, muito evocadora em si mesma, mas que, nesse momento, eu tenho um pouco de dificuldade para situar de um ponto de vista conceitual.
E a segunda questão é uma questão que eu lhe comunico, que me foi posta, e à qual eu tive enorme dificuldade para responder, e portanto a submeto ao senhor.
Foi durante conversas com profissionais de A.I.D.E.S., e eles pediam minha opinião sobre uma situação que tinham encontrado: um casal homossexual, dois homens que se transformaram, enfim o primeiro se transformou em mulher. Por um certo período, o casal foi um casal heterossexual, depois o segundo se transformou em mulher e o casal voltou a ser um casal homossexual… e eu queria a sua opinião.
Charles Melman :
Mas… são pessoas que gostam de viajar… (risos da sala) e fazem experiências, eles exploram, e teríamos vontade de dizer: sim, por que não? Se isso lhes convém?
A que título, não é mesmo ?… se ficamos com o aspecto “bizarro”, é porque eles nos dão o testemunho de que, finalmente, façam o que fizerem, nunca ficam contentes! Continuam procurando algo! O que seria interessante é ver o que eles vão encontrar agora. O que eles vão… mas isso ilustra bem que eles não acharam o remédio!
Agora quanto a sua primeira questão, também inteiramente pertinente, a questão, o ponto, se você quiser, habitual, é que justamente uma mulher hoje em dia pode… pode ao mesmo tempo jogar com esse fato de que, na estrutura, ela é, como você lembrou, o falo, mas ao mesmo tempo ela pode demonstrar tê-lo, ou seja, achar-se marcada com o traço, não apenas, eu diria, de sê-lo, mas marcada com o traço de tê-lo, o falo, e assim realizar evidentemente uma completude, inteiramente notável… será que… será que com o que eu lhe digo você se sente menos desnorteada, talvez?
Madame X
A questão da virilidade se situaria mais no campo do tê-lo?
Charles Melman :
Seguramente, seguramente, a mulher é uma deusa e é bem por isso que ela “o é”. A mulher “é” divina… mas quando, além disso, além desse traço, ela pode revestir, eu direi, a insígnia, as insígnias de tê-lo, eu diria que ela se torna, ela se torna perfeita!
Poderíamos evocar, você sabe, muitas coisas, mas não estamos aqui para fazer todo o percurso.
Eu fico surpreso de ver que, não sei se é bem notado, na religião e em particular em tudo que se refere ao período testamentário, dêutero-testamentário, o Antigo Testamento, já há esse fato de que uma mulher não é marcada por índices de alteridade em relação ao homem, ela está no mesmo campo que ele.
E pareceria que seja a sua união, para retomar o mito de Aristófanes do “animal com dois dorsos”, que seja a sua união que realiza, por esta bissexualidade, por um instante realiza a imagem divina.
Essa famosa formulação que sempre atormenta os exegetas, e que se acha desde o início da gênese: “E Deus o fez homem e mulher”… hein? Ele o fez homem e mulher?
Mas quando se vê a maneira pela qual se regravam as relações entre os personagens da época, vê-se muito bem, para falar em termos crus, mas que eram os de um povo pastoril, a fêmea é absolutamente o equivalente do macho, quero dizer que seu papel e seu lugar são tão essenciais quanto o papel do macho! É preciso um e outro para que se realize a vontade divina! É justamente no seu acasalamento que se encontra a realização, mesmo que momentânea… mas quando esse acasalamento termina, eles têm que, na vida cotidiana, lembrar, lembrar essa união soberana. Ou seja, temos aí algo que, no início da religião, já é inteiramente diferente do que se viveu a seguir, e quando retomamos hoje, achamo-nos nessa situação em que homem e mulher estão no mesmo espaço, estão no mesmo campo, não são separados ou provenientes de um espaço de ordem diferente; há uma retomada do que, de certa maneira, do que já foi, do que já existiu.
E depois seria preciso prosseguir com muitas considerações, sobre o fato de que as culturas a que pertencemos separavam radicalmente a função materna da função da concubina, da função da mulher,… para uso de, para fins de prazer!
Havia uma, respeitada, que ficava guardada em casa, e depois havia para a vida social, havia realmente dois espaços. Para a vida social havia as cortesãs, as tocadoras de flauta, as estrangeiras, as liberadas eventualmente, etc… e eles separavam radicalmente o que se referia ao dever a cumprir, ou seja, a linhagem familiar a manter, os deuses a celebrar… e depois o que tinha a ver com o prazer.
Bem, em todo caso, eu insisto, eu acho sensacional o que nós vivemos, evidentemente sempre facilmente com o sentimento de um mundo que desmorona, e sem saber o que virá, mas creio que esse tipo de trajetória não é evitável, mas, como Ângela lembrava há um instante, a questão é saber se estimamos que isso seja viável, ou se pensamos que são convulsões que serão levadas de uma maneira ou de outra a entrar na,… a reencontrar uma ordem, sem que se saiba forçosamente qual, mas reencontar uma ordem, uma estabilidade, uma fixidez.
Roland Chemama :
Acho que podemos parar aqui, se não houver outras questões?
Uma questão então, uma última questão.
Senhor X :
Eu queria lhe perguntar com relação aos argumentos e na sua exposição o senhor insistiu sobretudo no aspecto da virilização da mulher para criar o ponto de encontro entre homem e mulher e da identificação sexual do lado da mulher. Será que lhe parece secundário o aspecto de feminização eventual dos homens? Tanto os fabricantes de cosméticos quanto a moda, quanto os estudos sobre a paternidade de que se falou há pouco, e justamente o fato de que os pais, hoje em dia, não têm mais, exatamente, as mesmas relações com seus filhos que há alguns decênios. E então de que maneira com a virilização da mulher haveria um pai que poderia se comportar em certos casos como uma mãe de substituição e também o aspecto de “feminização” do homem que entraria nessa identificação feminina…
E a outra questão um pouco ligada a tudo isso é: será que isso continua a se fazer em torno do falo, afinal?
Charles Melman :
O problema, como você vê, é que “masculinização” ou “feminização” se referem forçosamente a traços imaginários, e esses traços imaginários não são forçosamente destinados a durar, não é mesmo? E aí há um outro impasse, porque não bastam, como direi, os traços que podemos reter como masculinos ou outros que podemos reter como femininos, são traços que são apenas, eu diria tradicionais, culturais, conforme a tradição.
E como é justamente a tradição que é posta em causa… o que eu acho, de minha parte, mais interessante, é ver aparecer justamente uma excitação quanto ao próprio traço! Ou seja, se quero me apresentar como um cara, o que é que devo fazer? Como é? E a esse respeito o cinema, o espetáculo, é muito muito interessante! Pois em geral o que é proposto são representações “trash”. Então, eis aí algo interessante; não era de modo algum tradicional apresentar a virilidade como marcada por essa característica, não é mesmo? Bem, então eu direi que o que eu acho mais apaixonante é a dissolução desses traços distintivos, e isso, isso ainda vai ser mais divertido, a meu ver.
Roland Chemama :
Bem, obrigado novamente, se retomássemos o conjunto do que o senhor disse esta noite, isso daria toda uma série de pistas de trabalho novo.
Charles Melman :
É verdade.
Roland Chemama :
Penso especialmente no que o senhor disse sobre a organização das relações sexuais, no caráter pragmático, positivo.
Talvez uma questão sobre a identificação sintomática… será que ela mudou hoje em dia? Enfim, não vamos recomeçar isso tudo, mas aí está, isso abre verdadeiramente coisas apaixonantes!
Transcrição: Doris Peronny
Tradução: Sérgio Rezende